3. DANO MORAL POR FATO DE IMPRENSA E SEU RESSARCIMENTO
3.1 Dano extrapatrimonial: conceito e evolução
A partir das Leis das XII Tábuas, no século V a.C., o direito Romano inovou ao substituir o sistema de reparação das ordenações antigas (o que incluir o Código de Manu e o Código de Hamurábi) baseadas na Lei de Talião para a noção de reposição ao status quo ante ao ato lesivo mediante contraprestação pecuniária.
A evolução até a compreensão de que o dano aos direitos de personalidade, isto é, aos direitos extrapatrimoniais, também deveria ser matéria de responsabilidade civil, portanto obrigando o ofensor à indenizar o ofendido, atravessou uma vereda mais longa.
A par das teorias negativistas que visualizavam a impossibilidade de compensar aquilo que não tem vulto econômico, passou a vicejar, a partir do Código Napoleônico, na França, uma cláusula geral que abria espaço para a interpretação extensiva do instituto. Assim, dispunha o artigo 1.382 do referido diploma: “Qualquer fato da pessoa que causar dano a outrem obriga este pela culpa do qual ele ocorreu, a reparar”22.
A cláusula geral do código napoleônico foi reproduzida no ordenamento brasileiro por meio do artigo 159 do Código Civil de 1916, A doutrina, por sua vez, inclinou-se a identificar os danos morais e a catalogá-los como objeto de compensação pecuniária ao seu infrator, posicionamento que passou, aos poucos, a ser adotado pelos tribunais.
De acordo com o ensinamento de Caio Mário da Silva Pereira, o dano moral é conceituado como “qualquer sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária e abrange todo o atentado à sua segurança e tranqüilidade, ao seu amor-próprio estético, à integridade de sua inteligência, à suas afeições, etc...”23
Para o jurista Yussef Said Cahali, dano moral
é a dor resultante da violação de um bem juridicamente tutelado, sem repercussão patrimonial. Seja dor física – dor-sensação, como a denominada Carpenter – nascida de uma lesão material; seja a dor moral – dor-sentimento, de causa imaterial; (...) é a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem e que são a paz, a tranquilidade de espírito, a liberdade individual, a integridade individual, a integridade física, a honra e os demais sagrados afetos, classificando-se desse modo, em dano que afeta a parte social do patrimônio moral (honra, reputação, etc.) e dano que molesta a parte afetiva do patrimônio moral (dor, tristeza, saudade, etc.), dano moral que provoca direta ou indiretamente dano patrimonial (cicatriz deformante, etc.) e dano moral puro (dor, tristeza, etc.24)
Admite, portanto, Cahali, que o objeto da prestação pecuniária em se tratando de danos morais é a compensação, eis que impossível a reparação patrimonial pura e simples.
Carlos Roberto Gonçalves ainda assevera que:
Dano moral é o que atinge o ofendido como pessoa, não lesando seu patrimônio. É lesão de bem que integra os direitos da personalidade, como a honra, a dignidade, intimidade, a imagem, o bom nome, etc., como se infere dos art. 1º, III, e 5º, V e X, da Constituição Federal, e que acarreta ao lesado dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação.25
O atual Código Civil em vigor manteve, em comparação ao Código de 1916, um modelo aberto ao regular a responsabilidade civil, prevendo as condições de ilicitude que, inclusive referente ao dano moral, são capazes de configurar a responsabilidade civil aquiliana:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
(...)
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.26
A novel legislação inovou o tema, em relação ao diploma anterior, em uma série de tópicos: em primeiro lugar, trouxe ao proscênio a regra da proporcionalidade da indenização arbitrada em razão do grau de culpa do agente (o parágrafo único do artigo 944 consiste exceção à diretriz de reparação in totum).
Em segundo, estatuiu hipóteses em que a responsabilidade do agente passa a ser também objetiva, ou seja, em que o infrator passa a responsabilizar-se civilmente independente da verificação de culpa (nas modalidades imprudência, negligência e imperícia) e dolo. É o caso, por exemplo, das empresas de comunicação, que passam a responder objetivamente no caso de ato ilegal ofensivo à honra alheia gerado por funcionário, correspondente ou representante a serviço desta.
