Diante da realidade de um Estado Democrático de Direito, que no caso do ordenamento jurídico brasileiro foi trazida pelas inovações da Constituição Federal de 1988, para além da ruptura de um modelo, inicia-se o presente artigo concluindo-se que o constitucionalismo não poderia deixar de se adequar a essas transformações sofridas pela própria Constituição.
Com efeito, a Constituição de 1988 encampou o constitucionalismo pós-guerra — em especial da Alemanha e da Itália —, que possuía como objetivo um projeto de redemocratização. Além disso, reconheceu a força normativa da Constituição e sua posição central como fonte irradiadora de normatividade para todo o sistema jurídico e teve como grande marco a incorporação de princípios, mais abertos que as regras, no texto constitucional, o que alterou os padrões de interpretação, reaproximando Direito e Moral.
Essas modificações trouxeram uma nova concepção de constitucionalismo, que pode ser denominada de “constitucionalismo contemporâneo”.1 Apesar de diversos doutrinadores falarem em “neoconstitucionalismo”, Daniel Sarmento deixa claro que se trata de uma palavra que não encontra consenso entre os estudiosos do tema.2 Isso demonstra a dificuldade de se adotar o “neoconstitucionalismo” como uma teoria única e coesa, de maneira que se prefere utilizar a locução “constitucionalismo contemporâneo”.
Importante, pois, trazer breves noções sobre essa doutrina, a fim de se compreender o terreno fértil em que se operaram transformações de monta no Direito como um todo, com reflexos até na jurisdição e no processo.
Apesar da postura crítica assumida por Humberto Ávila no que diz respeito ao “neoconstitucionalismo”, o autor consegue traçar um roteiro lógico das mudanças propostas por essa doutrina constitucional, uma vez que elas manteriam “uma relação de causa e efeito, ou de meio e fim, umas com relação às outras”. Afirma que:
[...] as Constituições do pós-guerra, de que é exemplo a Constituição Brasileira de 1988, teriam previsto mais princípios do que regras; o modo de aplicação dos princípios seria a ponderação, em vez da subsunção; a ponderação exigiria uma análise mais individual e concreta do que geral e abstrata; a atividade de ponderação e o exame individual e concreto demandariam uma participação maior do Poder Judiciário em relação aos Poderes Legislativo e Executivo; o ativismo do Poder Judiciário e a importância dos princípios radicados na Constituição levariam a uma aplicação centrada na Constituição em vez de baseada na legislação. [...] Em suma, a mudança da espécie normativa implicaria a modificação do método de aplicação; a transformação do método de aplicação causaria a alteração da dimensão prevalente de justiça; e a variação da dimensão de justiça produziria a alteração da atuação dos Poderes. Ou, de modo ainda mais direto: a norma traria o método; o método, a justiça; a justiça, o Poder.3
De fato, como bem coloca Paulo Bonavides, a grande metamorfose do constitucionalismo do século XX se deu com “a passagem de um constitucionalismo formal, de textos, a um constitucionalismo material, de realidade, ou o transcurso de um constitucionalismo sem hermenêutica para o constitucionalismo interpretativo e normativo”,4 passando de um constitucionalismo positivo para um constitucionalismo programático. Tal a importância da já citada nova hermenêutica constitucional. Esclarece que:
A metodologia interpretativa de subsunção imperava inconteste na decifração dos problemas jurídicos; a vertente aristotélica do silogismo tudo interpretava e tudo resolvia em matéria hermenêutica, e o fazia a contento, enquanto imperavam tranquilos e estáveis os direitos de primeira geração — direitos civis e políticos. Mas tudo mudou, e mudou para sempre, quando advieram os direitos fundamentais da segunda, da terceira e da quarta gerações e a reflexão constitucional passou, numa hora feliz, de compatibilização teórica, para o outro polo — o da vertente tópica, também aristotélica, formando os juristas de uma nova escola de pensadores e hermeneutas.5
Inicialmente, importante observar que o marco filosófico dessas transformações é a nítida busca pela superação do positivismo kelseniano, o qual prega a mera subsunção do fato à norma e a discricionariedade para os casos de indeterminação. Trata-se da consolidação do “pós-positivismo”. Interessante, porém, destacar a posição trazida por Antonio Cavalcanti Maia, que baseia seu raciocínio na doutrina de Calsamiglia:
