Resumo: Este artigo científico perscruta o problemático tema das provas ilícitas, objeto de inúmeras discussões não apenas no ordenamento jurídico brasileiro. Os direitos fundamentais não são absolutos. A inadmissibilidade das provas ilícitas é um princípio constitucional (e não regra) que se fundamenta no efeito dissuasório. Em outros países (como EUA, Alemanha e Espanha), não existe regra absoluta de exclusão das provas ilícitas. Enquanto princípio, a garantia processual da inadmissilibilidade da prova ilícita está sujeita a juízo de ponderação quando conflitar com outro princípio de igual ou superior relevância. Esse juízo de ponderação perfaz-se através do princípio da proporcionalidade, da doutrina constitucional alemã, decisivo vetor axiológico no tema de provas ilícitas.
Palavras-chave: Processo Penal; Princípio da Proporcionalidade; Prova Ilícita Pro Reo e Pro Societate.
1-Introdução
A Constituição Federal de 1988 contemplou expressamente em seu texto o princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas, na dicção de seu art. 5º, inciso LVI: “são inadmissíveis no Processo as provas obtidas por meios ilícitos”. A recente Reforma do Código de Processo Penal trouxe à legislação processual este princípio, com a redação dada ao art. 157, caput, pela Lei 11.690/2008: “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.
Esta norma prevista na Constituição e no Código de Processo Penal é a premissa fundamental de tratamento da polêmica celeuma das provas ilícitas. O princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas é uma importante garantia processual inserida nos quadros dos direitos fundamentais do cidadão, com respaldo na cláusula do devido processo legal. É, nesse sentido, instrumento decisivo de proteção dos indivíduos contra a arbitrariedade do Estado.
Outrossim, a inadmissibilidade das provas ilícitas é uma importante limitação ao direito à prova, também constitucionalmente assegurado. Isso porque não podemos retroceder aos erros pretéritos de épocas em que a busca da verdade real era tão frenética que subvertia a lisura processual. Não pretendamos regredir a uma busca da “verdade” a qualquer custo, em que a investigação processual penal distribua discriminadamente ofensas à liberdade pública dos cidadãos (na grande maioria das vezes a serviço do Estado despótico e arbitrário). Não, os fins não justificam os meios.
Com isso, ao menos em tese, seria impossível tolerar-se a violação de uma liberdade pública com o pretexto de angariar provas para o processo penal, principalmente em se tratando de direitos e garantias individuais, eleitos como cláusulas pétreas.
Todavia, a inadmissiblidade das provas ilícitas não é regra inquebrantável. Apesar da preciosidade das normas que coíbem condutas violadoras da dignidade da pessoa humana no curso da persecução penal, conquista cada vez mais aceitação na doutrina a denominada teoria da proporcionalidade. A proporcionalidade realiza a ponderação de princípios em conflito para se determinar qual interesse mais relevante deve preponderar no caso concreto.
Não obstante, surgem algumas indagações que incendeiam este tema: é razoável afastar prova valiosa e eficaz, que possa conduzir à verdade real no processo penal, por ter sido trazida aos autos com infringência à norma de natureza material? Ou, em contrapartida, essa mesma prova deve ser valorada pelo juiz, punindo-se quem a obteve ilicitamente, pela violação penal, civil ou administrativa? Eis a grande dúvida que ocupa a doutrina e as cortes de vários países, que optam ora pela impunidade do crime, ora pela colheita de provas ilegais.
Justifica este trabalho a necessidade latente de os órgãos julgadores aplicarem, de forma prudente e equilibrada, o princípio da proporcionalidade quando da análise das provas ilícitas, a fim de evitar decisões desarrazoadas e avessas ao escopo do processo. Eis a importância tamanha do tema a ser abordado.
Portanto, este artigo objetiva investigar se é possível flexibilizar o princípio da inadmissiblidade das provas ilícitas em colisão com outros princípios constitucionais de igual ou superior relevância, à luz do princípio da proporcionalidade, nosso referencial teórico evidenciado.
Tratar da questão das provas ilícitas é árduo afã, pois é tema que se sobrepõe a várias tênues fronteiras jurídicas, tais como princípio da verdade real (processual), proporcionalidade, segurança jurídica, devido processo legal, dentre outros. Em suma, este artigo intentou perquirir um tema ainda irresoluto e em construção na doutrina e jurisprudência, cujo entendimento é decisivo para o processo penal.
