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Fiscalização do trabalho: Distinções entre bis in idem, infração continuada e reincidência delitiva

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11/01/2015 às 12:11

Resumo:


  • A inspeção do trabalho é uma instituição com fundamento constitucional e internacional, essencial para garantir o cumprimento das normas de proteção ao trabalho e aplicação de sanções em caso de infrações à legislação trabalhista.

  • Para cada infração constatada pela fiscalização do trabalho, deve ser lavrado um auto de infração, seguindo o princípio da legalidade e a proporcionalidade em relação às violações cometidas.

  • A caracterização de infração continuada ou reincidência delitiva deve considerar a independência e especificidade de cada ato ilícito, sendo inaplicável a analogia com o conceito de crime continuado do direito penal para o âmbito do direito administrativo sancionador trabalhista.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A intenção deste artigo é dar as balizas para se chegar à interpretação jurídica que deve ser adotada pela Fiscalização do Trabalho diante da constatação de repetidas infrações à legislação do trabalho. Reincidência não se confunde com infração continuada.

INTRODUÇÃO. PAPEL DA INSPEÇÃO DO TRABALHO

A intenção deste artigo é dar as balizas para se chegar à interpretação jurídica que deve ser adotada pela Fiscalização do Trabalho diante da constatação de repetidas infrações à legislação do trabalho. Antes de adentrarmos no tema, é importante que façamos uma breve introdução acerca do papel da Inspeção do Trabalho, sua inserção na Administração Pública e os princípios que a regem.

A inspeção do trabalho tem fundamento constitucional no artigo 22, inc. XXIV, da Constituição Federal, que estabelece como competência da União organizar, manter e executar a inspeção do trabalho. No dizer de Sadi Dal Rosso, a Inspeção do Trabalho é uma instituição atual, viável e necessária[1], com fundamento na seara do Direito Internacional Público na Convenção nº 81 da OIT.

Com o intuito de dar efetividade aos direitos sociais previstos no artigo 7º da Carta Magna, a Lei n. 10.593/2002 atribuiu ao Ministério do Trabalho e Emprego a missão institucional de fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista, assim investindo-o do poder de polícia. Este órgão do Poder Executivo pertence à Administração Pública Federal, estando sujeito aos ditames constitucionais e legais que regem as relações entre o Estado e o particular. Como princípios constitucionais elementares, que vinculam a conduta da Administração Pública, elencam-se a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência, todos retirados do artigo 37 da Carta Maior. Comentando o princípio da Legalidade, o professor Dirley da Cunha Júnior ressalta que:

Como decorrência da indisponibilidade do interesse público, a atividade administrativa só pode ser exercida em conformidade absoluta com a lei. O princípio da legalidade é uma exigência que decorre do Estado de Direito, ou seja, da submissão do Estado ao império da ordem jurídica[2].

Pode-se inferir, portanto, que o princípio da legalidade impõe ao agente público a completa subserviência aos ditames legais, não podendo o mesmo agir ou deixar de agir sem expressa autorização legal.

A finalidade da inspeção do trabalho, nos termos do artigo 626 da CLT, é a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho e, no mesmo sentido, dispõe o Regulamento da Inspeção do Trabalho, Decreto n. 4.552/2002, em seu artigo 1º.

Para o exercício do seu dever funcional, o Auditor Fiscal do Trabalho (AFT), servidor público do Ministério do Trabalho e Emprego, realiza atividades de análise entre os fatos jurídicos decorrentes de uma relação de emprego e as normas legais. Estando a competência legal do AFT presente na Consolidação das Leis do Trabalho, especificamente nos arts. 626 a 634, e considerando que a CLT tem aplicação para a generalidade das relações de emprego (trabalho de natureza não-eventual, exercido com pessoalidade, subordinação e onerosidade), tem-se que o foco principal da atividade de inspeção do trabalho é mesmo o exame destas.

A RELAÇÃO DE EMPREGO E SUAS PECULIARIDADES.

A relação de emprego é uma relação de trato continuado por sua própria natureza, ou seja, é uma relação jurídica complexa com duração mais ou menos prolongada no tempo. Instituída a relação de emprego, diversos direitos e deveres emanam para as partes, tais como a obrigação de assinar a CTPS, remunerar de acordo com os padrões vigentes, observar o limite legal de 8 horas diárias, entre outros. Esses direitos e deveres são agrupados e catalogados como institutos do direito do trabalho, tais como registro, salário, jornada de trabalho, o descanso, salário mínimo ou FGTS.

No curso da fiscalização das relações de emprego, o AFT pode constatar irregularidades nos mais diversos atributos/institutos acima especificados. Assim, pode verificar que o empregador não depositou o FGTS, atrasou o pagamento do salário devido aos empregados ou exigiu serviços dos empregados além do limite legal de horas permitido. Verificadas as irregularidades, a lei prevê a imposição de sanção pecuniária ao infrator, através de procedimento administrativo que tem início com a lavratura do auto de infração por parte da autoridade federal. Trata-se da responsabilidade jurídica na esfera do Direito Administrativo do Trabalho.