Por outro lado, o Código também passou a regular casos específicos de responsabilidade civil e de diretrizes gerais para o arbitramento da indenização. O artigo 953, nesse diapasão, é interessante ao nosso estudo, posto que prescreve a indenização derivada de dano moral por injúria, calúnia ou difamação, franqueando ao magistrado, na falta de referência material, o critério equitativo para quantificar o quantum debeatur.
Cumpre realizar uma breve digressão, neste momento, quanto a ressaltar que a legislação atual conferiu ao tratamento do dano moral proveniente de atividade de imprensa o regime convencional estabelecido nos Códigos Civil e Penal. Até 30 de abril de 2009, entretanto, vigorou, para o tratamento da atividade, o procedimento estabelecido na lei 5.250 de 1967 (Lei da Imprensa), diploma revogado após arguição de descumprimento preceitos fundamentais julgada pelo pleno do STF.
Tratava-se de legislação manifestamente anacrônica, elaborada no auge da ditadura militar, incompatível com a ordem democrática e o novo contexto histórico e constitucional do país27.
3.2 Do Abuso de Direito
A configuração da responsabilidade civil proveniente do fato de imprensa, não se limita à afronta direta e literal aos direitos individuais extrapatrimoniais, comportando também um aspecto atentatório quando nitidamente manifesta-se o abuso do direito de se manifestar ou opinar em relação aos fins a que se dirige a divulgação.
O Código Civil de 2002, naquilo que reproduz mesmo teor de seu predecessor de 1916, estabelece, no artigo 187, ao atribuir que:
também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes28.
A persecução do conceito, neste caso, é mais complexa: primeiramente, a lei não estabelece a ilicitude em conexão com um ato executado claramente à margem da lei (posto que o tal condição já está prevista no artigo de lei anterior do mesmo diploma legal).
As referências históricas do abuso do direito remetem à Idade Média, na repressão dos denominados atos emulativos (aemulatio), reputados como aqueles deliberadamente desferidos com o fim de prejudicar a outrem, ainda que sem contrariar, numa primeira análise, o sistema normativo.29
As bases da doutrina adotadas no Brasil sedimentaram-se a partir da justaposição de teorias tão distintas quanto complementares: de Georges Ripert tomou-se o critério de abuso do direito como a inadequação do exercício legal em vista da matriz axiológica que o estatuiu; Louis Josserand lobrigou no abuso de direito a inconformidade de ação do seu titular com os interesses da coletividade; e René Savatier aduziu que a anormalidade abusiva engendra-se na extrapolação do direito exercido, o avanço sobre a linha-limite fixada pelos costumes, sob a óptica do cidadão médio.
Assim, das teorias consultadas provêm reunidos os elementos enunciados no caput do artigo 187 mencionado para a caracterização do abuso do direito: um ato que não é ilícito manifesta ou formalmente, mas que pelo seu excesso, desvio ou extrapolação de atividade, torna-se danoso à coletividade, à medida que contraria o fim social ou econômico do sistema normativo.30
Neste caso, então, não se trata de ilegalidade no sentido usual e comum, mas no exercício de um direito de modo a exorbitar as suas reais funções sociais e econômicas, em execução ao revés do espírito da lei e, portanto, transgredindo a sua coesão interna (postulados, v. g., de perseguição de uma função social para o comando legal e da observância da boa fé objetiva, como fio condutor de todo o arcabouço civilista).
A vedação ao abuso de direito é, portanto, à luz destes estudos, norma interna cujo desiderato é a promoção da relativização dos direitos subjetivos consagrados no sistema em nome da preservação de integridade dos demais direitos assegurados, sejam de orbe individual ou coletivo.