2-Provas Ilícitas
O tema da prova ilícita tem se tornado uma das preocupações fundamentais do direito processual moderno. Devido aos grandes avanços tecnológicos, a vida privada, a intimidade e a honra da pessoa humana tornaram-se mais vulneráveis. Essa fragilidade desafia o legislador a implementar instrumentos hábeis à eficiente persecução penal, sem, contudo, autorizar invasões desnecessárias ou desmedidas na vida do cidadão.
Sobre esse desafio, oportunos se fazem os dizeres de Scarance Fernandes (2005, p.89):
Não é fácil, contudo, atingir o ponto de equilíbrio. De um lado, é necessário armar o Estado de poderes suficientes para enfrentar a criminalidade, crescente, violenta, organizada; por outro, deve o cidadão ter garantida a sua tranqüilidade, a sua intimidade, a sua imagem, e, principalmente, ser dotado de remédios eficazes para se contrapor aos excessos e abusos dos órgãos oficiais.
Não se pode, em nome da segurança social, compreender uma garantia absoluta da privacidade, do sigilo, no processo penal, mas também não se pode conceber, em homenagem ao princípio da verdade real, que a busca incontrolada e desmedida da prova possa, sem motivos ponderáveis e sem observância de um critério de proporcionalidade, ofender sem necessidade o investigado ou o acusado em seus direitos fundamentais e no seu direito a que a prova contra si produzida seja obtida por meios lícitos.
A problemática circunscrita ao tema “prova ilícita” liga-se, portanto, com a investigação acerca da relação entre o ilícito e o inadmissível no procedimento probatório e, sob o enfoque da política legislativa, no embate entre a busca da verdade real em prol da sociedade e a garantia dos direitos fundamentais que podem ser agredidos por essa investigação (GRINOVER e outros, 2001).
Apesar da existência de uma multiplicidade de terminologias para as provas ilícitas, temos no Brasil uma relativa uniformidade quanto à sistematização doutrinária do tema. A obra pioneira que mais influenciou a formação da doutrina nacional foi a de Ada Pelegrini Grinover: Liberdades Públicas e Processo Penal. Esta obra, adotando a terminologia do Professor da Universidade de Milão, Pietro Nuvolone, distingue as provas ilícitas das provas ilegítimas, sendo que ambas integram o gênero prova vedada, ilegal ou proibida (GRINOVER e outros, 2001):
a) Provas Ilícitas: provas obtidas mediante violação de normas de direito material. As provas ilícitas concernem à obtenção ou coleta da prova. Por exemplo, são ilícitas as declarações do indiciado ou réu colhidas sob tortura, pois há violação de norma material, qual seja, o tipo penal incriminador que descreve a conduta como crime de tortura (Lei 9.455/97).
b) Provas Ilegítimas: provas produzidas a partir da violação de normas de natureza eminentemente processual. As provas ilegítimas concernem à produção da prova, têm fim em si próprias. Por exemplo, a elaboração do laudo pericial com apenas um perito quando a lei exigia dois peritos (art. 159, caput, do CPP, na redação revogada dada pela Lei 8.862/94); proibição de depor em relação a fatos que envolvam o sigilo profissional (art. 207, CPP); recusa de depor por parte de parentes e afins (art. 206); documento exibido em plenário do Júri, com desobediência ao disposto no art. 475 do CPP.
A maioria da doutrina brasileira acompanha a classificação acima, tendo como representantes Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e Denilson Feitoza Pacheco.
Convém ressaltar que o direito material a ensejar o reconhecimento da ilicitude da prova deve ser direito fundamental protegido constitucionalmente. É o que observa Thiago Pierobom de Ávila (2007, p.96):
O direito cuja violação ensejará a ilicitude da prova há de ser um direito fundamental. A garantia fundamental da inadmissibilidade das provas ilícitas está estrategicamente localizada sob o título dos direitos e garantias fundamentais. Sua finalidade é criar um sistema de atividade processual que respeite minimamente os direitos elencados na Constituição tidos como essenciais para a convivência em sociedade. O problema perante o caso concreto é delimitar a linha que separa o plano da constitucionalidade e o da legalidade, haja vista o caráter analítico de nossa Constituição.