No que diz respeito às sanções administrativas laborais (não-tributárias), vislumbradas enquanto processo administrativo, deve ser dito que muito da sua sistemática assemelha-se à principiologia aplicável às sanções administrativas tributárias. Trazemos, assim, a lição de Sacha Calmon Navarro Coêlho:

Caracterizada a infração deve ser a sanção. Vimos de ver que a hipótese de incidência das normas sancionantes é precisamente o ilícito. Com a realização da infração in concretu incide o mandamento da norma sancionante. Vale dizer: realizado o ‘suposto’ advém a ‘conseqüência’, no caso a sanção, conforme prevista e nos exatos termos dessa mesma previsão.

As sanções tributárias mais difundidas são as multas (sanções pecuniárias). Sancionam tanto a infração tributária substancial quanto a formal. As multas que punem a quem descumpriu obrigação principal são chamadas de ‘moratórias’ ou ‘de revalidação’; e as que sancionam aos que desobedeceram obrigação acessória respondem pelo apelido de ‘formais’ ou ‘isoladas’. Ambas, para citar Carnelutti, possuem a característica de ser ‘um evento danoso imposto a quem não cumpre o preceito’ e, à semelhança da sanção penal, comportam duplo efeito: ‘o intimidativo, (psicológico) que visa a evitar a violação do direito, e o repressivo, que se verifica após perpetrado o desrespeito à norma fiscal’ [...] (grifos nossos)

Esta similitude entre os regimes jurídicos do processo administrativo de multas tributárias e não-tributárias será útil para interpretarmos alguns dos entendimentos que serão aqui explanados.

DO AUTO DE INFRAÇÃO.

O auto de infração nada mais é do que um ato administrativo, entendido como toda “declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como, por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei, a título de lhe dar cumprimento, sujeito a controle de legitimidade por órgão jurisdicional” [5].

Destrinchando o conceito doutrinário, observa-se que o auto de infração é uma declaração do Estado, representado naquele ato pelo AFT, no exercício de prerrogativas públicas – uma vez que o auto de infração decorre do dever legal imposto ao agente de inspeção e independe de aceitação pelo administrado – que é manifestado mediante providências complementares da lei (o fundamento do auto de infração é a aplicação das penalidades previstas na CLT e em outros textos legais). Como todo ato administrativo, também o auto de infração está sujeito a controle judicial[6].

A aplicação de sanções ao empregador faltoso, tal como se dá com qualquer outro ato punitivo do Estado, tem duas finalidades. A primeira é a de reparar o dano sofrido, ainda que este dano tenha a aparência de mera infração formal ao ordenamento jurídico. Ou seja, ainda que não haja repercussão direta e concreta na esfera jurídica de terceiros (situação muito rara nas relações de emprego), persiste a finalidade reparatória pelo descumprimento da norma, seja pelo risco de dano, seja pela natureza difusa do prejuízo laboral (por exemplo, quanto ao meio ambiente do trabalho). A outra finalidade é preventiva, qual seja desestimular o administrado na prática futura de ilícitos, e por via inversa encorajá-lo – e também aos demais empregadores faltosos - a cumprir a lei[7].

Por tal motivo, ou seja, para zelar pelo estrito cumprimento da lei, o artigo 628 da CLT dispõe que a toda verificação[8] em que o Auditor-Fiscal do Trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração[9].

Quando fiscaliza as relações de emprego, o AFT costuma flagrar empregados admitidos sem registro ou trabalhadores laborando sem que o empregador tenha realizado previamente o exame médico admissional. Nestas hipóteses, a infração cometida é uma só, mas com efeitos permanentes e duradouros. Vislumbramos, aqui, exemplos do que se entende por infração continuada.

Ocorre que, não raro, no curso do procedimento fiscal, o AFT constata a existência de inúmeras situações que evidenciam um descumprimento repetido ao comando legal. Por exemplo, quando o empregador tem o hábito de pagar o salário após o quinto dia útil seguinte ao mês trabalhado, ou quando se absteve de depositar o FGTS das últimas competências, ou quando exige horas extraordinárias acima do limite legal em múltiplos dias. Em casos tais, estamos diante de infrações que se renovam no tempo, incidem de forma repetida, ou seja, são reincidentes. De forma diversa, aqui verificamos exemplos de reincidência delitiva.

Diante dessas situações, é necessário sabermos qual o tratamento legal a inspeção do trabalho deve dar a estes atos ilícitos que se repetem no tempo.

A norma administrativa determinaria a múltipla apenação por cada ilícito individualizado, ou a norma mandaria reunir todos os atos ilícitos em uma só conduta para fins de uma só sanção?

INFRAÇÃO CONTINUADA E CRIME CONTINUADO. MESMA LÓGICA?

A CLT não trata apenas de normas de direito material e processual do Trabalho. Trata, ainda, de normas de Direito Administrativo do Trabalho, e em especial das normas que regulam o trâmite procedimental das multas pecuniárias aplicáveis pela Fiscalização do Trabalho.

No entanto, a CLT em nenhum momento define o que vem a ser infração continuada. Mesmo na legislação do direito administrativo federal, é rara a utilização do termo “infração continuada”. A doutrina pátria faz referência à expressão infração continuada quase que exclusivamente quando analisa o disposto no artigo 1º, caput, da Lei n. 9.873/99 que versa sobre o exercício da ação punitiva pela Administração Federal[10]. Mesmo a Lei n. 7.855/89 que trata, no seu artigo 5º[11], de multas trabalhistas não diz uma palavra sobre o que vem a ser infração continuada (ou mesmo reincidência delitiva).