[...] falar em pós-positivismo não significa adotar uma posição radicalmente anti-positivista, mas sim propugnar por uma superação desta démarche teórica na busca de uma compreensão mais “afinada” da vida jurídica contemporânea. Ora, por um lado, não podemos nos recusar a reconhecer as incontornáveis contribuições dadas pelos juristas filiados ao positivismo jurídico à inteligência da estrutura da norma jurídica, bem como sua preocupação com a clareza, a certeza e a objetividade no estudo do direito, tudo isso referenciado à preocupação central dos estados de direito contemporâneos com a segurança jurídica. Por outro lado, advogar um enfoque pós-positivista não significa defender — como é, por vezes, salientado por autores críticos a esse posicionamento — um retorno a posições jusnaturalistas devedoras de concepções metafísicas incompatíveis com o atual estágio de compreensão científica.6
Segundo Luis Roberto Barroso, “em certo sentido, apresenta-se como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista: não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política”.7
Essa terceira via estaria fundamentada na relação das intuições morais que se encontram “formuladas nos princípios fundamentais que dão base às instituições concretamente vigentes no mundo ocidental”.8
1.1 Reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos
A partir do constitucionalismo contemporâneo adquiriu-se a consciência da impossibilidade de completude do sistema legal de forma prévia pelo legislador, optando-se pela inclusão de princípios jurídicos nos textos constitucionais, de alto grau de abertura e indeterminação.
Isso não quer dizer que deixa de ser importante a regra para o ordenamento jurídico. No entendimento de Humberto Ávila, tanto regras quanto princípios são normas de primeiro grau, mas possuem dimensões distintas. O autor propõe uma dissociação heurística entre essas categorias de normas, que são, como se verá, “construídas pelo intérprete a partir de dispositivos e do seu significado usual”, admitindo-se, pois, “a coexistência das espécies normativas em razão de um mesmo dispositivo”, que pode “experimentar uma dimensão imediatamente comportamental (regra), finalística (princípio) e/ou metódica (postulado)”.9 Aduz que:
Essa qualificação normativa depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas ao texto nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas pelo próprio intérprete. Por isso a distinção entre princípios e regras deixa de se constituir em uma distinção quer com valor empírico, sustentado pelo próprio objeto da interpretação, quer com valor conclusivo, não permitindo antecipar por completo a significação normativa e seu modo de obtenção. Em vez disso, ela se transforma numa distinção que privilegia o valor heurístico, na medida em que funciona como modelo ou hipótese provisória de trabalho para uma posterior reconstrução de conteúdos normativos, sem, no entanto, assegurar qualquer procedimento estritamente dedutivo de fundamentação ou de decisão a respeito desses conteúdos.10
No entanto, segundo esse autor, é possível extrair um conceito dessas normas da seguinte forma:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.11
Em suma, os princípios, que ganham força normativa no constitucionalismo contemporâneo, são conceituados como aquela espécie de norma “imediatamente finalística”, ou seja, que estabelece “um fim a ser atingido”, no sentido de fixar um conteúdo desejado, sem que este represente um ponto final qualquer. Como leciona Humberto Ávila, “a instituição do fim é ponto de partida para a procura por meios” e “os meios podem ser definidos como condições (objetos, situações) que causam a promoção gradual do conteúdo do fim”.12
Desta forma, para realização dos fins almejados pela norma, conclui-se que “a positivação de princípios implica a obrigatoriedade da adoção dos comportamentos necessários à sua realização, salvo se o ordenamento jurídico predeterminar o meio por regras de competência”. Até pode haver incerteza quanto ao conteúdo do comportamento a ser adotado, em razão da indeterminação dos princípios, “mas não há quanto à sua espécie: o que for necessário para promover o fim é devido”.13
Em suma, “os princípios não são apenas valores cuja realização fica na dependência de meras preferências pessoais”, mas “implicam comportamento, ainda que por via indireta e regressiva”. Embora relacionados a valores, pois “o estabelecimento de fins implica qualificação positiva de um estado de coisas que se quer promover”, com eles não se confundem.14
Enquanto os valores são situados no plano axiológico “e, por isso, apenas atribuem uma qualidade positiva a determinado elemento”, os princípios são situados no plano deontológico e, portanto, “estabelecem a obrigatoriedade de adoção de condutas necessárias à promoção gradual de um estado de coisas”.15
1.2 Reaproximação entre o Direito e a Moral
No âmbito do constitucionalismo contemporâneo e, consequentemente, com o reconhecimento da “força normativa de princípios revestidos de elevada carga axiológica, como dignidade da pessoa humana, igualdade, Estado Democrático de Direito e solidariedade social”, abrem-se “as portas do Direito para o debate moral” em uma sociedade pluralista.
