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ADPF 54: a antecipação do parto terapêutico como conquista evolutiva do Direito

Leia nesta página:

A decisão do STF sobre a interrupção de gestação de fetos anencéfalos é analisada sob a perspectiva de um romance em cadeia. Hoje a antecipação do parto terapêutica nesses casos não é considerada aborto, nos termos da legislação penal infraconstitucional.

Resumo: O presente artigo busca analisar a decisão do SupremoTribunal Federal sobre a ação de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, que teve por finalidade buscar uma interpretação conforme a Constituição da disciplina legal dada ao aborto pela legislação penal infraconstitucional, para explicitar que ela não se aplica aos casos de antecipação terapêutica do parto na hipótese de fetos portadores de anencefalia. O texto procurará descrever e argumentar, a partir de teóricos do direito, o posicionamento daquela corte sobre um caso de tamanha relevância para o ordenamento jurídico e para toda a sociedade. Utiliza-se para tanto a teoria de Dworkin, de direito como integridade, de Habermas, racionalidade comunicativa do direito, de Wolkmer, com o pluralismo jurídico e de Lhumann a partir da teoria sistêmica em sua análise sobre a conquista evolutiva do direito.

Palavras-chave: Anencefalia. Romance em cadeia.  


O início do Romance

A anencefalia consiste numa má formação congênita do córtex e dos hemisférios cerebrais causados por um defeito no tubo neural. O sistema nervoso central, responsável pela consciência, comunicação não chegam a ser formados, aqueles que portam esta patologia possui apenas resíduos do tronco encefálico e não conseguem sobreviver por muito tempo após o parto, alguns chegam a morrer durante a gestação, o que pode causar danos a saúde da gestante. Tal patologia pode ser diagnosticada ainda no início da gravidez com total precisão. Foi nesse sentido que em 2004 a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – a fim de declarar a inconstitucionalidade da interpretação dos art. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal[1], como impeditivos da antecipação terapêutica do parto nas hipóteses de gravidez de fetos anencefálicos. Segundo estes criminalizar e obrigar uma mulher a carregar dentro de si um feto sem perspectiva de vida fere a dignidade humana, a liberdade, o direito de autodeterminação e a saúde física e psíquica desta. Além do que a antecipação terapêutica não é vedada pelo ordenamento jurídico, não pode, portanto, ser proibida segundo o princípio da legalidade.

Ainda em 2004 o relator do caso, o ministro Marco Aurélio, concedeu uma liminar permitindo a antecipação terapêutica do parto nos processos em que as decisões ainda não haviam transitado em julgado além de paralisar os processos que criminalizavam a prática, no entanto tal liminar foi derrubada meses depois em plenário. Desde então o tema vem sendo debatido, em 2008 foram realizadas audiências públicas, do qual participaram diversas entidades entre religiosos, cientistas, médicos e movimentos sociais feministas. Mas só foi agora em 12 de março de 2012, após oito anos de trâmite, é que o Supremo Tribunal Federal se posicionou em definitivo sobre o assunto. O STF alegou a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124 a 128 do Código Penal, quando se tratar de gestação de anencefálicos, segundo este interromper este tipo de gestação não corresponde a prática do aborto, pois como dito pelo ministro relator do caso:

Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível. (…) o feto anencéfalo, mesmo biologicamente vivo, porque feito de células e tecidos vivos, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, acrescento, principalmente de proteção jurídico-penal. Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica. (Voto min. Marco Aurélio, p. 30)[2]

É nesse sentido, que a imposição estatal de se manter a gravidez de anencefálicos vai contra os princípios básicos previstos constitucionalmente, que garantem a dignidade humana, a liberdade, privacidade, autonomia, saúde e integridade física, moral e psicológica as mulheres.


A quebra do Romance

Segundo dados oferecidos pelo ministro Marco Aurélio até o ano de 2005 foram formalizadas aproximadamente três mil autorizações nas instâncias inferiores favoráveis a interrupção da gestação quando o feto sofria de anencefalia, isso demonstra que há uma continuidade entre as interpretações utilizadas pelos juízes e Tribunais de Justiça, como se todas, segundo a teoria dworkiana, compusessem um único romance criado por um único juiz. Quando ainda em 2004 o Supremo decide derrubar a liminar, que anteriormente havia tomado em sentido favorável à interrupção gestacional de anencéfalos houve um rompimento com a continuidade existente, o que proporcionou uma desintegração do sistema jurídico.

