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A consolidação do constitucionalismo contemporâneo e o novo papel adquirido pelo Poder Judiciário

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08/05/2014 às 12:41
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1.4 Maior atuação do Poder Judiciário: novo papel adquirido no Estado Democrático de Direito (Constitucional)

A partir da consolidação do constitucionalismo contemporâneo, com a inclusão de princípios jurídicos na Magna Carta, da necessidade crescente de uma interpretação constitucional, e eventualmente da utilização do método de ponderação por meio da avaliação do caso individual e concreto, exige-se uma maior atuação do Poder Judiciário e até mesmo certo ativismo judicial.

Fala-se, assim, em uma releitura do clássico princípio da separação de poderes, no intuito de abrir espaço para uma atuação mais flexível do Poder Judiciário em defesa dos valores constitucionais, bem como de restringir os poderes do legislador em nome dos direitos fundamentais e da proteção das minorias, por meio de teorias de democracia mais substantivas.

Nesse sentido, Oscar Vilhena Vieira afirma que “a enorme ambição do texto constitucional de 1988, somada à paulatina concentração de poderes na esfera de jurisdição do Supremo Tribunal Federal, ocorrida ao longo dos últimos vinte anos, aponta para uma mudança no equilíbrio do sistema de separação de poderes no Brasil”.55

O foco do constitucionalismo contemporâneo estaria, pois, no Poder Judiciário. O Direito, até então limitado à produção de leis pelo Poder Legislativo, passa a ser visto também como produto do Poder Judiciário, ou seja, resultado da interpretação e aplicação da lei feita pelo juiz. Nesses termos, com o reconhecimento do peso da tarefa do magistrado no âmbito de um Estado Democrático de Direito, dito Estado Constitucional, o Poder Judiciário — que congrega a sua participação e das partes no caso concreto — amplia sua atuação no processo de concretização dos valores dessa nova perspectiva de Estado.

Realmente, aponta Paulo Bonavides que, diferentemente do antigo “juiz mero aplicador de leis que, ao sentenciar apenas deduz e subsume, segundo entendimento axiomático-dedutivista do positivismo e da dogmática jurídica tradicional”, no âmbito do constitucionalismo contemporâneo e de uma democracia participativa, surge a “concepção do juiz intérprete que, ao decidir, normatiza”.56

Ademais, a partir da nova hermenêutica constitucional, o juiz intérprete “legisla entre as partes e o faz não propriamente sob a égide do legalismo puramente formal e rígido, mas do legitimismo principiológico e material”.57 Assim, “ao juiz da lei sucederá o juiz da Constituição”, bem como “ao juiz da legalidade, o juiz da legitimidade”.58 O autor ainda ressalta que:

Enquanto o juiz aplicador se guia por um logicismo que gira primacialmente ao redor da norma-texto da terminologia de Müller, o juiz intérprete haure sua maior força e dimensão hermenêutica na esfera dos princípios, mas se move tecnicamente no círculo de um pluralismo normativo tópico onde a norma-texto é apenas o ponto de partida da normatividade investigada e achada ao termo do processo decisório concreto, segundo assinala a teoria estruturante do Direito, da qual Friedrich Müller, já citado, é seu insigne formulador e jusfilósofo.59

Entretanto, apesar de admitir a importância do grande papel do Poder Judiciário de “resguardar os valores fundamentais e os procedimentos democráticos, assim como assegurar a estabilidade institucional”, existe a preocupação de que haja a desqualificação de sua própria atuação, “o que ocorrerá se atuar abusivamente, exercendo preferências políticas em lugar de realizar os princípios constitucionais”,60 como reflete Luís Roberto Barroso.

No mesmo sentido, Daniel Sarmento, defensor das inovações trazidas pelo constitucionalismo contemporâneo, concorda com a crítica de que o excesso de expectativas depositadas no Poder Judiciário pelo constitucionalismo contemporâneo pode conduzir a uma possível “judiciocracia” caracterizada por um “suposto caráter antidemocrático, na medida em que os juízes, diferentemente dos parlamentares e chefes do Executivo, não são eleitos e não respondem diretamente perante o povo”.61

De fato, na democracia “é essencial que as decisões políticas mais importantes sejam tomadas pelo próprio povo ou por seus representantes eleitos e não por sábios ou tecnocratas de toga”. Há um sério risco de se sedimentar a visão de que o grande intérprete da Constituição seria o Poder Judiciário, o que poderia levar a uma “ditadura de toga”.62

Essa postura do Judiciário como administrador da moral pública da sociedade também chama a atenção de Ingeborg Maus, que manifesta a seguinte preocupação:

Quando a Justiça ascende ela própria à condição de mais alta instância moral da sociedade, passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social — controle ao qual normalmente se deve subordinar toda instituição do Estado em uma forma de organização política democrática. No domínio de uma Justiça que contrapõe um direito “superior”, dotado de atributos morais, ao simples direito dos outros poderes do Estado e da sociedade, é notória a regressão a valores pré-democráticos de parâmetros de integração social.63

A autora alemã alerta que essa introdução de pontos de vistas morais e valores nas decisões judiciais, com apelo até a princípios “superiores”, pode estender o âmbito das “proibições” legais arbitrariamente ao campo extrajurídico das esferas de liberdade. Assim, ocorreria uma “inversão das expectativas de direito”, uma vez que a liberdade dos indivíduos somente seria fixada após a decisão judicial no caso concreto. Estariam, pois, comprometidas as almejadas certeza e previsibilidade de outrora.