Na hipótese do confronto aparente do exercício da livre expressão com os direitos à honra e intimidade, a ausência de prudência no exercício de qualquer um destes direitos absorve-se na figura do abuso do direito, notadamente quando há, na análise do caso concreto, busca a fins estranhos a seu propósito declarado (por exemplo, a intenção de promover, a pretexto de “informar”, escândalo ou desmoralização pessoal, violando, neste caso, o princípio da boa fé).
3.3 Dos Critérios de “Reparação”
Não sendo possível o restabelecimento do statu quo ante à lesão, em se tratando de danos extrapatrimoniais, é impossível se cogitar a reparação, mas sim o ressarcimento consubstanciado em indenização compensatória, proporcional à natureza e dimensão do agravo, ao impacto na vida normal do ofendido (duração e intensidade do sofrimento) e na consideração das variáveis pessoais das partes (posição política, situação econômica, repercussão social...).
Além do caráter supletivo e satisfativo da indenização ao ofendido, a jurisprudência pátria vem abrigando com sucesso a doutrina anglo-saxã dos punitive damages, nestas plagas vertidas por doutrinadores como Carlos Roberto Gonçalvez como “teoria do desestímulo”. Sustenta o magistrado e jurista:
Nos Estados Unidos, as indenizações por dano moral são, em geral, de valor bastante elevado, objetivando desestimular novas agressões. A atribuição de valor elevado constitui advertência não só ao ofensor como à própria sociedade, de que não são admitidos comportamentos dessa espécie.31
Carlos Alberto Bittar exorta, igualmente, a aplicação da teoria do desestímulo, somando à função compensatória da indenização outra propedêutica no sentido de dissuadir a parte infratora de não reiterar a conduta danosa:
Adotada a reparação pecuniária - que, aliás, é a regra na prática, diante dos antecedentes expostos - vem-se cristalizando orientação na jurisprudência nacional que, já de longo tempo, domina o cenário indenizatório nos direitos norte-americanos e inglês. É a de fixação de valor que serve de desestímulo a novas agressões, coerente com o espírito dos referidos punitive ou exemplare damages da jurisprudência daqueles países.
Em consonância com essa diretriz, a indenização por danos morais deve traduzir-se em montante que represente advertência ao lesante e à sociedade de que se não se aceita o comportamento assumido, ou o evento lesivo advindo. Consubstancia-se, portanto, em importância compatível com o vulto dos interesses em conflito, refletindo-se, de modo expressivo, no patrimônio do lesante, a fim de que sinta, efetivamente, a resposta da ordem jurídica aos efeitos do resultado lesivo produzido. Deve, pois, ser quantia economicamente significativa, em razão das potencialidades do patrimônio do lesante.
Com efeito, o peso do ônus financeiro é, em um mundo em que cintilam interesses econômicos, a resposta mais adequada a lesionamentos de ordem moral.32
A análise da jurisprudência, como demonstrada no tópico a seguir, ajuda-nos a constatar a preocupação do Judiciário em se atingir um critério quantitativo equilibrado, todavia, em relação ao montante arbitrado a título de indenização, de tal modo que o valor não cause indiferença ao ofensor, mas também não fomente o que se convencionou chamar de “indústria do dano moral”33, pois o próprio Código Civil, em seu artigo 884, veda o enriquecimento sem causa.
Sob esse aspecto, tem boa aceitação nos tribunais a doutrina de Sérgio Cavalieri Filho e sua compreensão de que os meros acotovelamentos e dissabores cotidianos não se incluem na órbita de dano moral, deixando de lado, na análise da matéria, também, as sensibilidades exacerbadas e os melindres emocionais e idiossincrasias que fujam ao padrão do cidadão médio. Desta maneira:
[...] só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de fazerem parte da normalidade do nosso dia-a-dia, no trabalho, no trânsito, entre os amigos e até no ambiente familiar, tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo. Se assim não se entender, acabaremos por banalizar o dano moral, ensejando ações judiciais em busca de indenizações pelos mais triviais aborrecimentos.34
3.4 A Caracterização da Responsabilidade Civil
3.4.1 A Hermenêutica Jurídica à Luz do Pós-Positivismo
Hermenêutica aproxima-se, quanto ao significado, da palavra interpretação (tal é a tradução do substantivo grego correspondente), entretanto com uma densidade mais profunda.35 Se, na Grécia antiga, a hermenêutica consistia na revelação do conhecimento dos deuses aos mortais, no direito moderno ela também conserva função oracular: é a busca daquilo que o legislador pretende em nível abstrato e que o magistrado constrói, interpreta e aplica ante o caso concreto que se lhe apresenta, considerando o ordenamento jurídico um sistema uno e harmônico, de regras e princípios encadeados e submetidos a hierarquia peculiar.