Há outra distinção entre as provas ilícitas e as provas ilegítimas no que diz respeito ao momento de sua ocorrência. Existe certo consenso na doutrina sobre esse aspecto: a doutrina majoritária entende que a prova será ilícita quando for produzida em ato anterior ou não coincidente com o produzido em juízo. Em outras palavras, a prova ilícita é obtida fora do processo com violação de norma de direito material; já a prova ilegítima é obtida dentro do processo com violação de norma de direito processual (ÁVILA, 2007, p.151)
Nucci (2009, p.31), por sua vez, afirma que prova ilícita é o gênero, do qual são espécies a prova ilegal (violação de norma penal) e a prova ilegítima (violação a norma processual penal).
A Lei 11.690/2008 abarcou inovação no conceito de prova ilícita em seu artigo 157: “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.”
Denílson Feitoza (2007, p.721) observa que a expressão “normas constitucionais”, na nova redação do art. 157 do CPP, diz respeito tanto a normas materiais quanto a normas processuais. Entretanto, pontua que a referência a “normas legais” deve ser compreendida restritivamente, pois, de modo contrário, não distinguiríamos entre prova ilícita e prova nula (ilegítima), portanto entre os regimes jurídicos da ilicitude (inadmissibilidade) e da nulidade.
O autor assevera, ainda, que o novo art. 157 do CPP “tem a mais abrangente definição de prova ilícita cogitada pela doutrina, mesmo com a interpretação restritiva que se possa dar à expressão ‘norma legal’.” E, por fim, sugere nova classificação:
a) provas ilícitas são as que violam:
a.1) normas constitucionais, de direito constitucional tanto material quanto processual;
a.2) normas legais, de direito infraconstitucional material;
b) provas ilegítimas são as que violam normas legais de direito infraconstitucional processual. [...]
Já Luiz Flávio Gomes (2008, p. 33) entende que, diante da nova redação do art. 157 do CPP, a classificação clássica de Nuvolone já não pode ser acolhida. Isso porque o novo dispositivo não distingue se a norma legal é material ou processual. Qualquer violação ao devido processo legal conduz à ilicitude da prova. Observa que, paralelamente às normas constitucionais e legais existem também as normas internacionais (estabelecidas em tratados de direitos humanos). E conclui:
Não importa, como se vê, se a norma violada é constitucional, ou internacional, ou legal, se material ou processual: caso venha a prova a ser obtida em violação a qualquer uma dessas normas, não há como deixar de concluir pela sua ilicitude (que conduz, automaticamente, ao sistema da inadmissibilidade).
3. Princípio da Proporcionalidade e as Provas Ilícitas
3.1- Colocação do Problema
Ada Pellegrini (e outros, 2001, p.115) já anunciava a teoria da proporcionalidade no âmbito das provas ilícitas:
A teoria, hoje dominante, da inadmissibilidade processual das provas ilícitas, colhidas com infringência a princípios ou normas constitucionais, vem, porém, atenuada por outra tendência, que visa corrigir possíveis distorções a que a rigidez da exclusão poderia levar em casos de excepcional gravidade. Trata-se do denominado verhaltnismassigkeit prinzcip (sic), ou seja, de um critério de proporcionalidade, pelo qual os tribunais da então Alemanha Federal, sempre em caráter excepcional e em casos extremamente graves, têm admitido a prova ilícita, baseando-se no princípio do equilíbrio entre valores fundamentais contrastantes.
Vale registrar que Guilherme de Souza Nucci (2010) discorda dessa posição. Nucci argumenta que o sistema processual penal brasileiro é ainda imaturo em assegurar, efetivamente, os direitos e garantias individuais, sendo, por isso, inoportuna a adoção da teoria da proporcionalidade. Aduz, ainda, que deve-se manter o critério da proibição plena da prova ilícita, “salvo nos casos em que o preceito constitucional se choca com outro de igual relevância”.
Esta teoria acerca do tratamento a ser dado às provas ilícitas cada vez ganha mais espaço entre a doutrina e a jurisprudência. Tendo em fulcro o Princípio da Proporcionalidade, essa atenuação prevê hipóteses em que as provas ilícitas, em caráter excepcional e em casos extremamente graves, poderão ser utilizadas, pois nenhuma liberdade pública é absoluta. Há a possibilidade, em casos delicados, em que se percebe que o direito tutelado é mais relevante que o direito à intimidade, segredo, liberdade de comunicação, por exemplo, de permitir-se sua utilização (ALEXANDRE DE MORAES, 2010). Dentre outros, defendem esta teoria Barbosa Moreira, Camargo Aranha, Moniz Aragão, Sérgio Demoro Hamilton, Antonio Scarance Fernandes, Vicente Greco Filho, Celso Ribeiro Bastos, Yves Granda Martins, Ada Pellegrini e Antonio Magalhães Gomes Filho; na Alemanha esta teoria prevalece entre a doutrina.