Havendo omissão no texto legal acerca do referido conceito, manda a CLT em seu artigo 8º, parágrafo único, aplicar o direito comum como fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.

Os doutrinadores do Direito do Trabalho, em uníssono, entendem que o direito comum a que se refere o artigo 8º é o direito civil, não sendo possível a aplicação analógica de normas do direito penal.

É comum, no entanto, que alguns intérpretes mais apressados, no que tange a este tema, resgatem o conceito de crime continuado previsto no artigo 71, caput do Código Penal, para sua aplicação no âmbito do Direito Administrativo do Trabalho como sinônimo de infração continuada. Ocorre que a aplicação analógica deste dispositivo no campo do direito administrativo sancionador é de todo inválida.

A princípio, só teria sentido aplicar a analogia (ou transposição automática) do crime continuado às infrações trabalhistas continuadas se fosse também trazida por analogia (ou houvesse previsão para tanto) da progressão da sanção pela repetição do ilícito, como expressamente consta no artigo 71 do Código Penal para os delitos penais.

O incremento da pena pela repetição do ilícito é aspecto constituinte do delito continuado[12]. Sem incremento de sanção, não existe tal conceito (consta como parte integrante da descrição do crime continuado o incremento da pena). Este é, na verdade, o cerne da questão aqui analisada.

O recrudescimento da pena é parte constituinte do conceito de crime continuado. Sem ele, não existe o conceito, pois o mesmo é uma mera ficção (já que não nega a autonomia dos delitos), um dispositivo de política punitiva (será considerado como um crime, todavia, acrescido de pena) para beneficiar o infrator. Contudo, o conceito não desconsidera, de fato, a existência dos outros crimes (diversos em essência), que são efetivamente utilizados como mecanismos para agravar a pena.

Assim, como política punitiva (por conseguinte, como conceito), o crime continuado só tem sentido abarcando o incremento da pena. A sanção exclusivamente restrita a um único delito não estaria simplesmente beneficiando o infrator, mas abstraindo efetivamente a existência das demais infrações cometidas, fato que subverteria, repita-se, o próprio conceito de crime continuado. Em suma, o conceito existe para abrandar a pena pelo somatório dos crimes e não eliminá-la por completo em relação a uma delas, o que ocorreria se fosse suprimido o aumento da pena.

Verifica-se, portanto, a total incompatibilidade entre o conceito de crime continuado do direito penal e o de infração continuada do Direito Administrativo do Trabalho[13]. Mas, ainda que se entendesse possível a aplicação analógica do Código Penal no âmbito do direito administrativo sancionador, não seria o caso de se considerar como infração continuada a repetição de ilícitos perfeitamente individualizados (reincidentes).

Determina o artigo 71 do CP, in verbis:

Art. 71. Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.

Tem-se, portanto, como requisitos do delito continuado:

1. mais de uma ação ou omissão;

2. prática de dois ou mais crimes da mesma espécie;

3. condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes;

4. os crimes subseqüentes devem ser havidos como continuação do primeiro.

Como se está diante de infração administrativa, onde se lê a “prática de dois ou mais crimes da mesma espécie” deve-se ler, para os fins aqui propostos, a prática de duas ou mais infrações da mesma espécie. Ora, as infrações trabalhistas, via de regra, são perfeitamente individualizadas e possuem, cada uma delas, um fator temporal próprio para a sua configuração. As infrações posteriores não têm qualquer nexo de causalidade com as anteriores, já que o ilícito seguinte não necessita da pré-existência do ilícito original.

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É difícil aceitar que a falta de depósito do FGTS em determinado mês seja decorrência da falta de recolhimento fundiário do mês anterior, ou ainda que o atraso de salários em meses diferentes configure uma só conduta delituosa, ou finalmente que o descumprimento do limite de horas em dias alternados caracterize uma circunstância semelhante quanto ao modo de execução.

Aliás, no trato sucessivo das relações de emprego, a lógica deveria ser exatamente inversa, ou seja, a economia de custos engendrada pelo descumprimento da norma em momento anterior (falta de recolhimento do FGTS, ou falta de pagamento dos salários em um mês específico) deveria ser fator de estímulo empresarial para que, no futuro, a infração não se repetisse.

A repetição de condutas ilícitas trabalhistas definitivamente não decorre de condutas ilícitas prévias cometidas pelo infrator, como se os ilícitos subseqüentes fossem havidos como continuação do primeiro. Em hipótese alguma podemos afirmar que o segundo ilícito decorreu do primeiro.

Uma das condições de configuração do crime continuado é a mesma condição de tempo nos delitos praticados. Esse não é o caso de diferentes infrações relativas a salário, FGTS e jornada. Tais infrações têm períodos de aferição e realização próprios. Não são infrações de prazo para repetição e duração genéricos (ex: subtrair a bolsa de outrem), mas possuem demarcações precisas do período em que poderão ocorrer (a cada mês, a cada jornada diária) bem como o intervalo entre as infrações (no mínimo, cada competência, no mínimo, cada jornada de trabalho), o que torna cada infração detentora de condição de tempo própria, por conseguinte, distinta das demais.

Por não serem aleatórias - pelo contrário, tais infrações têm o próprio período de realização previsto em lei (e isto é muito importante) - é imputação totalmente arbitrária enquadrá-las como pertencentes a um só período (uma mesma condição de tempo).

INFRAÇÃO CONTINUADA OU REINCIDÊNCIA DELITIVA?