Não deixa o julgador de praticar um tipo de alquimia. Transmuta o que está no nível macro para o nível micro e fazendo-o confirma ou modifica, recursivamente, o sistema maior. O intérprete, nesta visão, não só aplica como também gera o sistema normativo, complementando o serviço do legislador. É o que Dworkin chama de judicialização da política, entronizando o magistrado em função particularmente social.36
O trabalho hermenêutico não compreende modalidades múltiplas e autoexcludentes, mas apenas dimensões supletivas entre si e que levam, quando associadas, à compreensão adequada da extensão das normas. Como lecionou Miguel Reale, uma sentença nunca é apenas um silogismo entre premissa maior e menor, mas uma vivência normativa do problema, dentro da qual o magistrado coteja uma multiplicidade de fatores intrínsecos a informar o valor da norma e o valor dos interesses em conflito37.
Historicamente, movimentos filosóficos foram surgindo com a finalidade de justificar o direito enquanto fenômeno social e classificá-lo em relação aos demais ramos da ciência. Na Idade Moderna, o jusnaturalismo ascendeu como uma reação necessária ao absolutismo, influenciado pelas doutrinas filosóficas de pensadores como São Tomás de Aquino e Santo Agostinho38 e, mais tarde, por movimentos como o Iluminismo.
Sem dúvidas, os valores cristãos da fraternidade, da compaixão e da comiseração humana imbricaram-se na concepção jusnaturalista de que o homem é titular de certos direitos simplesmente pela sua materialidade enquanto ser vivo. E que o gozo de tais prerrogativas é de tal modo divino, que nem mesmo uma ordem jurídica imposta pela autoridade política estabelecida seria suficiente para derrogá-las.
Em pouco tempo, percebeu-se algo fora da rota almejada: aquilo que sobrava ao jusnaturalismo em boas intenções é o mesmo tanto que lhe faltava em viabilidade prática. Como explica Norberto Bobbio39, a falha crucial do jusnaturalismo é a imprecisão de suas disposições, a vagueza de seus conceitos e a incerteza de sua aplicação. A falta de um sistema de garantias público, determinado e objetivo conduz à vala da insegurança jurídica generalizada. Eventualmente, transforma-se em instrumento de manipulação dos detentores do poder em determinado tempo. Nas lições do senador italiano:
Os direitos do homem constituem uma classe variável, como a História deste último século suficientemente mostra. O elenco dos direitos humanos tem se modificado e vai se alterando com as mudanças das condições históricas, conforme as necessidades e seus interesses, das classes dominantes, dos meios disponíveis para sua atuação, das transformações técnicas etc. Direitos declarados absolutos ao fim do século XVII, como a propriedade “sagrada e inviolável”, foram submetidos a limitações radicais nas declarações contemporâneas. Não é difícil prever que possam emergir no futuro novas pretensões que ora não podemos vislumbrar, como o direito de não portar armas contra a própria vontade, ou o direito a respeitar a vida dos animais também, e não apenas a dos homens. O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece ser fundamental, num período histórico e numa civilização particular, não é fundamental em outras épocas e outras culturas.40
Em resposta ao jusnaturalismo e seus problemas de ordem prática, surgiu, por volta do século XVIII, o ideário do positivismo jurídico, na esteira do formalismo científico da doutrina homóloga de Augusto Comte. A crença, então, seria que ao compartimentar o direito como uma ciência desvinculada do campo da ética e reduzida às normas codificadas pelo Estado, aplicadas em caráter coativo e imperativo, afastar-se-lhe-ia a pessoalidade, a insegurança jurídica, restando preservada a “pureza” do direito.