A ministra Rosa Weber utiliza-se da teoria dworkiana quando afirma que “todos os caminhos, a meu juízo, conduzem à preservação da autonomia da gestante para escolher sobre a interrupção da gestação de fetos anencéfalos”[3],  demonstrando que nesta situação só há uma única resposta correta. O Direito deve ser visto como integridade, ele deve garantir uma continuidade, como num romance em cadeia, em que cada juiz deve escrever o seu capítulo de modo a construir o romance da melhor forma possível. Isso não significa que o juiz deve basear-se unicamente pelas jurisprudências passadas, pelo contrário, este deve ater-se as particularidades do caso concreto, realizando uma árdua análise deste e se preciso for deve atualizar a decisão segundo as novas perspectivas sociais, atendendo sempre a justiça a equidade e o devido processo legal.

O Direito como integridade pede que o judiciário continue interpretando o mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado com sucesso (DWORKIN, 2003, p. 273). O STF rompe, portanto, com a concepção de Direito como integridade a partir do momento em que ele decide de modo contrário, sem se ater as construções já realizadas anteriormente. Instala-se a partir da queda da liminar uma onda de insegurança jurídica. O caso mais peculiar que exemplifica esta onda é o de Severina, uma nordestina de Chã Grande, Pernambuco, personagem real de um documentário que teve sua vida abalada por esta decisão.

Severina[4] estava grávida de um feto anencefálico e um dia antes da data marcada para a realização da antecipação terapêutica do parto, ela viu-se diante de um impasse, o Supremo decidiu pela revogação da liminar e Severina foi proibida de realizar a interrupção da gravidez, tendo que iniciar um processo judicial para conseguir uma autorização, passando esta por uma longa espera, encoberta por preconceitos e pelo mau atendimento da saúde pública brasileira. Severina é apenas uma dentre inúmeras mulheres que passaram por este sofrimento e que não tiveram de imediato a sua liberdade de escolha legitimada pelo Estado, devido a concepções equivocadas baseadas em preceitos morais de cunho religioso. Diversas entidades religiosas participaram das audiências públicas como a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – entre outras, que declaravam que permitir a interrupção de uma gestação, independente de qual seja a causa, constitui um crime contra a vida, que fere o principal principio jurídico que é o de salvaguardar a vida humana. Cézar Peluso[5] um dos ministros a votar contra afirmou que não há distinção entre o aborto de anencéfalos do racismo, sexismo e especismo, para ele todos estes casos representam a superioridade de uns sobre os outros.

Percebe-se que este caso a ser analisado envolve diversos âmbitos da sociedade, não se trata somente de uma questão jurídica, mas também de uma questão moral. Segundo Habermas o direito e a moral são sistemas co-originários, ou seja, são dependentes e se complementam. A moral, segundo ele, informa o processo de produção e interpretação do Direito, pois quem interpreta também é um sujeito moral. No entanto, é preciso que essa moral seja racional, que ela provenha de uma construção comunicativa, de um debate qualificado. Algo racional, na concepção habermasiana, é algo fundamentado, que pode ser sustentado diante dos questionamentos. É segundo esta concepção que podemos afirmar que este tema só pode ser discutido a partir de argumentos jurídicos, éticos e científicos e argumentos de cunho religiosos que não podem ser fundamentados devem ser descartados.

Vale dizer: concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa e espiritual – ou a ausência dela, o ateísmo – serve precipuamente para ditar a conduta e a vida privada do indivíduo que a possui ou não a possui. (Voto Min. Marco Aurélio, p.14)[6]

Porém, isso não impede que as entidades religiosas façam parte do debate, dispensá-las seria uma atitude antidemocrática, elas só não podem utilizar argumentos ideológicos para embasar suas opiniões.