Não se deve confundir reincidência delitiva com infração continuada. Reincidência específica é o novo cometimento de infração de mesma espécie contra um mesmo sujeito[14]. Este novo cometimento se dá após o exaurimento da infração anterior.

Na reincidência delitiva há uma perfeita distinção entre a multiplicidade de infrações cometidas, enquanto unidades autônomas e independentes. São exemplos de reincidência delitiva o cometimento das infrações de atraso salarial ou inadimplemento salarial em meses distintos, o excesso de horas extraordinárias em dias alternados, ou ainda, a falta de informações da RAIS em anos diferentes.

As obrigações trabalhistas que ensejam a lavratura de autos de infração distintos são independentes e, por conseguinte, não se confundem. Cada obrigação trabalhista deve ser respeitada pelo empregador, constituindo-se em obrigações ontologicamente distintas, por conseguinte, fatos geradores independentes e desvinculados.

A figura do crime continuado, como vimos, consiste num tratamento penal diferenciado, dado em benefício do criminoso, em face das circunstâncias do crime serem semelhantes e estarem todas num mesmo cenário delituoso. Mas, ontologicamente, até mesmo os penalistas afirmam que se trata em verdade da existência de múltiplos crimes[15]. Entender de forma contrária, estendendo analogicamente este conceito para o Direito Administrativo do Trabalho, importa em premiar o infrator que, de forma iterativa, descumpriu dispositivos trabalhistas, beneficiando-o com a lavratura de apenas um auto de infração por ação fiscal. Enquanto isso, outro empregador que vier a descumprir a lei em apenas uma ocasião será apenado da mesma forma que um infrator habitual. Esta postura fiscal, entretanto, não inibirá este infrator– a finalidade do auto de infração é também prevenir o ilícito – de continuar a agir ilegalmente. Premiar o infrator habitual é tudo o que o direito administrativo disciplinar não quer.

REINCIDÊNCIA DELITIVA E O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DO NON BIS IN IDEM.

Superada a confusão criada sobre a transposição dos efeitos do conceito de crime continuado para o Direito Administrativo do Trabalho, iremos tratar, ainda, do que se entende por bis in idem nesta seara.

O princípio da vedação ao non bis in idem, fortemente aplicado no Direito Tributário, caracteriza-se como um limite, com fundamento lógico, à dupla ou múltipla  apenação de mesmo teor por um mesmo fato ilícito. Seriam aquelas situações nas quais um mesmo fato gerador engendra duas ou mais idênticas punições. Nenhum dos exemplos até aqui tratados enquadram-se como bis in idem.

Seria exemplo de bis in idem a lavratura de dois autos de infração por atraso de salário referentes a um mesmo mês em que foi flagrada a irregularidade, relacionando-se, ainda, os mesmos empregados prejudicados. Nesta hipótese, estaria havendo uma dupla penalidade de mesma natureza (auto de infração igual) para um mesmo fato gerador (atraso salarial em um mesmo mês), configurando-se uma situação de injustiça para o administrado que deverá ser corrigida pela própria Administração Pública.

Não é disto, entretanto, que estamos tratando. Nos casos acima trazidos, há sim uma dupla ou múltipla penalidade de mesma natureza (autos de infração plúrimos), no entanto, os fatos geradores são completamente diversos (dias, meses e anos diferenciados), razão pela qual a lavratura proporcional é juridicamente adequada.

Entendimento em sentido contrário escapa ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade, consistente em dosar a responsabilidade jurídica do infrator de acordo com a extensão e repercussão da lesão cometida. A sanção singular para múltiplas infrações mostrar-se-ia ainda mais injusta quando estas violações atingem o direito de terceiros (trabalhadores).

A síntese das infrações em apenas uma sanção equivaleria a uma renúncia ao poder/dever de impor penalidades que compete à Administração Pública, prejudicando a constituição de créditos de natureza não-tributária de que é titular a União (ainda que saibamos que essa motivação não deva ser a mais importante, mas sim a efetivação dos direitos trabalhistas).

ENQUADRAMENTO DA SANÇÃO DE ACORDO COM O MANDAMENTO LEGAL E DE ACORDO COM O ATRIBUTO FISCALIZADO.

Modernamente, todo o sistema jurídico deve passar pelo que se intitulou de filtragem constitucional, ou seja, a leitura de dispositivos legais somente é válida se se mostra consentânea com as normas previstas na Carta Magna. Neste sentido, verifica-se que o artigo 628 da CLT consagra, de forma cristalina, o princípio da proporcionalidade no Direito Administrativo do Trabalho, ao contemplar a proporção justa entre as infrações cometidas e as sanções a serem aplicadas.

O artigo 628 explicita claramente que:

Salvo o disposto nos arts. 627 e 627-A, a toda verificação em que o auditor-fiscal do trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infração.

Assim também dispõe o Regulamento da Inspeção do Trabalho, no seu artigo 24:

A toda verificação em que o Auditor-Fiscal do Trabalho concluir pela existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena de responsabilidade, a lavratura de auto de infração, ressalvado o disposto no art. 23 e na hipótese de instauração de procedimento especial de fiscalização.”