O positivismo atingiu sua vertente mais extremada na primeira metade do século XX, dando origem ao chamado legalismo estrito: nessa vertente, a norma editada sob a égide do Estado é sempre a diretriz a se seguir, incondicionalmente e independente de qualquer outra consideração, pois “vale o que está escrito”, a fria letra assentada nos cânones legais. Esse viés positivista extremado pode ser ilustrado por obras como, por exemplo, Fausto de Goethe. A validade presumida do contrato em que Fausto celebra um pacto demoníaco com Mefistófeles ampara-se num entendimento estritamente positivista, em qual o contrato, assim que celebrado, desde que verificáveis alguns requisitos de ordem pública, deve ser fatalmente executado por ter força de lei entre as partes, pouco importando os fins colimados, a sua função social, os direitos disponíveis, a ausência de boa fé das partes ou a desproporção entre as prestações assumidas.
O pensamento de que as normas poderiam destituir-se de qualquer fundamento axiológico levou à estatolatria, ao culto ao legislador; o fetichismo legal contribuiu decisivamente para a instauração de tiranias, como o regime fascista, na Itália, o nazista, na Alemanha, e o stalinista, na Rússia, responsáveis por alguns dos maiores genocídios da História. A partir de então, o direito entrou em crise, pois o jusnaturalismo mostrara-se superado, e o positivismo jurídico clássico já não entregava a Justiça à sociedade de uma maneira razoável.
A partir da segunda metade do século XX, começou a ganhar corpo a defesa de uma corrente moderada do positivismo, especialmente o positivismo ético, termo originalmente cunhado por Bobbio.41 A doutrina em voga, desta feita, não mais afirmava o direito como um bem em si, mas como um meio que serve para realizar determinado bem, a ordem social, cuja realização depende da obediência ao direito positivo. Bobbio aplainou o terreno para a ascensão de um novo movimento, então, baseado na precedência dos princípios. Sob as ruínas do juspositivismo clássico, é que se moldou o pós-positivismo, assim definido por Ana Paula de Barcellos e Luís Roberto Barroso:
O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de reaproximação entre Direito e Ética.42
Podemos traçar um paralelo entre positivismo e pós-positivismo dentro do seguinte quadro:
Quadro 1: Paralelo entre Positivismo Jurídico e Pós-Positivismo
Positivismo Jurídico |
Pós-positivismo |
|
Postura do intérprete |
Neutra. Extrai o que está embutido no enunciado legal. |
Construtiva. Atribui sentido ao enunciado legal |
Visão do sistema |
O sistema é fechado e unidisciplinar. |
O sistema é complexo e interdisciplinar. |
Supremacia |
Do texto legal apropriadoao fato concreto. |
Da Constituição, destacando-se a normatividade dos princípios. |
Âmbito |
Ser/ Dever ser |
Poder ser |
Método |
Subsuntivo / Silogístico |
Ponderativo (prudência) |
Valor maior |
Segurança |
Justiça Distributiva (Equidade) |
Interpretação |
In abstracto. O preceito normativo é o ponto de chegada. |
In concreto. O preceito normativo é o ponto de partida. |
Papel do juiz |
Passivo. Reproduz a lei;é a “boca da lei”43. |
Ativo. Produz o direito tendoa lei como base. |
Parte das críticas assacadas contra a doutrina sobre a qual se discorre deriva de uma análise superficial dela, que conduz à falsa associação do pós-positivismo com o chamado ativismo judicial. O pós-positivismo não segrega o positivismo jurídico clássico, mas o incorpora e propõe uma metodologia para modernizá-lo, de forma que consiga atender às demandas da sociedade pós-industrial por justiça. Preconiza que a atividade do magistrado deve concentrar-se em formular a decisão tomando às mãos as opções disponíveis entre as cláusulas abertas do sistema, conjugando seus elementos, realizando escolhas entre as que o ordenamento jurídico, numa abordagem sistemática, prediz. E com isso, promove-se a gestão normativa legal.