Não se pretende nesse trabalho ingressar na seara da Moral, mas apenas consignar que uma das características do movimento do novo constitucionalismo foi sua reaproximação com o Direito.
Não se refere, pois, nesse item a uma moral kantiana ou hegeliana,16 as quais não são objeto desse estudo, mas a uma moral pública. Isso porque o que interessa na aludida reaproximação entre a Moral e o Direito é a noção de Ronald Dworkin acerca da leitura moral da Constituição, pela qual se pretende legitimar a decisão judicial a partir da devida consideração de princípios legais, morais e políticos.
Essa leitura moral exige que o juiz não se afaste de uma moral objetiva e pública, decorrente da opinião geral acerca do caráter do poder que a Constituição lhes confere. A moralidade utilizada para essa leitura constitucional, por meio da interpretação judicial, seria aquela dinâmica — diferente da moralidade estática da versão jusnaturalista —, que possibilita ao magistrado promover a evolução e reconstrução do ordenamento vigente, ao preencher o conteúdo dos princípios a partir de uma leitura baseada em uma moral social cambiante ao longo do tempo.
A partir dessas considerações, Daniel Sarmento coloca-se de acordo com a vertente não positivista dos adeptos da teoria, pela qual se entende que Moral e Direito têm uma conexão necessária e, na linha proposta por Gustav Radbruch, “as normas terrivelmente injustas não têm validade jurídica, independentemente do que digam as fontes autorizadas do ordenamento”.17
Nesse aspecto, a vigência dos princípios morais, para os não-positivistas, decorre “de exigências da própria Moral, acessíveis à razão humana”, sendo que “os valores morais incluídos nas constituições são jurídicos e devem produzir efeitos no mundo concreto”.18
Como denota Antonio Cavalcanti Maia, o positivismo jurídico encontrou dificuldades para apreender a nova realidade do Direito Constitucional contemporâneo, seja por insistir na ideia de subsunção para a aplicação do Direito — “incapaz de dar conta da especificidade da aplicação dos princípios, em especial nos frequentes casos de colisão” —, seja por persistir na “percepção do fenômeno jurídico reducionista”, por não ter desenvolvido “um aparato teórico capaz de apreender racionalmente os incontornáveis elementos políticos e morais presentes nas razões dadas aos casos difíceis”.19
Diante dessas considerações, tem-se que o constitucionalismo contemporâneo, por meio do fomento à argumentação jurídica, abre um significativo espaço para a Moral e “atenua a distinção da teoria jurídica clássica entre a descrição do Direito como ele é, e a prescrição sobre como ele deveria ser”.20 Daniel Sarmento explicita que:
Os juízos descritivo e prescritivo de alguma maneira se sobrepõem, pela influência dos princípios e valores constitucionais impregnados de forte conteúdo moral, que conferem poder ao intérprete para buscar, em cada caso difícil, a solução mais justa, no próprio marco da ordem jurídica. Em outras palavras, as fronteiras entre Direito e Moral não são abolidas, e a diferenciação entre eles, essencial nas sociedades complexas, permanece em vigor, mas as fronteiras entre os dois domínios tornam-se muito mais porosas, na medida em que o próprio ordenamento incorpora, no seu patamar mais elevado, princípios de justiça, e a cultura jurídica começa a “levá-los a sério”.21
A relevância, pois, deixa de estar na completude do sistema legal e passa para a “dimensão argumentativa na compreensão do funcionamento do direito nas sociedades democráticas contemporâneas e a reflexão aprofundada sobre o papel desempenhado pela hermenêutica jurídica”.22
1.3 Rejeição ao puro formalismo e introdução de métodos mais abertos de raciocínio jurídico: nova hermenêutica constitucional
Como já explorado em momento anterior, começa a ganhar força a ideia de uma nova hermenêutica constitucional, na qual o intérprete ganha espaço na aplicação das regras e princípios do sistema, o que é estimulado pelo constitucionalismo contemporâneo.