Ainda sobre a ótica habermasiana, é essencial considerar o debate público criado em torno do tema, tanto no âmbito social – pesquisas científicas, produção de notícias, documentários – como no âmbito do judiciário, como dito anteriormente, inúmeras foram as decisões favoráveis à interrupção terapêutica do parto, o que demonstra um entendimento sobre o caso, que só é possível, segundo Habermas, através da democracia.

É o processo democrático, que possibilita a livre flutuação de temas e de contribuições, de informações e de argumentos, assegura um caráter discursivo à formação política da vontade fundamentando, deste modo, a suposição falibilista de que os resultados obtidos de acordo com esse procedimento são mais ou menos racionais. (HABERMAS, 2003, p.308)

O debate público, portanto, tem como função garantir o entendimento, que deve ser compartilhado socialmente e é ele que determina o maior ou menor grau de racionalidade do discurso. Não levar o debate acumulado em consideração é o mesmo que excluí-lo do processo democrático.


O desenrolar do Romance

Como sabemos, o Direito não acompanha a velocidade da sociedade, devido à morosidade do Legislativo na feitura de novas leis e na regulamentação de outras já criadas, além de um ordenamento rígido quanto às mudanças. Exemplo disso é o caso supracitado na consideração do Min. Marcos Aurélio ao citar em seu voto a expressiva busca pelo judiciário e a quantidade de autorizações para a interrupção gestacional em razão da incompatibilidade do feto com a vida extrauterina. A grande procura ao judiciário se dá basicamente pela busca da solução de uma “aparente” dicotomia entre a lei ordinária e a constituição. A literalidade do artigo que regula sobre o aborto, no Código Penal de 1940, reflete uma realidade que muito dista da vivida hoje. E adiante das transformações que a sociedade convive a cada dia, a leis ordinárias precisam se atualizar para conseguir dar respostas a todas as demandas. Enquanto o legislativo não regula as especificidades, cabe ao juiz, a partir das normas fundamentais, aplicar o direito na sua integridade.

Há um embate nos votos dos ministros a cerca de uma possível usurpação do poder legislativo pelo poder judiciário ao decidir sobre a antecipação terapêutica do parto:

Destarte, não é lícito ao mais alto órgão judicante do País, a pretexto de empreender interpretação conforme a Constituição, envergar as vestes de legislador positivo, criando normas legais, ex novo, mediante decisão pretoriana. Em outros termos, não é dado aos integrantes do Poder  Judiciário, que carecem da unção legitimadora do  voto popular, promover inovações no ordenamento  normativo como se parlamentares eleitos fossem. (Voto do Min. Lewandowski, p.13)[7]

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Lewnadowski, apesar de não citar diretamente, faz lembrar o ensinamento de Kelsen, quando este diz:

No primeiro caso, o tribunal cria, com a sua decisão dotada de força precedente, Direito material novo; no segundo caso, a interpretação contida na decisão assume o caráter de uma norma geral. Em ambos os casos, o tribunal que cria o precedente funciona como legislador, talqualmente o órgão a que Constituição confere poder pra legislar.[...] Se os tribunais é conferido o poder de criar não só normas individuais mas também normas jurídicas gerais, eles entrarão em concorrência com o órgão legislativo instituído pela Constituição e isso significará uma descentralização da função legislativa. (KELSEN, 2009, p.278-279)

Contradizendo o exposto pelo ministro, é normal que o órgão responsável pelo controle de constitucionalidade, a partir das várias técnicas ou mecanismos mediante os quais se procede o exame de compatibilidade de normas com o texto constitucional, garanta o alargamento da ação protetiva dos direitos fundamentais. Portanto, não seria aqui uma usurpação de competências ou inovação normativa. O Juiz estaria apenas utilizando o aparato normativo constitucional para aferir se a tipificação penal de interrupção de gravidez está de acordo com aquilo que dispõe a Constituição, notadamente sobre os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. O texto constitucional, em seu todo, tem força normativa, e dispõe de aplicação mesmo quando em concurso com a legislação infraconstitucional. E é na prática alternativa de adotar a Constituição Federal como norma condutora, em especial seus princípios, que os juízes efetuam uma interpretação social ou teleológica das leis, ou seja, objetivam dar um sentido à legislação ordinária, buscando atender a reivindicação dos setores organizados da sociedade na defesa do parto terapêutico antecipado.