O ativismo judicial, diferentemente, desliga-se do conceito anterior porque admite a atuação praeter legem (e algumas vezes contra legem) do Judiciário, em quaisquer casos, pelo arbítrio pessoal do julgador, ao arrepio das normas positivadas, como se ao juiz fosse válida a usurpação da competência legislativa do Estado ou admissível a transformação das varas e tribunais no prolongamento de seu quintal.
É, pois, o pós-positivismo um conceito antagônico ao ativismo judicial. O pós-positivismo assenta uma diretriz que atribui função normativa aos princípios inseridos na Lei Fundante, assim considerados como gênero, do qual as regras ordinárias são espécie. Eleva a ordem jusprivatista (baseada nos Códigos) à juspublicista (com a Constituição previamente considerada em todos os graus de manifestação do direito) e favorece o desenvolvimento de uma nova medida para a hermenêutica constitucional: o neoconstitucionalismo.44
3.4.2 Critérios de configuração e verificação da Responsabilidade Civil
A configuração da responsabilidade civil, nos termos dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil presume a verificação simultânea de quatro elementos, sem os quais a pretensão indenizatória falece, quais são: o ato ilícito (na modalidade comissiva ou omissiva), o dano efetivamente apurado, o nexo de causalidade entre os dois e a evidência de culpa ou dolo do agente causador (exceto nas hipóteses legalmente previstas, em que tem palco a teoria do risco da atividade ou negócio).
Para a temática do nosso trabalho, não basta a análise superficial dos elementos da responsabilidade civil, tendo em vista que trata-se da colisão entre dois princípios constitucionais irmãos.
A solução que parece apontada tanto pela jurisprudência, como pela doutrina (em especial pela corrente pós-positivista) está na técnica de balanceamento, ponderação ou ainda moderação dos princípios, permitindo que eles incidam e coabitem harmonicamente o universo normativo, desde que usada a temperança pelo magistrado em seu mister, que não se deve limitar mais em apenas dizer o direito, mas participar efetivamente de seu processo de produção.
Ana Paula Barcellos assevera que:
a ponderação pode ser descrita como uma técnica de decisão própria para casos difíceis (do inglês ‘hard cases’), em relação aos quais o raciocínio tradicional da subsunção não é adequado. A estrutura geral da subsunção pode ser descrita da seguinte forma: premissa maior – enunciado normativo – incidindo sobre premissa menor – fatos – e produzindo como conseqüência a aplicação da norma ao caso concreto. O que ocorre comumente nos casos difíceis, porém, é que convivem, postulando aplicação, diversas premissas maiores igualmente válidas e de mesma hierarquia que, todavia, indicam soluções normativas diversas e muitas vezes contraditórias. A subsunção não tem instrumentos para produzir uma conclusão que seja capaz de considerar todos os elementos normativos pertinentes; sua lógica tentará isolar uma única norma para o caso45
Assim, a doutrina da ponderação passou a fornecer novos instrumentos para a função jurisdicional em seus desafios contemporâneos, como um consectário no exercício de se atribuir soluções a casos complexos (“hard cases”), o que não mais é possível mediante a aplicação da fórmula positivista clássica tão-somente.