Desta forma, pensar o Poder Judiciário como censor ilimitado do Poder Legislativo, por ter como competência a realização da “correta” interpretação do conteúdo da Constituição, que já estaria previamente decidido, significa “disfarçar o seu próprio decisionismo sob o manto de uma ‘ordem de valores’ submetida à Constituição”.64

Nesses termos, “a transformação da Constituição em uma ‘ordem de valores’ confere às determinações constitucionais individuais (por meio da ‘abertura’ de suas formulações) uma imprecisão tal que é capaz de suprir e ampliar voluntaristicamente os princípios constitucionais positivados”.65

Maus aduz que essa possibilidade, ao menos na Alemanha, surgiu a partir da “transformação fundamental do conceito de Constituição”, que deixa de ser vista como um “documento da institucionalização de processos e de garantias fundamentais das esferas de liberdade nos processos políticos e sociais, tornando-se um texto fundamental a partir do qual, a exemplo da Bíblia e do Corão, os sábios deduziriam diretamente todos os valores e comportamentos corretos”.66

Outro ponto declarado de preocupação seria a consideração pelo Poder Judiciário da lei como mera previsão e premissa da atividade decisória judicial, “apesar de sua densidade regulatória”. É pontual ao concluir:

Desta maneira, o juiz torna-se o próprio juiz da lei — a qual é reduzida a “produto e meio técnico de um compromisso de interesses” — investindo-se como sacerdote-mor de uma nova “divindade”: a do direito suprapositivo e não-escrito. Nesta condição é-lhe confiada a tarefa central de sintetizar a heterogeneidade social.

Desde a discussão metodológica da época até os dias de hoje mantém-se a perspectiva pela qual cabe à ciência do direito e à práxis jurisdicional a tarefa de gestar a unidade por meio do método jurídico, tendo em vista o caos introduzido pela produção jurídica da sociedade e a indiferenciação e inconsistência internas do direito legislado. Sob a fórmula da “unidade do direito” e da “unidade da Constituição” — as quais não seriam a mera soma das normas de direito isoladas, mas o produto da sistemática jurídica de valores — avulta o projeto da Justiça de dissolver os antagonismos de interesses que jazem sob a imagem real do direito legal. Nessa função controladora da Justiça reconhece-se um simbolismo que remete à integração de mecanismos sublimadores.67

A autora aponta ainda que, além da problemática moralização do conceito de Direito, “uma Justiça que não precise derivar a legitimação de suas decisões das leis vigentes torna-se no mínimo dependente em face às necessidades políticas conjunturais, degradando-se a mero instrumento dos aparelhos administrativos”.68 Trata, assim, a conduta do Poder Judiciário, ao se apoderar dos espaços livres situados fora do âmbito jurídico, como uma usurpação política da consciência, por invadir o campo moral pertencente à sociedade.

Nessa linha de preocupações e consternações, Humberto Ávila também é um crítico ferrenho dessa nova atuação do Poder Judiciário. É categórico ao afirmar que é o Poder Legislativo, por meio de mecanismos públicos de discussão e votação — pelos quais se obtém a participação e a consideração da opinião de todos em matérias para as quais não há uma, mas várias soluções para os conflitos de interesses — que pode respeitar e levar em consideração essa pluralidade de concepções de mundo e valores, e o modo de sua realização.

Em sua opinião, o Poder Judiciário não deve assumir “a prevalência na determinação da solução entre conflitos morais porque, num estado de Direito, vigente numa sociedade complexa e plural, deve haver regras”, editadas pelo Poder Legislativo, “destinadas a estabilizar conflitos morais e reduzir a incerteza e a arbitrariedade decorrente da sua inexistência ou desconsideração”.69

Isso porque, como na sociedade atual asseguram-se diversos tipos de liberdade, “não só existe uma pluralidade de concepções de mundo e de valores, como, também, há uma enorme divergência com relação ao modo como essas concepções de mundo e de valores devem ser realizadas”. Porém, apesar de não existir uma solução justa para o conflito e para a realização desses valores, devem ser tomadas, por algum órgão, decisões “para pôr fim ao infindável conflito entre valores e às intermináveis formas de realizá-los”. Em sua concepção, esse órgão é o Poder Legislativo, e não o Poder Judiciário.70