Em verdade, esta corrente teórica busca equilibrar as posições antagônicas de admissibilidade e inadmissibilidade da prova ilícita. Segundo a teoria da proporcionalidade, quando há “conflito (mesmo aparente) entre garantias individuais, impõe-se a prevalência do interesse maior a ser protegido, no caso em concreto” (POLASTRI LIMA, 2009, p.80).
Nessa linha, Camargo Aranha (1999) propõe que esta teoria intermediária receba a denominação de teoria do interesse preponderante. Destarte, em certas situações, a sociedade, representada pelo Estado, é posta diante de dois interesses fundamentais relevantes, antagônicos e que a ela cumpre preservar: a defesa de um princípio constitucional e a necessidade de perseguir e punir o criminoso. A solução deve consultar o interesse que prevalecer e que, como tal, deve ser preservado.
Como visto, a inadmissibilidade das provas ilícitas obsta a regressão a um sistema inquisitivo, em que a verdade é perseguida a qualquer preço; encerrada na máxima “os fins justificam os meios”. É, assim, importante instrumento de proteção dos direitos e garantias individuais.
Contudo, uma abordagem absoluta do princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas constitui, nos dizeres de Barbosa Moreira (1997:27), um “autêntico fantasma retardatário de um tipo de individualismo exasperadamente anti-social”.
No sentido da necessidade de relativização dos direitos fundamentais já decidia o Superior Tribunal de Justiça:
[...] está muito em voga, hodiernamente, a utilização ad argumentandum tantum, por aqueles que perpetram delitos bárbaros e hediondos, dos indigitados direitos humanos. Pasmem, ceifam vidas, estupram, seqüestram, destroem lares e trazem a dor a quem quer que seja, por nada, mas depois, buscam guarida nos direitos humanos fundamentais. É verdade que esses direitos devem ser observados, mas por todos, principalmente, por aqueles que impensadamente, cometem os censurados delitos trazendo a dor aos familiares das vítimas (STJ, HC n. 2.777/RJ, 6ª Turma, Rel. Min. Pedro Acioli, DJU 27/09/1993).
Na mesma esteira também já se manifestou o Supremo Tribunal Federal:
Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição (STF, MS n. 23.452/RJ, Plenário, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 12/05/2000).
Avolio (2003:53) comenta que a concepção atual da teoria da proporcionalidade:
é, pois, dotada de um sentido técnico no direito público a teoria do direito germânico, correspondente a uma limitação do poder estatal em benefício da garantia de integridade física e moral dos que lhe estão sub-rogados (...). Para que o Estado, em sua atividade, atenda aos interesses da maioria, respeitando os direitos individuais fundamentais, se faz necessário não só a existência de normas para pautar essa atividade e que, em certos casos, nem mesmo a vontade de uma maioria pode derrogar (Estado de Direito), como também há de se reconhecer e lançar mão de um princípio regulativo para se ponderar até que ponto se vai dar preferência ao todo ou às partes (Princípio da Proporcionalidade), o que também não pode ir além de um certo limite, para não retirar o mínimo necessário a uma existência humana digna de ser chamada assim.
Primeiramente, cumpre indagar se a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, contemplada no art. 5º, LVI, da CF/88, é uma regra ou princípio constitucional, seguindo a teoria de Alexy. Deve-se analisar também se a inadmissibilidade das provas ilícitas é absoluta ou se, em determinadas situações, é possível apresentar exceções diante de outros princípios constitucionais ponderados.
Pelo menos em uma situação é inconteste a possibilidade de utilização de uma prova ilícita em juízo: para comprovar a inocência do acusado. Esse entendimento de admitir a denominada prova ilícita pro reo tem sido amplamente acolhido pela doutrina nacional e estrangeira, como veremos mais adiante.