Nesse contexto, o princípio da ponderação aparece como gêmeo da ideia de hierarquização de princípios para o processo decisório do magistrado, que deve sopesar os direitos fundamentais em conflito e permitir seu exercício voltado à função social, ainda resguardando os ideais democráticos que os balizam, conforme preconiza Ronald Dworkin:
Quando dois princípios entram em colisão — por exemplo, se um diz que algo é proibido e outro, que é permitido —, um dos dois tem que ceder frente ao outro, porquanto um limita a possibilidade jurídica do outro. O que não implica que o princípio desprezado seja inválido, pois a colisão de princípios se dá apenas entre princípios válidos.46
A regra de temperança, segundo Robert Alexy, parte das dissonâncias entre dois comandos igualmente válidos para que, através de cessões na aplicação de ambos, seja alcançado um resultado novo que resulta da justaposição de ambos, mas nunca de sua supressão:
Segundo a lei da ponderação, a ponderação deve realizar-se em três graus. No primeiro grau dever ser determinada a intensidade da intervenção. No segundo grau trata-se, então, da importância dos fundamentos que justificam a intervenção. Somente no terceiro grau realiza-se, então, a ponderação em sentido restrito e verdadeiro.47
A análise da ofensa à honra como ato ilícito puro ou abuso de direito, em esfera cível, contempla a limitação da faculdade de informar e de livre expressão, ou, em visão mais direta, traz a lume o conflito entre o direito de informação da coletividade e outros direitos individuais de primeira dimensão.
Identificados os pontos de atrito e convergência mediante a análise do julgador do caso concreto, é possível alcançar uma lógica jurídica pela qual elementos de um ou de outro princípio serão flexibilizados, como demonstrado nos estudos do tópico que segue.
No Direito comparado, dois casos de ponderação entre aparente conflito dos dois princípios estudados são emblemáticos.
No primeiro caso, uma Corte alemã, no julgamento conhecido como Titanic ponderou sobre a condenação de uma revista (que empresta seu título ao caso) em relação à publicação de duas matérias a respeito de um oficial das Forças Armadas do país que fora à reserva por ter ficado tetraplégico.48
Na primeira matéria, a revista apresentou uma série humorística de personalidades públicas, imputando a elas um atributo consistente em um verbo que completava a frase “Nascido para...”, como se todas fossem predestinadas a tal função: no caso do militar, “nascido para matar”; na segunda matéria, o militar era chamado de aleijado pela mesma revista.
A Corte germânica estabeleceu um sistema de case especific balancing para o caso, salientando que a condenação só poderia ocorrer no caso do autor ter sofrido abalo de tal modo que justificasse a tutela e a intervenção na liberdade de imprensa dos réus.
Assim, no primeiro caso, a corte optou por reverter a condenação, uma vez que tratou-se, no seu entender, de matéria satírica, sem intenção de produzir ofensa e dentro de um padrão social moderado incapaz de afetar, de maneira decisiva, os direitos de personalidade do autor.
Sobre a segunda publicação, entendeu a corte por manter a condenação, porque a humilhação que a ofensa propalada causava ao ofendido tratava-se de manifesta agressão aos direitos de personalidade do cidadão, afrontando diretamente a sua dignidade e merecendo a editora tal reprimenda, até mesmo pelo efeito didático e informativo, considerando o padrão editorial futuro e a repercussão desta decisão.
O equilíbrio, na análise dos atos decorrentes da imprensa, permite se afeiçoarem critérios para compatibilizar um direito coletivo (liberdade de imprensa) com a fruição dos direitos individuais
Nos EUA, ficou famoso o caso NY Times Vs. Sullivan, que firmou um precedente de julgamento em casos correlatos com base no entendimento da actual malice, que consiste numa série de cautelas impostas à imprensa que estabelecem a fronteira entre a sua liberdade de informar e a prática de ilícito desencadeador da responsabilidade civil.
No caso em questão, a Suprema Corte dos EUA reconheceu a importância da imprensa no papel instrumental de fiscal popular das pessoas e órgãos públicos, exigindo como pressuposto de condenação a configuração do dolo (malice) ou da conduta temerária (reckless disregard) na apuração e veiculação da notícia.
Vertendo o entendimento para termos nacionais, trata-se do condicionamento do dano moral à configuração do dolo ou da culpa, na modalidade de negligência, imprudência ou imperícia de seu produtor ou editor quando da produção da notícia.
Neste caso, a mídia ultrapassaria o seu papel cultural ou informativo e não mais atendendo ao interesse público (mas sim prestando-lhe um desserviço), passaria a agir, na verdade, contra o algoz contra a vítima.