A persistência em decidir a partir de uma interpretação estrita do Código Penal continuaria a criminalizar o parto terapêutico antecipado, violando a dignidade e a capacidade autonômica da mulher. Além de quê, garantiria notável insegurança jurídica no ordenamento, ao se ter autorizações concedidas - justificadas a partir da constituição- e outras negadas - justificadas a partir do código penal, o que é inadmissível em um sistema que deve oferecer a mais segura e firme proteção ao cidadão.


As personagens do Romance

A decisão do Supremo Tribunal Federal marca um avanço no campo dos direitos reprodutivos no Brasil. A legislação que trata sobre o aborto no Brasil é bastante antiga, e, portanto, não acompanha os avanços da Medicina no diagnóstico de fetos com anencefalia.  Seria, portanto, muito cruel, continuar submetendo às mulheres, repetidamente, a vontade do judiciário quanto à decisão de querer continuar a gestação. Pois, assim como coloca Wolkmer

o ponto de partida para a constituição e o desenvolvimento do Direito vivo comunitário não se prende nem à legislação, nem à ciência do Direito e tampouco à decisão judicial, mas às condições da vida cotidiana, cuja real eficácia apóia-se na ação de grupos associativos e organizações comunitárias. Nesse quadro de referência, as “vontades coletivas” organizadas, utilizando-se de práticas sociais que instrumentalizam suas exigências, interesses e necessidades, possuem a capacidade de instituir “novos” direitos, direitos ainda não contemplados e nem sempre reconhecido pela legislação oficial do Estado. (WOLKMER, 2001, p.153)

 Colocar a questão da interrupção da gravidez como direito de escolha da mulher, é liberar todas elas da peregrinação para o exercício de um direito já existente.

Importante destacar a função que desempenha o Supremo Tribunal Federal como salvaguarda maior da constituição em conferir especial proteção a grupos minoritários, isto é, aqueles  grupos sociais, políticos, econômicos que, por força de sua  baixa representatividade ou da situação de quase impotência  com que se apresentam no processo político-institucional  regular, não dispõem de meios para fazer  valer de forma  eficaz os seus direitos. (Voto Ministro Joaquim Barbosa)[8]

Se colocar do lado das minorias, que historicamente impetram uma luta incessante pelo reconhecimento de direitos, é balancear uma postura alternativa àquele modelo imposto e difundido por tradições conservadoras nos tribunais de todo o Brasil. Ao assumirem essa postura, os ministros do Supremo Tribunal Federal acabam por se tornar, na leitura de Lédio Rosa de Andrade, Juristas Orgânicos, pois mostram que estão comprometidos com a mudança social e buscam combater a miséria, promover a liberdade e a igualdade material, fortalecendo uma possível democracia real (ANDRADE, 2011, p.4)

Não há duvidas de que a criminalização do aborto acaba empurrando todo ano centenas de milhares de mulheres no Brasil, sobretudo as mais humildes, a procedimentos clandestinos perigosos, realizados sem a mínima condição de segurança e higiene. E as consequências desses procedimentos abortivos representa uma das maiores causas de mortalidade materna no país, tirando a vida de muitas mulheres que poderiam ser poupadas caso houvesse a legalização. E é por violar diretamente o direito a saúde, autonomia e a liberdade da mulher, que os movimentos feministas se articulam e levantam suas bandeiras em favor da legalização, não só da antecipação do parto terapêutico, como também do aborto em geral.  Pois é justamente quando

as regras formais clássicas de legitimidade e os arranjos institucionais liberal-burgueses tornam-se inapropriados para canalizar e processar uma grande diversidade de demandas inerentes às sociedades de massa, que os movimentos sociais inauguram um estilo de política pluralista assentado em práticas não-institucionais e auto-sustentáveis, e nele avançam, buscando afirmar identidades coletivas e promovendo um locus democrático, descentralizado e participativo.(WOLKMER, 2001, p.139)