Sobre o artigo 628 da CLT, Victor César Russomano comenta que: “A inspeção do trabalho tem caráter nitidamente preventivo, o que, por si só, justifica, como veremos, as técnicas adotadas pelo legislador brasileiro e que estão na linha dominante no Direito Comparado[16] ”. Assim, as técnicas previstas pelo legislador no art. 628 da CLT preveem para cada infração um auto, sob pena de responsabilidade da autoridade fiscal.

O dispositivo não dá margem a dúvidas: para cada violação de preceito legal um auto de infração deve ser lavrado. Por sua vez, a forma como a autoridade administrativa constata as infrações legais é através da verificação. Para cada flagrante (verificação) de violação da lei, deverá ser lavrado o respectivo auto. Verificação também não se confunde com ação fiscal, que vem a ser um complexo de atos administrativos realizados pelo AFT, envolvendo condutas anteriores e posteriores à lavratura dos autos de infração.

O comando legal em momento algum disse que apenas será lavrado um auto de infração para cada fiscalização (ou mesmo para cada atributo): determinou apenas que para toda irregularidade verificada caberá, em igual medida, um auto de infração lavrado de forma proporcional às violações cometidas. 

Isto significa que se um Auditor examina folhas de pagamento relativas a 12 (doze) competências salariais ou fundiárias (FGTS), e constata irregularidades em todos os meses analisados (atraso ou inadimplemento), deverá inevitavelmente autuar cada um desses meses faltosos, sob pena de cometimento de ilícito administrativo[17]. De acordo com o direito posto, não se afigura lícita a constatação de múltiplas infrações e a lavratura de apenas um auto de infração para cada atributo analisado.

A imposição de multas administrativas tem uma finalidade muito nítida consistente no seu caráter preventivo e pedagógico: entender que todas as infrações pretéritas são absorvidas por uma só infração importaria em estimular empregadores a descumprir a Lei, fazendo tábula rasa do caráter orientador[18] da inspeção do trabalho.

Os empreendimentos capitalistas agem com base em cálculos de custo e benefício mensurados em valores monetários. Se o cumprimento da norma demanda algum gasto (para aquisição de EPIs ou o recolhimento do FGTS.), não se pode esperar que as empresas se sintam impelidas a cumprir a lei (no que tange à Fiscalização), se o seu descumprimento inveterado implicará, na pior das hipóteses, em apenas uma multa pecuniária. Pior, como a natureza da fiscalização é por amostragem, a chance de ser apanhada é pequena, o que recrudesceria ainda mais a pedagogia da impunidade[19] que se quer evitar.

Se não fosse relevante a quantidade de meses em que o empregador atrasou o salário, para a eventual aplicação de multas, não haveria incentivo (desestímulo) para o infrator respeitar qualquer patamar civilizatório mínimo[20]. Para o empregador faltoso, seria mais vantajosa a repetição do ilícito do que a quitação regular dos direitos trabalhistas.

O artigo 8º do Regulamento da Inspeção do Trabalho, em seu inciso XVIII dispõe que compete ao Auditor Fiscal do Trabalho “lavrar autos de infração por inobservância das disposições legais”. O auto de infração não poderia ter o condão de subsumir todas as infrações em um só documento, porque não é assim que a lei dispõe. A legislação e o regulamento são muito coerentes, do ponto de vista lógico e gramatical, e estão em perfeita harmonia com o caráter preventivo principiológico inerente ao poder de polícia administrativo.

No próprio site do Ministério do Trabalho e Emprego colhe-se que a Fiscalização do Trabalho: “Verifica o cumprimento, por parte das empresas, da legislação de proteção ao trabalhador, com o objetivo de combater a informalidade no mercado de trabalho e garantir a observância da legislação trabalhista.” (disponível em < http://www3.mte.gov.br/fisca_trab/>). Ora, de nada adiantaria verificar o descumprimento se não houvesse responsabilização do infrator na mesma proporção das irregularidades encontradas.

Os auditores-fiscais do trabalho detêm obrigações legais que impõem a autuação na justa medida das infrações cometidas, afinal, não são meros observadores de ilícitos. Esta categoria de servidores públicos comparece ao chão de fábrica não apenas para constatar, mas também para sancionar e, consequentemente, prevenir ilícitos. Seria inócua a verificação do descumprimento das normas de proteção ao trabalho sem a imposição das respectivas penalidades. Não haveria garantia da observância da legislação trabalhista se não houvesse o mecanismo de repressão pecuniária proporcional que é materializado no auto de infração.

Neste passo, reforçando o caráter pedagógico que o sistema de inspeção do trabalho deve ter, trazemos as observações de Tereza Aparecida Asta Gemignani: [21]

Aquele que descumpre a legislação trabalhista tem menos gastos e encargos, podendo produzir a um custo menor do que outro empregador que, por observar corretamente a lei, acaba despendendo mais e tendo que atribuir preço maior ao produto final. Assim sendo, o que age de forma ilícita provoca um ônus institucional e econômico para todo o organismo social, ou seja, privatiza os lucros e socializa os prejuízos, que comprometem o desenvolvimento da nação. A longo prazo os efeitos são tão consideráveis, que acabam por provocar verdadeira concorrência desleal, de modo que o procedimento ilícito afronta não só aos direitos do trabalhador, mas também aos interesses dos demais empregadores. Trata-se de questão de amplo conhecimento social, tanto que há várias organizações empresariais que tem procurado difundir a importância de produzir bens e serviços de forma responsável. Isto melhora a sustentabilidade da teia de proteção social, a qualidade de vida do trabalhador e, também, a qualidade do produto, que passa a deter condições de obter níveis de certificação, necessários para que possa ser exportado e competir no mercado internacional, o que leva a otimização não só da atividade econômica, mas do desenvolvimento do país como um todo.

