Recentemente o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei que trata do Marco Civil da Internet[1]. Apesar de conter muitos avanços a propositura trouxe um retrocesso indesejável na defesa da honra, quando atacada na internet, ao tornar mais difícil e burocrática a retirada de conteúdo ofensivo na rede.
O art. 19 do Marco Civil aprovado prevê que o provedor de aplicações de internet somente será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, “após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”.[2]
Provedor de aplicações de internet são as pessoas jurídicas que ofertam serviços na rede, gratuitos ou pagos, como, por exemplo: buscador de informações (Google, Bing, Baidu etc), redes sociais (Facebook, Whatsapp, Tweeter, Instagram etc.), correio eletrônico (Gmail, Yahoo, Hotmail etc.), comunicações (Skype, Viber, Hangout etc.), conteúdo em geral (UOL, Terra, IG, Netflix etc.) e hospedagem de páginas na internet.
Em outras palavras, o Marco Civil, ao invés de estimular a composição privada de forma a possibilitar uma solução rápida eficiente e eficaz, obriga aquele que teve sua honra violada a buscar o Poder Judiciário para que o conteúdo ofensivo seja retirado ou tornado indisponível.
Com isso, o Marco Civil brasileiro vai de encontro ao previsto na legislação de países mais desenvolvidos tecnologicamente e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ.
No âmbito da União Europeia a Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8/6/2000, que trata dos “aspectos legais dos serviços da sociedade de informação, em especial do comércio electrónico”, prevê no art. 14 a responsabilização do provedor de armazenamento se este tiver conhecimento prévio da violação ou se, após conhecimento da ilegalidade, por qualquer meio, não atuar com diligência para retirar ou impossibilitar o acesso ao conteúdo ofensivo.[3]
O parágrafo 40 da exposição de motivos da Directiva 2000/31/CE esclarece que os provedores de serviços na internet têm, em certos casos, o dever de agir a fim de evitar ou fazer cessar atividades ilícitas e deixa clara a necessidade da criação de mecanismos rápidos e confiáveis para remoção de informações ilícitas e/ou impossibilitar o acesso a estas. Ainda segundo o parágrafo 46 da exposição de motivos, o provedor de serviços de armazenagem de informação deve proceder com diligência no sentido de remover as informações ou impossibilitar o acesso a estas, “a partir do momento em que tenha conhecimento efectivo da ilicitude, ou tenha sido alertado para esta”.[4]
Da mesma forma, o STJ vem decidindo na linha de que, em regra, o provedor de aplicações não pode ser responsabilizado pelo conteúdo de terceiros, pois não é obrigado a controlar ou censurar previamente as mensagens.[5] No entanto, o STJ, consoante a jurisprudência dominante dos tribunais norte-americanos[6] e da União Europeia, reconhece que o provedor de aplicações responde pela violação da honra, a partir do momento em que tem conhecimento da ilicitude, pela via judicial ou extrajudicial, e se recusa a indisponibilizar o conteúdo ofensivo.
No julgamento do REsp 1193764 o Relator no STJ deixou claro tratar-se de questão global, de repercussão internacional, que tem ocupado legisladores de todo o mundo, sendo possível identificar no direito comparado a tendência de isentar os provedores de serviço da responsabilidade pelo monitoramento do conteúdo das informações veiculadas em seus sites, mas que isso não pode livrar “indiscriminadamente os provedores de responsabilidade pelo tráfego de informações em seus sites. Há, como contrapartida, o dever de, uma vez ciente da existência de mensagem de conteúdo ofensivo, retirá-la imediatamente do ar, sob pena, aí sim, de responsabilização.”
A única previsão do Marco Civil de remoção de conteúdo pela via extrajudicial está no art. 21 do Projeto, o qual prevê que o provedor de aplicações de internet “será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.” (grifo nosso)
Dessa redação exsurgem várias questões, a saber: O provedor de aplicações vai ser obrigado a exigir autorização válida e prévia sempre que alguém for postar uma foto ou um vídeo de nudez? Haverá a possibilidade de arrependimento em caso de autorização? Esse dispositivo se aplica à pornografia e o direito de imagem dos profissionais do sexo?
Outro problema do Marco Civil da Internet é a redação dos §§ 1º, 3º e 4º do art. 19, porque trazem graves problemas de técnica jurídica, conforme se demonstra.
O § 1º do art. 19 do Projeto de Lei estabelece que a ordem judicial de retirar conteúdo considerado ofensivo à honra deverá conter, “sob pena de nulidade”, a identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente.[7] O CPC, art. 113, § 2º, prevê que os atos decisórios judiciais só serão declarados nulos em caso de incompetência absoluta do juízo. Fora dessa hipótese, a decisão judicial poderá ser revogada ou reformada, mas nunca anulada. Diante disso, surgem várias questões sobre o dispositivo do §1º do art. 19 do Marco Civil, a saber: Criou-se um novo tipo de nulidade processual? Essa nova nulidade é absoluta ou relativa? O provedor de aplicações vai poder se recursar a cumprir a ordem judicial alegando que a mesma é nula? O juiz que expedir a ordem nula está sujeito a sanção administrativa?