A luta das mulheres atravessou muitas gerações em busca de igualdade e de proteção dos seus direitos fundamentais. O direito de não ser propriedade do marido, de educar-se, de votar e ser votada, de ingressar no mercado de trabalho, da liberdade sexual. E quanto ao aborto, cabe a mulher, e não ao Estado, analisar valores e sentimentos de ordem estritamente privada para deliberar pela interrupção ou não da gravidez. A luta pela não criminalização das mulheres que cometem ato abortivo, faz parte da luta histórica do movimento feminista de garantir o direito da mulher de autodeterminar-se, de escolher e de agir com a sua própria vontade. A respeito desse protagonismo por parte dos movimentos sociais, assinala Wolkmer que

A partir de interesses cotidianos concretos e necessidades históricas, internalizadas por sujeitos sociais que têm consciência, percepção, sentimento, desejo e frustações, emerge nova concepção de juridicidade que não se identifica com os direitos estatais consagrados nos códigos e na legislação dogmática. (WOLKMER, 2001, p. 157)

Portanto, é a partir da intervenção desses novos sujeitos sociais, que levam suas demandas até o judiciário, é que o direito se modifica e se legitima tornando-se menos ritualizado.


O desfecho do Romance

A nova decisão do Supremo é um exemplo de como o direito é uma construção social, não é pétreo, pelo contrário está sempre num constante evoluir. Cabe, como dito por Dworkin, ao juiz atualizar as decisões de acordo com o presente, com as demandas instauradas na sociedade. Luhmann ratifica essa concepção quando diz que o direito é uma conquista evolutiva que resulta de estruturas sistêmicas, permitindo o desenvolvimento de possibilidades que são reduzidas a uma decisão. Isso significa que o Direito passa por um processo de seleção, as possibilidades experimentadas são assimiladas pelo sistema e passam a viger de acordo com o momento social, mas as demais possibilidades não são eliminadas de imediato elas permanecem no horizonte jurídico caso novas mudanças sejam oportunas. Essas modificações só são possíveis devido a institucionalização das mudanças, que é garantida pela própria positivação do Direito, que pode criar um Direito contrário ao existente no passado.  É devido a esta legalização, por assim dizer, que as decisões podem ser revistas e que o Direito evolui. “Hoje pode estar em vigor um direito que ontem ainda não existia e amanhã possível, provável ou até mesmo certamente não mais vigirá” (LUHMANN, 1985, p.11).

No caso da antecipação terapêutica do parto de anencéfalos o debate jurídico resulta do anacronismo do Código Penal com as novas possibilidades socialmente estabelecidas. O Código não versa sobre o assunto, exatamente, porque à época de sua criação não havia tecnologias que permitissem diagnosticar a anencefalia fetal. No entanto, tais tecnologias já existem e são eficazes para dar o diagnóstico de modo preciso, é por isso que é necessário atualizar o Direito e suas decisões, o que o faz o STF em 2012. A nova decisão passa a ser vinculativa, mas isso não impede que o legislativo também se pronuncie sobre o tema, estabelecendo tal decisão em lei, afinal essa é uma questão de saúde pública em que se deve criar instrumentos para garantir a assistência necessária as gestantes.

A descriminalização da antecipação terapêutica do parto marca no direito, uma grande conquista evolutiva. Consegue garantir segurança jurídica no ordenamento e demonstra sensibilidade para com essas mulheres, seus companheiros e suas famílias. O exercício pleno da liberdade de escolha na esfera privada é assegurado, resguardando o direito à vida e à saúde total da gestante, de forma a aliviá-la de sofrimento maior, livrando-a do sentimento de meros “caixões ambulantes”, como fala Débora Diniz.


Referências

BRASIL. Código Penal/ organizador Antônio Claret Maciel dos Santos; coordenadora Dulce Eugênia de Oliveira. São Paulo: Rideel, 1995. (Coleções de leis Rideel. Série compacta).