Não se tem mais a visão simplificada da hermenêutica clássica, que se satisfazia com a metodologia interpretativa de subsunção e mero silogismo. Essa nova hermenêutica busca a real interpretação do sentido da norma e levou a cabo a revolução do constitucionalismo contemporâneo. Segundo Paulo Bonavides:
[...] tudo mudou, e mudou para sempre, quando advieram os direitos fundamentais da segunda, da terceira e da quarta gerações e a reflexão constitucional passou, numa hora feliz, de compatibilização teórica, para o outro polo — o da vertente tópica, também aristotélica, formando juristas de uma nova escola de pensadores e hermeneutas. Suas postulações fizeram o princípio deslocar a regra, a legitimidade a legalidade, a Constituição a lei, e assim logrou estabelecer o primado da dignidade da pessoa humana como esteio da legitimação e alicerce de todas as ordens jurídicas fundadas no argumento da igualdade, no valor da justiça e nas premissas da liberdade, que concretizam o verdadeiro Estado de Direito.23
Na esteira das lições de Humberto Ávila sobre interpretação, tem-se que as “normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática dos textos normativos”,24 o que leva à desvinculação entre o texto e seus sentidos e à conclusão de que a “Ciência do Direito não pode ser considerada como mera descrição do significado”.25
Desta forma, “a interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas como um ato de decisão que constitui a significação e os sentidos de um texto”. Com isso, a atividade do intérprete “consiste em constituir esses significados”, e não “meramente descrever o significado previamente existente dos dispositivos”.26 Assim, “pode-se afirmar que o intérprete não só constrói, mas reconstrói sentido, tendo em vista a existência de significados incorporados ao uso linguístico e construídos na comunidade do discurso”.27
Diante disso, “interpretar é construir a partir de algo, por isso significa reconstruir”,28 seja porque parte dos textos normativos, que já “oferecem limites à construção de sentidos”, seja porque “manipula a linguagem, à qual são incorporados núcleos de sentido, que são, por assim dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo individual”.29 O autor conclui:
Enfim, é justamente porque as normas são construídas pelo intérprete a partir dos dispositivos que não se pode chegar à conclusão de que este ou aquele dispositivo contém uma regra ou um princípio. Essa qualificação normativa depende de conexões axiológicas que não estão incorporadas ao texto nem a ele pertencem, mas são, antes, construídas pelo próprio intérprete. Isso não quer dizer, como já afirmado, que o intérprete é livre para fazer as conexões entre as normas e os fins a cuja realização elas servem. O ordenamento jurídico estabelece a realização dos fins, a preservação de valores e a manutenção ou a busca de determinados bens jurídicos essenciais à realização daqueles fins e à preservação desses valores. O intérprete não pode desprezar esses pontos de partida. Exatamente por isso a atividade de interpretação traduz melhor uma atividade de reconstrução: o intérprete deve interpretar os dispositivos constitucionais de modo a explicitar suas versões de significado de acordo com os fins e os valores entremostrados na linguagem constitucional.30
Essa atividade de interpretar está longe de ser simples, tanto que foi cunhada a palavra “hermenêutica”, de origem grega, que significa declarar, anunciar, traduzir, interpretar alguma coisa, que passa a ser tomada compreensível. Segundo Michael Moore esse termo teria se originado a partir do discernimento “que existe algo especialmente interpretativo a respeito de disciplinas como a teologia, a crítica literária, o Direito e a psicanálise”.31
O doutrinador esclarece que as coisas que possuem significado são aquelas cujas interpretações oferecem novas razões para ação e crença dependentes da intencionalidade. A interpretação é tida como válida “quando, mas apenas quando serve maximamente ao(s) valor(es) que justificam tratar o fenômeno como um texto”. Ao tratar da justificativa, entende que qualquer valor poderia dar origem à interpretação de alguns “fenômenos”, como, por exemplo, a paz social, respeito mútuo etc., cujas interpretações levam a novas razões, desde que se “justifique tratar tais fenômenos como um texto, ou, então, ele não é texto, nem o raciocínio feito sob ele é interpretação”.32
Diante disso, também se pode dizer que interpretação é a atividade a que se dedica o intérprete ao tentar encontrar o significado de algo, quando por meio desta se é capaz de oferecer novas razões para ação ou crença, a partir de valor(es) que justifica(m) essa análise.