Já o § 3º do suso mencionado art. 19 estatui que as causas de dano moral e/ou material por ofensa à honra, em razão de conteúdo disponibilizado na internet, “poderão ser apresentadas perante os juizados especiais”.[8] Com esse dispositivo, intencionalmente ou não, o legislador estabeleceu a competência do Juizado Especial Cível para julgar as causas envolvendo dano moral na internet, independentemente do limite de quarenta salários mínimos, previsto no art. 3º da Lei nº 9.099, de 1995. Além disso, da forma como está redigido, o dispositivo do § 3º é inconstitucional porque quebra o princípio da igualdade, ao trata os iguais de forma desigual. Não é constitucional prever que o ofendido na internet possa recorrer ao juizado especial, independente do valor da causa, e o que teve a honra atacada numa revista ou num jornal impresso em papel não ter o mesmo direito.
O §4º do mesmo artigo, por sua vez, criou a possibilidade de antecipação de tutela no Juizado Especial Cível nas ações de responsabilidade civil na internet e incluiu o requisito do “interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet”, além dos previstos no art. 273 do CPC[9]. Assim, a teor do § 4º do Marco Civil, além da prova inequívoca, da verossimilhança da alegação e da possibilidade de dano irreparável, ou de difícil reparação o juiz deverá avaliar o interesse da sociedade na manutenção da ofensa à honra na internet. Desse dispositivo saltam aos olhos várias questões: Porque prever a antecipação de tutela apenas nas causas que envolvem ofensa na internet? Porque discriminar aqueles que são ofendidos nos jornais e revistas impressas? A inclusão desse novo requisito para a antecipação de tutela significa que o juiz pode decidir que é do interesse da coletividade a manutenção de uma ofensa contra a honra de uma pessoa na internet? Como compatibilizar esse entendimento com o inciso X do art. 5º da Constituição vez que a honra é um atributo inerente à personalidade que reflete a observância do princípio da dignidade da pessoa humana?
A internet tem sido palco facilitador de crimes contra a honra, sem que os autores desses delitos se sintam minimamente dissuadidos por eventual reprimenda legal. Muito embora a internet seja, por excelência, o espaço da liberdade não se pode admitir que seja um universo sem lei e sem responsabilidade pelos abusos que lá venham a ocorrer. No julgamento do REsp 1193764 a Relatora no STJ destacou que “não é razoável deixar a sociedade desamparada frente à prática, cada vez mais corriqueira, de se utilizar comunidades virtuais como artifício para a consecução de atividades ilegais.”
A responsabilidade de quem viabiliza tecnicamente, se beneficia economicamente e estimula a criação de comunidades e páginas na internet é irrenunciável, intransferível e imprescritível. O provedor de aplicações explora economicamente a internet e é responsável pelo controle de eventuais abusos e pela garantia dos direitos da personalidade. A responsabilidade existe mesmo no caso dos provedores que não cobram diretamente do usuário e que lucram com o chamado “cross marketing”[10]. Apesar de gratuito, esses provedores geram um banco de dados com o cadastro de seus usuários com infinitas aplicações comerciais. Essa corresponsabilidade é parte do compromisso social da empresa com a sociedade.
O direito à liberdade de informação garantida na Constituição de 1988 encontra limites na própria Carta Política, a qual proclama o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, garantindo, inclusive, em caso de sua violação, o direito à indenização pelos danos dela decorrentes.
Só quem desconhece o sistema judiciário brasileiro, ou que lucra com o conflito, defende a solução judicial de todas as disputas envolvendo o ataque à honra na internet.
Conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2012 havia mais de 92 milhões de processos judiciais tramitando no Poder Judiciário do Brasil.[11] O Marco Civil optou por engrossar essa estatística ao desestimular a possibilidade de composição administrativa amigável ao prever a responsabilização civil pelo conteúdo gerado por terceiros unicamente pelo descumprimento de ordem judicial.
O Presidente do STF, Ministro Joaquim Barbosa, vem defendendo o direito à informação como “valor essencial no regime democrático”, mas tem ressaltado também que não pode ser confundido com violação da privacidade, da imagem e da honra.
A honra é parte integrante do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana. O Estado tem a obrigação constitucional de criar meios eficientes e eficazes para a proteção da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Não se pode admitir que o valor da dignidade da pessoa humana seja um no mundo real e outro no mundo virtual.
O que se está defendendo é que o provedor de aplicações, uma vez notificado, judicial ou extrajudicialmente, possa ser responsabilizado pelo ato de intencionalmente recusar-se a retirar qualquer conteúdo ofensivo à honra de qualquer pessoa.