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 54 – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Requerente: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS. Relator: Min. Marco Aurélio. Distrito Federal, 17 jun. 2004. Disponível em: < http://redir.stf. jus.br /estfvisualizadorpub/jsp/consultarProcessoeletronico /Consultar Processo Eletronico .jsf?seqobjetoincidente=2226954>. Acesso em: 6 out. 2012.

DINIZ, Débora. Uma escolha Severina. UNB Agência, Brasília, 11 abr. 2012. Seção Artigo Direito. Disponível em: < http://www.unb.br/noticias/unbagencia/artigo.php?id=511>. Acesso em: 27 out. 2012.

DWORKIN, Ronald. Império do Direito/ Ronald Dworkin; tradução: Jefferson Luiz Camargo. – São Paulo: Martins Fontes, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II, 2. Ed./ Jürgen Habermas; tradução: Flávio Beno Siebeneich-ler. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II/ Niklas Luhmann; tradução: Gustavo Bayer. – Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1985

WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 3 ed. Revisada e atualizada. – São Paulo: Editora Alfa Omega, 2001.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito/ Tradução: João Baptista Machado. 8 ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2009.

ANDRADE, Lédio Rosa. O que é Direito Alternativo? – Florianópolis: Editora Habitus, 2011. Disponível em: < https://docs.google.com /viewer?a=v&q=cache:j2PUToP5 7AMJ:sociologial.dominiotemporario.com/doc/o_q_e_direito_alternativo.doc+&hl=pt-PT&pid=bl&srcid=ADGEEShwDdRrEX8TAXZrCnlHNX-HnLp3Yq-RT7Su3eSRzquosNm-gQ8TaQtIp4ce0K7JluGIN7uQ5kXi1Sq60gwtlMdamYBa8G6VDCTMdFzmHUkuBHRdKj_xk0goYFV_oW9W7ov1MNmL&sig=AHIEtbTkmujPcJ3_hyfZwH79FJwmftpKxQ>. Acesso em: 5 nov. 2012.

SARMENTO, Daniel. Legalização do Aborto e Constituição. Disponível em: <http://www. mundojuridico.adv.br> Acesso em: 5 nov. 2012.


NOTAS

[1] Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.

 Aborto provocado por terceiro

Art. 126 Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos

Art. 128 Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

[2] Texto completo do Voto do Min. Marco Aurélio na ADPF 54 disponível em: <http://www.stf.jus.br/ arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF54.pdf>

[3] Trechos do Voto da Min. Rosa Weber na ADPF 54 disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal /cms /vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=204755>

[4] Para maior conhecimento sobre a história de Severina e de outras mulheres que passaram pela mesma situação ver documentários de Débora Diniz “Uma História Severina” disponível em: <http://www.youtube.com /watch?feature=player_embedded&v=65Ab38kWFhE>; e “Quem são elas?” disponível em: <http://vimeo.com /5918778>

[5] Trechos do Voto do Min. Cézar Peluso na ADPF 54 disponível em: <http://stf.j usbrasil.com.br/noti cias /3085429/ministro-cezar-peluso-acompanha-a-divergencia-e-julga-improcedente-a-adpf-54>

[6] Ver nota de número 5

[7] Texto completo do Voto do Min. Ricardo Lewandowski na ADPF 54 disponível em: <http://www.s tf.ju s.br/ arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF54RL.pdf>

[8] Texto completo do Voto do Min. Joaquim Barbosa na ADPF 54 disponível em:  http://www. Conjur .com.br/2005-abr-29/conheca_voto_joaquim_barbosa_anencefalia

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Sobre os autores
Keuelanne Alves Carvalho

Graduanda em Bacharelado em Direito UFPI.<br>Integrante do Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil – CORAJE.<br>Voluntária do Programa de Ensino Tutorial - Integração.<br>Estagiária do Ministério Público do Piauí.

Marcelo Raimundo de Souza Filho

Acadêmico de Direito da UFPI Integrante do Projeto Cajuína - Centro de Assessoria Jurídica Popular de Teresina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Keuelanne Alves ; FILHO, Marcelo Raimundo Souza. ADPF 54: a antecipação do parto terapêutico como conquista evolutiva do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4091, 13 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29569. Acesso em: 2 nov. 2024.

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