Ora, tratar sobre interpretação e sobre a nova hermenêutica decorrente de um constitucionalismo contemporâneo passa a ser fundamental quando se tem em mente que, apesar de as palavras congeladas em um texto permanecerem as mesmas, seus significados são mutáveis, e podem ser diferentes a depender da sociedade analisada.
O Direito é positivado por meio de texto. A aplicação do texto normativo, que, como já apontado, não é a norma em si, demanda uma interpretação, a fim de se extrair seu significado. Entretanto, “todo ponto de vista é a vista de um ponto”, como afirma o filósofo Leonardo Boff no início da obra em que pretende abordar uma metáfora da condição humana.33
Essa afirmação trata das diversas possibilidades de se ler um texto. Cada leitor, a depender de sua bagagem e do mundo em que vive, será capaz de ler o mesmo texto de diversas formas. E mais, o mesmo leitor, com o transcorrer do tempo, poderá ler o mesmo texto de forma diferente. As palavras serão as mesmas; porém, o contexto do leitor será outro.
Tal é a condição humana de racionalismo limitado. O homem não é um produto acabado, mas resultado do meio social em que vive, e, considerando que a sociedade está em constante transformação, constata-se que o homem e sua racionalidade são históricos, limitados, datados. Isso conduz às ideias de falibilidade e incompletude, com possibilidade de constante aperfeiçoamento do olhar do homem diante do mundo.
Em outras palavras, o texto a ser interpretado pode até permanecer o mesmo, mas se houver uma mudança de valores que justifiquem uma reinterpretação, com o oferecimento de novas razões para se proceder a essa atividade, certamente seu conteúdo sofrerá modificações. Os conceitos são históricos e temporais.
Essa afirmação foi bem sedimentada por Joseph Raz, quando ressalta que as interpretações e os significados podem mudar e realmente mudam, pois “nossos conceitos são complexos e flexíveis”. Alerta que “não devemos ser prisioneiros de algumas características de nossos conceitos em detrimento de outras”.34 O autor esclarece:
Como o significado é relativo a uma perspectiva normativa, ele pode mudar quando essa perspectiva muda. Nossos conceitos são ricos o suficiente para acomodar ambas as maneiras de pensar no significado: como atemporal, a partir de uma única perspectiva, e como mutável, com a mudança de perspectiva.
As perspectivas surgem com as mudanças na cultura e nas condições de vida. Sendo normativas, surgem como novas razões para que novos interesses surjam. As interpretações revolucionárias capitalizam isso.35
No que tange à mudança das razões, leciona que “o processo de mudança não é um processo de adição”, sendo que algumas razões perdem sua força, pois somente fazem sentido e possuem significado para determinada geração. Uma obra de arte, por exemplo, adquire novos significados e perde alguns de seus antigos significados com o passar do tempo. Isso não torna a interpretação e o significado subjetivos. “Isso os torna — em certo sentido — relativos”, considerando que “ter significado é ter significado para alguém”.36
Neste passo, é oportuno deixar registrado que, no entendimento de Owen Fiss, a adjudicação, ou seja, a atividade realizada pelo Judiciário na solução de conflitos, é pura interpretação, uma vez que é um “processo pelo qual o juiz vem a compreender e expressar o significado de um texto normativo dotado de autoridade e os valores incorporados nesse texto”.37 É, portanto, “uma atividade que permite o reconhecimento adequado das dimensões subjetiva e objetiva da experiência humana”.38
Realmente, no que tange à necessidade da interpretação para adequação do texto normativo à realidade, Konrad Hesse há tempos já afirma o “condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade político-social”.39 Aduz que:
A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser consideradas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições.40
Assim, a “Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia”.41 A Constituição, para não ser estéril, “não deve procurar construir o Estado de forma abstrata e teórica”, pois “se as leis culturais, sociais, políticas e econômicas imperantes são ignoradas pela Constituição, carece ela do imprescindível germe de sua força vital”.42 Portanto, a Constituição converte-se “na ordem geral objetiva do complexo de relações da vida”.