Verificado, por exemplo, o descumprimento do atributo salário, deve ser lavrado um auto de infração para cada mês em que foi constatada a irregularidade, nominando-se todos aqueles empregados prejudicados, por se tratar de penalidade per capita; verificado o descumprimento do atributo jornada, deve ser lavrado um auto de infração por dia em que a irregularidade foi encontrada, com a indicação dos empregados prejudicados apenas de forma exemplificativa.

Só assim a Administração Pública dará sentido ao princípio da eficiência alçado a nível constitucional no artigo 37 da Carta Magna. Isto porque, mesmo que a Fiscalização do trabalho não tenha comparecido no estabelecimento do empregador nos últimos anos, poderá analisar tudo aquilo que aconteceu no passado[22], sem a necessidade de um acompanhamento passo a passo das atividades do empregador.

Entender que, em uma ação fiscal, a constatação de atraso salarial em diferentes meses, por exemplo, somente poderia ensejar a lavratura de um auto de infração por cada fiscalização realizada exigiria que os Auditores organizassem fiscalizações mensais no estabelecimento, tolhendo a Inspeção do Trabalho de lavrar os autos de infração correspondentes às infrações pretéritas. Não haveria, a prevalecer este entendimento, a mínima eficácia das normas de proteção ao trabalho.

As fiscalizações reiteradas no estabelecimento, consoante o Regulamento de Inspeção do Trabalho, somente devem ocorrer em situações excepcionais. Com a limitação numérica da lavratura de autos de infração por fiscalização, o excepcional transformar-se-ia na regra, porquanto a Fiscalização do Trabalho estaria obrigada a realizar fiscalizações reiteradas no estabelecimento caso tivesse – e sempre terá por força de lei – a intenção de obstar a continuidade delitiva do empregador. Seria inútil que o Auditor notificasse o empregador para apresentar folhas de pagamento de meses anteriores, se estivesse impedido de lavrar os autos de infração das competências pregressas em que foram, também, encontradas irregularidades. A Administração Pública estaria, dessa forma, incentivando o infrator a descumprir, reiteradamente e no futuro, normas trabalhistas.

CORRELAÇÃO ENTRE ATRIBUTO E SEU LAPSO TEMPORAL ESPECÍFICO.

Para cada uma das situações exemplificadas acima, a análise acerca das irregularidades encontradas nos mais diversos atributos (salário, FGTS, jornada) deve levar em conta a caracterização do próprio instituto analisado. Tomemos, como exemplo, a jornada de trabalho e a remuneração do empregado.

A jornada de trabalho é um instituto de direito material do trabalho cuja duração é apurada diariamente, ou seja, no espaço temporal de um dia de trabalho do empregado. No dizer de Maurício Godinho, ministro do TST:

Jornada de trabalho compreende o tempo diário em que o empregado tem de se colocar em disponibilidade perante seu empregador, em decorrência do contrato.

Por sua vez, a remuneração é também um instituto do direito do trabalho correspondendo à contraprestação do labor despendido pelo empregado num determinado espaço de tempo, que pode ser diário, semanal, quinzenal ou mensal.

Dito isto, vê-se que várias são as formas de análise dos referidos institutos/atributos. Na jornada de trabalho, tem-se um fato jurídico-trabalhista que compreende o tempo à disposição ou de efetivo labor pelo empregado. A apuração da sua legalidade deve ser feita diariamente. Na remuneração, instituto do direito do trabalho que corresponde ao adimplemento da principal obrigação do empregador, a verificação da sua regularidade leva em conta como lapso temporal mínimo a unidade de um mês, como regra, para pagamento da remuneração devida ao obreiro, nos termos da CLT.

Observa-se da análise destes institutos que o fator temporal é imprescindível para a própria caracterização dos mesmos. E, por este motivo, os efeitos do fator temporal repercutem tanto na esfera da relação individual existente entre as partes – e consequentemente para reclamações movidas na Justiça do Trabalho[23] - quanto na esfera estatal, representada pela Fiscalização do Trabalho.

Assim, para a Auditoria Fiscal do Trabalho, a caracterização do ilícito administrativo “excesso de horas extraordinárias” exigirá a extrapolação da jornada extraordinária num lapso temporal diário de 2 (duas) horas e a tipificação do ilícito “deixar de efetuar até o quinto dia útil seguinte ao mês laborado” exigirá, por sua vez, o transcurso do lapso temporal mensal.

EXEMPLOS PRÁTICOS, JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA.

A quantificação objetiva do ilícito – no sentido de sua caracterização no tempo - tem repercussão não apenas para a satisfação dos direitos do trabalhador na Justiça do Trabalho mas também para a sanção administrativa do MTE. Não é por outra razão que a ementa (nome dado à súmula da infração) dos referidos ilícitos administrativos vem assim disposta:

a) Prorrogar a jornada normal de trabalho, além do limite legal de 2 (duas) horas diárias, sem qualquer justificativa legal[24].