Realmente, a crescente intervenção judicial na vida brasileira, como diz Luís Roberto Barroso, geraria, dentre outras coisas, o risco da politização da justiça. O autor afirma que “em uma cultura pós-positivista, o Direito se aproxima da Ética, tornando-se instrumento da legitimidade, da justiça e da realização da dignidade da pessoa humana”. Apesar de entender desqualificadas as críticas no sentido de que uma decisão judicial é política e não jurídica, não ignora que a linha divisória entre Direito e Política “nem sempre é nítida e certamente não é fixa”.71 Nessa ambiguidade, nas palavras do constitucionalista, Direito pode ser considerado política:

[...] no sentido de que (i) sua criação é produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituição e nas leis; (ii) sua aplicação não é dissociada da realidade política, dos efeitos que produz no meio social e dos sentimentos e expectativas dos cidadãos; (iii) juízes não são seres sem memória e sem desejos, libertos do próprio inconsciente e de qualquer ideologia e, consequentemente, sua subjetividade há de interferir com os juízos de valor que formula. A Constituição faz a interface entre o universo político e jurídico, como a justiça, a segurança e o bem-estar social. Sua interpretação, portanto, sempre terá uma dimensão política, ainda que balizada pelas possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento vigente.72

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Entretanto, apesar de todas essas constatações, ressalta que “Direito não é política no sentido de admitir escolhas livres, tendenciosas ou partidarizadas”73. Isso porque o juiz tem “o dever de motivação, mediante o emprego de argumentação racional e persuasiva, é um traço distintivo relevante da função jurisdicional e dá a ela uma específica legitimação”74.

Nessa mesma linha, Daniel Sarmento discorda da crítica que acusa essa teoria de “promover o decisionismo ou de defender a tomada de decisões judiciais puramente emotivas, sem lastro em argumentação racional sólida”. Ora, um dos objetivos descritos é exatamente “a reabilitação da racionalidade prática no âmbito jurídico, com a articulação de complexas teorias da argumentação, que demandam muito dos intérpretes e, sobretudo, dos juízes em matéria de fundamentação das suas decisões”.75

É certo que, na prática dos Tribunais, há um desvirtuamento no uso dos princípios, os quais são utilizados de forma extremamente vaga e desnecessária; porém, coibir isso não deve significar o retrocesso quanto à inaplicabilidade de princípios. Alerta que:

O importante é encontrar uma justa medida, que não torne o processo de aplicação do Direito amarrado demais, como ocorreria num sistema baseado exclusivamente em regras, nem solto demais, como sucederia com um que se fundasse apenas em princípios. Penso que é chegada a hora de um retorno do pêndulo no Direito brasileiro, que, sem descartar a importância dos princípios e da ponderação, volte a levar a sério também as regras e a subsunção.

[...] A tendência atual de invocação frouxa e não fundamentada de princípios colide com a lógica do Estado Democrático de Direito, pois amplia as chances de arbítrio judicial, gera insegurança jurídica e atropela a divisão funcional de poderes, que tem no ideário democrático um dos seus fundamentos — a noção básica de que as decisões sobre o que os cidadãos e o Estado podem e não podem fazer devem ser tomadas preferencialmente por quem represente o povo e seja por ele escolhido.76

De qualquer forma, apesar da existência de riscos, a abertura principiológica e, assim, o diálogo com a Moral, proporcionados pelo constitucionalismo contemporâneo, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, são medidas necessárias para a justificação do Direito como um todo imerso em um sistema maior formado pela própria sociedade.

Sarmento sugere que para se conterem os excessos é preciso que se tenha um “maior cuidado metodológico, adicionado à adoção de uma diretriz hermenêutica substantiva, que afirme a missão essencial do Direito de assegurar justiça e segurança às pessoas, tratando-as como livres e iguais”,77 de onde se detecta a necessidade do desenvolvimento de uma teoria da argumentação jurídica que viabilize a realização dos ideais existentes no constitucionalismo contemporâneo.

Portanto, no contexto do Estado Democrático de Direito, a legitimidade da atuação do Poder Judiciário encontra guarida no constitucionalismo contemporâneo, mas não sem limites. Isto, porém, merece um estudo a parte.

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Sobre a autora
Renata Espíndola Virgílio

Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001), especialização em Direito Processual Civil pela Unicsul (2007) e em Defesa da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas (2010). É Procuradora Federal (Advocacia Geral da União) e mestre em Direito, na linha de processo, pela UnB (2013).<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIRGÍLIO, Renata Espíndola. A consolidação do constitucionalismo contemporâneo e o novo papel adquirido pelo Poder Judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3963, 8 mai. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27952. Acesso em: 22 dez. 2024.

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