Demais disso, é contundente ao dizer que “a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma constitucional”. Porém, alerta que “esse princípio não pode ser aplicado com base nos meios fornecidos pela subsunção lógica e pela construção conceitual”.43 Ressalta que:
Se o direito e, sobretudo, a Constituição, têm a sua eficácia condicionada pelos fatos concretos da vida, não se afigura possível que a interpretação faça deles tábula rasa. Ela há de contemplar essas condicionantes, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais.
Em outras palavras, uma mudança das relações fáticas pode — ou deve — provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. [...] Uma interpretação construtiva é sempre possível e necessária dentro desses limites. A dinâmica existente na interpretação construtiva constitui condição fundamental da força normativa da Constituição e, por conseguinte, de sua estabilidade. Caso ela venha a faltar, tornar-se-á inevitável, cedo ou tarde, a ruptura da situação jurídica vigente.44
Nessa toada, como ressalta Alexandre de Castro Coura, “a efetivação dos direitos e garantias fundamentais depende do processo hermenêutico de construção de sentido dos textos normativos em cada contexto de aplicação, à luz do paradigma sob o qual se constrói a jurisdição constitucional”.45 Aduz que:
Assim, nessa seara, tudo é uma questão de interpretação, mas não de qualquer interpretação. A interpretação será válida se realizada de acordo com a Constituição, aferição que exige uma reflexão acerca dos paradigmas subjacentes à própria decisão jurisdicional, ou seja, das pré-compreensões do intérprete acerca do seu sentido de Constituição. Isso porque um texto jurídico é interpretado segundo a antecipação de sentido que o intérprete tem da própria Constituição, e não de forma supostamente neutra ou isolada.
Com efeito, a Constituição filtra a interpretação do conjunto de regras e princípios que integram o ordenamento jurídico, ao mesmo tempo em que a aplicação do ordenamento, constitucionalmente interpretado, densifica e efetiva a própria Constituição. Nesse sentido, é possível identificar a formação de um sistema de proteção aos direitos fundamentais que parte da Constituição e se estende a todo o ordenamento jurídico, a partir da interpretação constitucional, não mais restrita ao texto da Constituição.46
O autor ainda pondera, sabiamente, que:
correlacionando interpretação constitucional, jurisdição e processo, sob a ótica contemporânea do Direito Constitucional e da Filosofia do Direito, percebe-se que a interpretação de qualquer norma, inclusive das regras de direito processual, é sempre fruto de uma interpretação constitucional, ao menos no paradigma do Estado Democrático de Direito.47
Portanto, nesse contexto de constitucionalismo contemporâneo e, como consectário, de nova hermenêutica, na concepção de Sarmento, o aplicador do direito propõe-se a se dedicar “à discussão de métodos ou de teorias da argumentação que permitam a procura racional e intersubjetivamente controlável da melhor resposta para os ‘casos difíceis’ do Direito”, proporcionando uma valorização da razão prática no âmbito jurídico.48
De fato, como aponta Antonio Cavalcanti Maia, “as democracias nas últimas décadas parecem demandar uma nova teoria do direito que vá além dos moldes positivistas”. Diante da clareza da explicação transcreve-se longo trecho de suas lições:
Nesta nova teoria do direito a interpretação constitucional e a teoria da argumentação jurídica se imbricam. No contexto da Constituição rematerializada, conformada com princípios, valores, direitos fundamentais e diretrizes de denso conteúdo normativo — uma constituição onipresente, que se pretende vinculante e eficaz em todas as áreas jurídicas, inclusive nas relações horizontais de direito privado —, a tarefa de aplicação da lei supõe um esforço de interpretação e argumentação especialmente refinado. Os métodos tradicionais de resolução de conflitos normativos já não são suficientes. As decisões judiciais dependem de argumentos complexos, exigem decisões envolvendo princípios que vão além do uso do esquema lógico-dedutivo, e requerem também por parte do juiz o uso da racionalidade teleológica. Assim, o constitucionalismo alicerçado em princípios e direitos parece exigir que os juízes, ao se depararem cada vez mais com “casos difíceis”, se tornem filósofos (Dworkin) e, além disso, dominem complexas técnicas de ponderação de bens e valores.49
Nesses termos, claro está que houve uma alteração no âmbito do método da aplicação do Direito que, para além da subsunção no caso das regras, exige do juiz o domínio da ponderação no caso dos princípios.