Notas
[1]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=BC48C39E1819505BB3B63BA3509A5A28.proposicoesWeb2?codteor=1238854&filename=REDACAO+FINAL+-+PL+2126/2011
[2] Projeto de Lei nº 2.126, de 2011: “Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.”
[3] Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8/6/2000: “Artigo 14º. 1. Em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista no armazenamento de informações prestadas por um destinatário do serviço, os Estados-Membros velarão por que a responsabilidade do prestador do serviço não possa ser invocada no que respeita à informação armazenada a pedido de um destinatário do serviço, desde que: a) O prestador não tenha conhecimento efectivo da actividade ou informação ilegal e, no que se refere a uma acção de indemnização por perdas e danos, não tenha conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciam a actividade ou informação ilegal, ou b) O prestador, a partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude, actue com diligência no sentido de retirar ou impossibilitar o acesso às informações. 2. O nº 1 não é aplicável nos casos em que o destinatário do serviço actue sob autoridade ou controlo do prestador. 3. O disposto no presente artigo não afecta a faculdade de um tribunal ou autoridade administrativa, de acordo com os sistemas legais dos Estados-Membros, exigir do prestador que previna ou ponha termo a uma infracção, nem afecta a faculdade de os Estados-Membros estabelecerem disposições para a remoção ou impossibilitação do acesso à informação.” (grifo nosso) (http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:32000L0031&from=PT)
[4] Directiva 2000/31/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8/6/2000: “(40) As divergências actuais ou futuras, entre as legislações e jurisprudências nacionais no domínio da responsabilidade dos prestadores de serviços agindo na qualidade de intermediários, impedem o bom funcionamento do mercado interno, perturbando particularmente o desenvolvimento dos serviços transfronteiriços e produzindo distorções de concorrência. Os prestadores de serviços têm, em certos casos, o dever de agir a fim de evitar ou fazer cessar actividades ilícitas. A presente directiva deve constituir a base adequada para a criação de mecanismos rápidos e fiáveis para remover as informações ilícitas e impossibilitar o acesso a estas. Esses mecanismos poderão ser elaborados com base em acordos voluntários negociados entre todas as partes interessadas e deveriam ser encorajados pelos Estados-Membros. É do interesse de todas as partes que participam na prestação de serviços da sociedade da informação adoptar e aplicar esses mecanismos. As disposições da presente directiva relativas à responsabilidade não deveriam constituir obstáculo ao desenvolvimento e aplicação efectiva, pelas diferentes partes envolvidas, de sistemas técnicos de protecção e identificação, bem como de instrumentos de controlo técnico, que a tecnologia digital permite, dentro dos limites previstos pelas Directivas 95/46/CE e 97/66/CE.” (...) “(46) A fim de beneficiar de uma delimitação de responsabilidade, o prestador de um serviço da sociedade da informação, que consista na armazenagem de informação, a partir do momento em que tenha conhecimento efectivo da ilicitude, ou tenha sido alertado para esta, deve proceder com diligência no sentido de remover as informações ou impossibilitar o acesso a estas. A remoção ou impossibilitação de acesso têm de ser efectuadas respeitando o princípio da liberdade de expressão. A presente directiva não afecta a possibilidade de os Estados-Membros fixarem requisitos específicos que tenham de ser cumpridos de forma expedita, previamente à remoção ou à impossibilitação de acesso à informação.” (grifos nossos)
[5] Cite-se, dentre outros, o REsp 1193764 e o REsp 1323754.
[6] Caso Cubby, Inc. v. CompuServe Inc. de 1991: “court decision in the United States District Court for the Southern District of New York which held that Internet service providers were subject to traditional defamation law for their hosted content. The case resolved a claim of libel against CompuServe, an Internet service provider that hosted allegedly defamatory content in one of its forums. The case established a precedent for Internet service provider liability by applying defamation law, originally intended for hard copies of written works, to the Internet medium. The court held that although CompuServe did host defamatory content on its forums, CompuServe was merely a distributor, rather than a publisher, of the content. As a distributor, CompuServe could only be held liable for defamation if it knew, or had reason to know, of the defamatory nature of the content. As CompuServe had made no effort to review the large volume of content on its forums, it could not be held liable for the defamatory content.”
[7] Projeto de Lei nº 2.126, de 2011: “Art. 19. (...). § 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.”
[8] Projeto de Lei nº 2.126, de 2011: “Art. 19. (...). § 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.”
[9] Projeto de Lei nº 2.126, de 2011: “Art. 19. (...). § 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.”
[10] O cross marketing consistente numa ação promocional entre produtos ou serviços em que um deles, embora não rentável em si, proporciona ganhos decorrentes da venda de outro.
[11] http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/sumario_exec_jn2013.pdf