O Ministério do Trabalho e Emprego, ciente do conceito jurídico de jornada, tipificou como ilícito administrativo a extrapolação da jornada além do limite legal de 2 (duas) horas diárias. Como dito acima, a jornada de trabalho é apurada diariamente e a irregularidade será constatada quando, no parâmetro de um dia de labor do empregado, encontrar a Fiscalização, através dos controles de jornada, a extrapolação do limite legal pelos empregados da empresa. Aqui serão lavrados tantos autos de infração quantos forem os ilícitos verificados. O fato de haver um ou mais empregados em situação irregular é irrelevante para a caracterização desse ilícito, porquanto, não se trata de multa per capita. A multa levará em conta a quantidade de empregados da empresa, porquanto entendeu o legislador que um maior contingente de empregados pressupõe uma maior capacidade de organização do empregador para também evitar as horas extras.

b) Deixar de efetuar, até o 5º (quinto) dia útil do mês subseqüente ao vencido, o pagamento integral do salário mensal devido ao empregado.

A ementa retrata claramente a necessidade de apuração da irregularidade dentro do espaço temporal mensal. Se um determinado empregador atrasou o salário dos seus empregados em inúmeros meses, a lei manda que sejam aplicados tantos autos de infração quantos forem os inúmeros meses em que seu deu o atraso ou falta de pagamento. Comparando-se dois empregadores distintos, se um deles atrasou o salário dos seus empregados em apenas um mês, enquanto o outro atrasou o salário todos os meses de um ano, a lavratura de apenas um auto de infração para ambos mostrar-se-ia como violadora do princípio constitucional da igualdade, porquanto estar-se-ia tratando da mesma maneira sujeitos em situações jurídicas desiguais, criando uma injustificada distinção de tratamento entre as partes[25].

c) Deixar de informar anualmente a RAIS.

Para cada ano em que a RAIS não foi informada pelo empregador, caberá um auto de infração, até mesmo porque, como visto acima, todas as ementas já levam em consideração o fator temporal. Se em uma fiscalização, o Auditor constatar que o empregador não informou a RAIS nos três últimos anos deverá lavrar três autos de infração, porquanto a simples lavratura de apenas um auto de infração beneficiaria o infrator.

Os exemplos acima reforçam a interpretação – que em verdade é a única admissível do ponto de vista lógico e principiológico – no sentido de que para cada infração há de corresponder um auto de infração.

A jurisprudência dos Tribunais do Trabalho não tem destoado deste entendimento. Foram colhidos os seguintes julgados abaixo relacionados:

- DO BIS IN IDEM

Assevera ainda a recorrente que há, nas autuações executadas pela fiscalização do Ministério do Trabalho, presença de dupla punição com fundamento no mesmo suporte fático, na mesma infração, o que é vedado pelo ordenamento jurídico pátrio. Vejamos.

Examinando os autos, percebo que as autuações, apesar de estarem capituladas no mesmo dispositivo legal (art. 459, §1º da CLT), se referem a períodos distintos. Do mesmo modo, o número de empregados prejudicados pela suposta infração da norma celetária foi distinto em cada auto.

Em verdade, os autos de infração não foram lavrados tendo em conta uma mesma infração, mas sim, infrações várias a um mesmo dispositivo legal, supostamente perpetradas de forma reiterada pela ora apelante, como se percebe com a leitura da seguinte tabela: Auto de Infração Período Auditado – Nº de Empregados Prejudicados

9662961 (fls. 131/155) 26/fev/2005 a 25/mar/2005 101

9662979 (fls. 238/262) 26/mar/2005 a 25/abr/2005

9662987 (fls. 264/288) 26/abr/2005 a 25/maio/2005 120

9667580 (fls. 157/182) 26/maio/2005 a 25/jun/2005 115

9667563 (fls. 185/212) 26/jun/2005 a 25/jul/2005 122

9667571 (fls. 214/236) 26/jul/2005 a 25/ago/2005 98

9670033 (fls. 291/318) 24/set/2005 a 25/out/2005 123

Assim, não há falar-se em bis in idem nas autuações aqui discutidas. Mantenho a sentença. (RO – 00462-2007-006-20-00-0 Fl. 06. Desembargador Redator CARLOS DE MENEZES FARO FILHO). (destacamos e sublinhamos)

O TST também já se manifestou sobre o tema, afastando a ocorrência de bis in idem em casos tais, determinando a lavratura de autos de infração diversos em caso de infrações distintas.

O Regional de forma clara e elucidativa asseverou que os autos de infração n° 010838848, 010838881, 010838864, 010838872 e 010839330, decorreram da constatação da extrapolação da jornada de trabalho além das duas horas extras diárias, em dias distintos, sem que para isso existisse motivo justificador, conforme demonstrado no corpo do v. acórdão, à fl. 314.

Consigna que, ao contrário do que tenta fazer crer o recorrente, não houve duplicidade quanto à penalidade aplicada, porquanto as infrações detectadas, apesar de decorrerem sempre da extrapolação da jornada diária além de duas horas extras, aconteceram em dias diversos e com empregados distintos. (...) Diante do exposto, não se vislumbram as apontadas transgressões aos dispositivos legais, em face da razoável interpretação dada a matéria por esta Egrégia Corte Regional, inviabilizando o apelo, neste tópico, por força da Sumula n° 221, II, do C. TST.     ISTO  POSTO ACORDAM  os Ministros da Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho, por unanimidade,  negar provimento  ao Agravo de Instrumento. NUMERAÇÂO ANTIGA: AIRR - 868/2006-001-13-40.  PUBLICAÇÃO: DEJT - 27/02/2009. (destacamos e sublinhamos)

Do exame da jurisprudência colacionada, observa-se claramente que não há que se falar em infração continuada quando estamos diante de várias infrações perfeitamente individualizadas. Também não restará caracterizado bis in idem quando as infrações são constatadas no espaço temporal próprio de cada atributo. O que há, em verdade, nestes casos, é reincidência delitiva e não infração continuada ou bis in idem.