Observe-se, entretanto, que com isso não se quer dizer que houve um menosprezo pelas regras, ou pela subsunção pelo método do “tudo ou nada”. A Constituição, sem dúvida, contém uma vasta quantidade de regras, assim como toda a legislação infraconstitucional. Porém, ao se compreender que a ânsia de previsibilidade, certeza e objetividade — segurança jurídica — não estava sendo atingida somente pela atuação prévia do Poder Legislativo na elaboração de leis formais e de aplicação subsuntiva, diante da complexidade da sociedade plural, esse constitucionalismo contemporâneo trouxe para dentro do ordenamento jurídico os princípios, de textura mais aberta e indeterminada, para que fosse possível tentar solucionar os novos conflitos que surgem a cada dia entre os indivíduos e entre estes e o Estado. Com isso, a Constituição possui princípios e regras, cada qual com sua função específica.
No caso dos princípios, como são “normas que atribuem fundamento a outras normas, por indicarem fins a serem promovidos, sem, no entanto, preverem o meio para sua realização”, existe um alto grau de indeterminação, “no sentido específico de não enumerarem exaustivamente os fatos em presença dos quais produzem a consequência jurídica ou de demandarem a concretização por outra norma, de modos diversos e alternativos”,50 o que caracteriza a sua indeterminação estrutural.
Quer-se com isso dizer que na nova hermenêutica constitucional a restrição e a afastabilidade de princípios por razões contrárias, apesar de não serem elementos essenciais, ocorrem pelo método da ponderação, o que leva a um certo “relativismo axiológico”. Entretanto, “princípios não são necessariamente meras razões ou simples argumentos afastáveis, mas também estruturas e condições inafastáveis”.51
Ademais, como esclarece Humberto Ávila, o método de aplicação da ponderação não pode conduzir a um subjetivismo. Não podem os princípios ser aplicados a qualquer custo, independentemente e por cima de regras, constitucionais e legais, quando estas não confrontam a Constituição. A ponderação deve ser “orientada por critérios objetivos prévios e que harmonize a divisão de competências com os princípios fundamentais, num sistema de separação de Poderes”.52 Caso contrário, “a ponderação não passa de uma técnica não jurídica, que explica tudo, mas não orienta nada. E, nessa acepção, ela não representa nada mais de que uma ‘caixa preta’ legitimadora de um ‘decisionismo’ e formalizadora de um ‘intuicionismo moral’”.53
Demais disso, para municiar os operadores de Direito nessa nova tarefa frente aos “casos difíceis”, em especial os que envolvem princípios, o trabalho doutrinário procura lançar pontes entre teoria e prática, “com instrumentos capazes de conduzi-los a respostas pertinentes para os problemas jurídicos, bem fundadas e ao mesmo tempo verificáveis e, na medida do possível, objetivamente controláveis”.54 Essa controlabilidade seria garantida pelo método da argumentação jurídica, o que acentua o papel das teorias-padrão da argumentação jurídica de Robert Alexy e Neil MacCormick, denominação esta dada por Manuel Atienza, às quais se retornará mais adiante.