Começou a ser reparada no Supremo Tribunal Federal - STF uma das grandes injustiças criadas pela mora do legislativo no que diz respeito à regulamentação de direitos constitucionais dos servidores públicos. Trata-se da possibilidade da aplicação de critérios diferenciados para a aposentadoria do servidor cujas atividades tenham sido exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, prevista no inciso III do artigo 40 da Constituição Federal de 1988. Mediante proposta dos ministros Joaquim Barbosa e Gilmar Mendes, o plenário do STF decidiu por aprovar a súmula vinculante n°. 33 (Projeto de Súmula Vinculante n°. 45) que trata sobre a matéria nos seguintes termos:
“Aplicam-se ao servidor público, no que couber, as regras do Regime Geral de Previdência Social sobre aposentadoria especial de que trata o artigo 40, parágrafo 4º, inciso III, da Constituição Federal, até edição de lei complementar específica.[1]”
A súmula preenche a lacuna de regulamentação provocada pela desídia legislativa em relação ao tema, a qual tem provocado um número bastante elevado de ações judiciais dirigidas no sentido do requerimento de aposentadorias especiais e de averbação de tempo especial, ou seja, de contagem diferenciada do tempo de serviço público exercido sob condições que prejudiquem a saúde ou a integridade física.
Segundo o texto aprovado, devem ser aplicadas aos servidores as mesmas regras vigentes no Regime Geral de Previdência que beneficiam os trabalhadores, cujas atividades representam risco à saúde, o que abrange não só a concessão da aposentadoria especial prevista nos artigos 57 e 58 da Lei n°. 8.213/91, mas também a contagem diferenciada do tempo especial para fins de aposentadoria por tempo de contribuição, regulada no artigo 70 do Decreto n°. 3.048/99.
Muito embora este último efeito não tenha sido previsto de forma expressa no texto aprovado em plenário, apesar dos protestos dos Ministros Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio de Mello, não pode ser outra a interpretação da súmula, haja vista que não há nada nela que possa ser interpretado como restrição a essa possibilidade. Explica-se.
O texto sumular é explicito no sentido de que as regras do Regime Geral de Previdência Social - RGPS, estas definidas em sua maioria pelas normas previstas na Lei n°. 8.213/91 e no Decreto n°. 3.048/99, devem ser aplicadas sobre a aposentadoria especial de que trata o artigo 40, parágrafo 4º, inciso III da Constituição Federal que assim dispõe:
Art. 40, § 4º, É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores:
III cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física.
A leitura do dispositivo deixa certo que não se estar a falar aqui de uma modalidade de aposentadoria, aquela conhecida no RGPS como “aposentadoria especial”, mas tão somente da necessidade de oferecer aos servidores cujas atividades sejam exercidas sob risco à saúde e à integridade física, critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria, este ultimo termo utilizado de forma genérica sem qualquer adjetivação como bem se pode ver. O texto da norma contida no artigo 40 é, aliás, praticamente idêntico ao da norma constitucional que prevê a adoção de critérios diferenciados no Regime Geral de Previdência, o parágrafo 1º do artigo 201, assim redigido:
Art. 201, § 1º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar.
Vê-se, pois, que, por via da isonomia, o legislador constitucional optou por aplicar o mesmo modelo de norma aos trabalhadores vinculados ao Regime Geral de Previdência e aos servidores públicos no que diz respeito ao exercício de atividade que prejudique a saúde ou a integridade física. Neste interim, importante observar que tanto a aposentadoria especial dos artigos 57 e 58 da Lei n°. 8.213/91, quanto a contagem diferenciada do tempo especial prevista no Decreto n°. 3.048/99 tem fundamento no que dispõe o citado parágrafo 1º do artigo 201 da Constituição Federal. Isso porque, tal norma constitui reserva legal específica, sem a qual nenhum dos dois institutos poderia existir, afinal a regra é a proibição da adoção de critérios diferenciados para aposentadoria.
Não havendo, então, dúvidas sobre o fato de ambas as normas previdenciárias citadas constituírem regras para a concessão de critérios diferenciados para a aposentadoria, não há como buscar o seu fundamento em outra norma. Sendo assim, haja vista a identidade entre as normas do artigo 40, §4º, III e do artigo 201, §1º, não há motivos para excluir a contagem diferenciada de tempo especial do âmbito de possibilidades da primeira, se o legislador entendeu, corretamente, possível incluí-la no campo de regulação da segunda.
Desta forma, ao determinar de forma genérica, que as regras do RGPS se aplicam para fins de regulamentação da norma contida no artigo 40, o STF não só deixou de vedar a possibilidade de contagem diferenciada do tempo especial, como a determinou de forma veemente, afinal, dentre as regras do RGPS que regulam a aposentadoria daqueles que exerceram suas atividades sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, a contabilização diferenciada figura incólume.
Advoga ainda contra a tese de que o comando da Súmula Vinculante n°. 33 se restringe a permitir apenas a modalidade de aposentadoria especial, cujo requisito contributivo no RGPS é de 15, 20 ou 25 anos de tempo exercido sob condições que possam prejudicar a saúde ou a integridade física, a interpretação sistemática da Constituição. A leitura das disposições constitucionais que tratam dos benefícios previdenciários, tanto os dos servidores, quanto dos demais trabalhadores, demonstra que toda a vez em que o legislador pretendeu dar contornos a uma modalidade de aposentadoria, o fez de forma expressa, especificando, inclusive, o requisito exigido para que seja possível alcança-la.