A doutrina pátria também segue a mesma trilha:

D - Penalidades agravadas; reincidência e falta continuada. Um outro problema que interessa grandemente ao se examinar a punição de infrações é o entendimento do que sejam reincidência e falta continuada. Mesmo autores de reconhecida competência, como Caldas Brandão, deixam pouco claras essas situações, como vemos: "Preliminarmente, há que distinguir plenamente a lavratura de autos sucessivos, com a decorrência de dias ou mesmo na jornada de trabalho seguinte. Neste caso, estão, por exemplo, as violações da lei por excesso ou antecipação de horário, folga semanal, horário de descanso ou para refeições. Nestes casos, a infringência da lei se verifica com a configuração da hipótese e justifica a sucessiva autuação, respeitados aqueles limites, mesmo porque está na continuidade da autuação o único meio de compelir o infrator a respeitar a lei e os direitos de seus empregados. Outra será a situação, porém, se se tratar, por exemplo, do pagamento do imposto sindical, do cumprimento da Lei de Acidentes, da anotação da carteira profissional".

Hipóteses citadas pelo autor há que distinguir; as primeiras relacionadas não se enquadram como infração continuada. São, sim, infrações independentes uma da outra e repetidas.

O empregador que negar a hora de refeição, numa jornada de trabalho, incide em falta e haverá nova falta se no dia seguinte tiver igual atitude. Serão faltas repetidas, haverá reincidência, e a autoridade que tiver de aplicar a multa poderá fazê-lo com o agravamento decorrente da reincidência.

A continuidade de falta, hipótese relacionada no final do trecho citado, poderá e deverá ser constatada pela fiscalização, cabendo à autoridade aplicadora da pena a faculdade de mandar apurar a existência da continuidade dando margem à imposição de multa mais elevada". Instituições de Direito do Trabalho, de Arnaldo Sussekind, Segadas Vianna, Délio Maranhão e Lima Teixeira, pg 1299.

Não se deve esquecer que a infração continuada exige continuidade delitiva no tempo (permanência[26] ) e não o seu exaurimento após o lapso temporal previsto. Em todas as situações apresentadas acima, verificou-se o completo exaurimento da infração anterior e o surgimento de uma nova infração que não tem qualquer conexão com a falta anterior. A infração anterior e a posterior não tem nada de semelhante; tão somente o fato de que estão vedadas por um mesmo dispositivo da CLT, mas envolvem espaços de tempo diferentes, circunstâncias diferentes, podem envolver empregados diferentes, ou seja, representam universos completamente diferentes.

CONCLUSÃO

Em conclusão, o que este artigo pretende evidenciar é que a lavratura de autos de infração de maneira proporcional às irregularidades encontradas é medida que atende a um só tempo aos preceitos legais, à justiça enquanto valor, e ao princípio constitucional da proporcionalidade.

A teoria dos atos jurídicos conceitua cada evento separadamente, desde que preenchidos os seus requisitos. Em se tratando de fenômenos distintos, não há razão para considerá-los como uma unidade jurídica. Aos aplicadores do Direito, na esfera sancionadora trabalhista, não resta outra alternativa lógica e jurídica senão a aplicação de penalidades respectivas para cada uma das infrações constatadas.

Entendimento em sentido contrário implicaria no engessamento das prerrogativas da Fiscalização do Trabalho (poder/dever de autuar), tolhida do seu principal instrumento (ao lado do poder de interdição e embargo).

Como dito, a Inspeção do Trabalho não pode perder o seu caráter preventivo, porquanto nenhum empregador se sentiria pressionado a regularizar sua conduta se apenas um auto de infração fosse lavrado diante da ocorrência de inúmeros ilícitos trabalhistas. Somente a lavratura de autos de infração distintos e proporcionais às infrações cometidas irá assegurar a efetivação do princípio da isonomia entre os administrados. O enquadramento administrativo de infrações trabalhistas múltiplas como bis in idem ou como infração continuada importaria em concorrência desleal entre os empregadores. O somatório das multas trabalhistas, cujos montantes pecuniários já se mostram defasados[27], tornar-se-ia ainda mais irrisório para os empregadores faltosos [28].

A inspeção do trabalho possui como objetivo institucional a fiscalização do fiel cumprimento das leis trabalhistas. Por tais motivos, o esvaziamento de suas atribuições por meio de uma interpretação que restringe o seu modus operandi irá impactar diretamente no respeito à dignidade da pessoa humana do trabalhador que ela visa proteger.

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Sobre o autor
Ilan Fonseca de Souza

Procurador do Trabalho na 5ª Região (Bahia), Especialista em Processo Civil, Mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Doutor em Estado e Sociedade pela Universidade Federal do Sul da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Ilan Fonseca. Fiscalização do trabalho: Distinções entre bis in idem, infração continuada e reincidência delitiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4211, 11 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30607. Acesso em: 22 dez. 2024.

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