É assim com as normas dos parágrafos 1º e 5º do artigo 40 e dos parágrafos 7º e 8º do artigo 201, os quais fornecem os requisitos para as aposentadorias por invalidez permanente, compulsória, voluntária e do professor, dos Regimes Próprios de Previdência e para as aposentadorias por tempo de contribuição, idade e do professor do Regime Geral de Previdência, todos citados in verbis:
Art. 40
§ 1º Os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17:
I - por invalidez permanente, sendo os proventos proporcionais ao tempo de contribuição, exceto se decorrente de acidente em serviço, moléstia profissional ou doença grave, contagiosa ou incurável, na forma da lei; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 41, 19.12.2003)
II - compulsoriamente, aos setenta anos de idade, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição;
III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de dez anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições:
a) sessenta anos de idade e trinta e cinco de contribuição, se homem, e cinqüenta e cinco anos de idade e trinta de contribuição, se mulher;
b) sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição.
§ 5º - Os requisitos de idade e de tempo de contribuição serão reduzidos em cinco anos, em relação ao disposto no § 1º, III, "a", para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio.
Art. 201
§ 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições:
I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher;
II - sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal.
§ 8º Os requisitos a que se refere o inciso I do parágrafo anterior serão reduzidos em cinco anos, para o professor que comprove exclusivamente tempo de efetivo exercício das funções de magistério na educação infantil e no ensino fundamental e médio.
Os textos das normas citadas, diferente daqueles que tratam da adoção de critérios diferenciados para os que exerceram atividade sob condições especiais, são bastante claros ao definir critérios e nuances essenciais de cada uma das modalidades previstas, de modo que a menção, por exemplo, ao inciso I do parágrafo 7º do artigo 201, direciona de forma clara à aposentadoria por tempo de contribuição do RGPS. Por outro lado, haja vista a falta de formatação de um modelo de aposentadoria que contenha critérios e nuances no parágrafo 1º do mesmo artigo 201, é impossível afirmar que uma menção a este dispositivo significa referência à aposentadoria especial dos artigos 57 e 58 da Lei n°. 8.213/91.
A estrutura das normas evidencia que naquilo que se refere ao trabalho exercido sob condições de risco à saúde ou a integridade física, o legislador constitucional não optou por restringir o efeito da norma a uma modalidade específica e formatada de aposentadoria, assim como fez, por exemplo, com a vulnerabilidade social representada pelos efeitos da idade (Art. 201, §7°, II, CF/88). Tal opção se mostrou louvável em relação ao RGPS, pois permitiu que fosse editada norma infraconstitucional a beneficiar aqueles trabalhadores que não exerceram atividades insalubres por uma quantidade pré-determinada de tempo, mas que, por terem sido expostos a condições ambientais nocivas durante o exercício da atividade laboral, também sofreram efeitos negativos em sua saúde.
Lembra-se, por oportuno, que, historicamente, principalmente nas constituições axiológicas de matriz social, a previdência é formatada como suporte ao cidadão em situação de vulnerabilidade social que lhe prejudique a capacidade de trabalho, objetivo do qual não se afasta a carta brasileira de 1988. É neste sentido que estão inclusas no texto constitucional as disposições sobre o exercício de atividade laboral sob condições que prejudicam a saúde, pois entendeu o legislador que o trabalho que macula a integridade física, mental e social do sujeito, o tira mais brevemente a capacidade para o trabalho e o conduz rapidamente para a condição de usuário contumaz dos serviços de saúde pública, de forma que é obrigação da Seguridade Social lhe dar suporte na forma de aposentadoria, em momento anterior ao dado para os demais.
Em vista destas razões, careceria de sentido, pois, uma norma que restringisse a aposentação precoce aos casos em que o trabalhador exerceu atividade por um período pré-fixado, afinal, ainda que diferentes quantitativamente, efeitos negativos sobre a saúde existem tanto para aqueles que estiveram sob a exposição ao mesmo agente insalubre por 5, 10, 15 ou 25 anos. Por evidente, que efeitos menores merecem menores diferenciações em relação ao tempo para aposentar, mas a negativa de redução configura evidente afronta à isonomia, na medida que dá a sujeitos em condições proporcionalmente iguais, tratamento proporcionalmente diferente.
Por este motivo, reforça-se o entendimento de que tanto a aposentadoria especial dos artigos 57 e 58 da Lei n°. 8.213/91, quanto à contagem do tempo especial na forma do artigo 70 do Decreto n°. 3.048/99 constituem desdobramentos diretos da norma prevista no parágrafo 7º do artigo 201 da Constituição Federal, ou seja, representam a regulamentação da previsão de adoção de critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do RGPS, cujas atividades tenham sido exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física.
Assim, conclui-se que, tendo a Súmula Vinculante n°. 33 determinado a adoção das regras do RGPS como regulamentação do inciso III, do parágrafo 4º do artigo 40 da Constituição Federal, o qual trata, exatamente, da adoção de critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria dos servidores cujas atividades tenham sido exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e não sobre uma modalidade específica de benefício, não há qualquer motivo para a não aplicação do disposto no artigo 70 do Decreto n°. 3.048/99 em favor dos servidores públicos nesta condição.
[1] Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=264538.