Ora, se nessas situações admite-se uma exceção ao disposto no art. 5º, LVI, da CF/88, diante da necessidade de ponderação de interesses com outro valor constitucional, não resta dúvidas de que tal dispositivo se trata de um princípio, segundo a classificação de Alexy: o princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos (PACELLI DE OLIVEIRA, 2004, p.181-185). Nesta perspectiva, Thiago Pierobom (2007, p.109) explica:
Ainda que a redação do dispositivo pareça apontar para sua configuração como uma regra (por estabelecer uma norma para o caso concreto), por trás da regra há o princípio, que justifica a criação da regra. Portanto, trata-se de um mandado de otimização: uma disposição que é o ponto de partida para a hermenêutica, mas não é absoluta, que aponta um caminho a ser seguido como regra geral, mas que já de antemão comporta temperamentos inerentes ao convívio dos diversos princípios constitucionais e da necessidade da máxima efetividade de cada um desses princípios, muitas vezes como vetores apontando para direções diversas.
E conclui (PIEROBOM DE ÁVILA, 2007, p.110):
Se o princípio admite uma ponderação de interesses ao menos com o direito à prova da defesa, decorrente do princípio da ampla defesa, cumpre definir se é possível a ponderação com outros princípios constitucionais, em especial o direito à prova da acusação, decorrente do direito de ação e requisito essencial para a realização do dever de proteção penal eficiente.
Perquirindo acerca das provas ilícitas, sustenta Barbosa Moreira (1997, p.14) que os princípios processuais não devem ser tidos como dogmas religiosos, mas ser lidos de acordo com sua significação instrumental, e sua finalidade à consecução dos fins do processo. Conclui que as normas jurídicas se articulam num sistema, cujo equilíbrio se impõe num complexo de restrições imanentes entre os diversos princípios em eventual colisão.
O princípio da inadmissibilidade, erigido pela Constituição Federal como vetor geral no tratamento das provas ilícitas, deve ser equilibrado com a razoabilidade intrínseca ao devido processo legal. Urge que se concilie a dupla instrumentalidade do processo penal: filtro do direito penal máximo (garantismo) e concretização do direito penal mínimo necessário (funcionalismo). Essa perspectiva de processo penal proporcional regula diretamente essa problemática das provas ilícitas (PIEROBOM DE ÁVILA, 2007, p.125).
Na jurisprudência alemã prepondera o princípio da proporcionalidade (Verhaltnismassigkeitprinczip). Fundamentam que a utilização de provas ilícitas, em certas hipóteses, decorre de um direito estatal, devendo prevalecer a ordem social em detrimento de direitos individuais, já que o interesse coletivo justifica tal escolha, principalmente em delitos de maior gravidade ou em casos de criminalidade organizada. Aliás, ao contrário da tendência brasileira de só admitir a prova ilícita pro reo, na Alemanha considera-se a proporcionalidade entre direitos individuais e coletivos. Para se ter uma ideia, a grande maioria dos países positiva expressamente em leis a teoria da proporcionalidade, mormente em leis de repressão à criminalidade (POLASTRI LIMA, 2009, p.79).
Pacelli (2009, p.329) registra que a questão, efetivamente, é das mais complexas e problemáticas do processo penal. Acredita que isso ocorra, sobretudo, pela impossibilidade de se fixar um critério minimamente objetivo para o aproveitamento da prova ilícita, pela aplicação da proporcionalidade.
Analisaremos, a seguir, a admissibilidade da prova ilícita pro reo e pro societate.
3.2- Prova Ilícita Pro Reo
Como analisado alhures, a ampla maioria da doutrina e jurisprudência brasileiras, inclusive do Pretório Excelso, admitem o princípio da proporcionalidade somente em relação à defesa, e, assim, a prova ilícita só seria admissível se viesse a favor da defesa, ou seja, pro reo, mas nunca a favor do Estado (pro societate). É o que ratifica Gomes Filho (1997, p.106):
No confronto entre uma proibição de prova, ainda que ditada pelo interesse de proteção a um direito fundamental e o direito à prova da inocência parece claro que deva este último prevalecer, não só porque a liberdade e a dignidade da pessoa humana constituem valores insuperáveis, na ótica da sociedade democrática, mas também porque ao próprio Estado não pode interessar a punição de um inocente, o que poderia significar a impunidade do verdadeiro culpado; é nesse sentido, aliás, que a moderna jurisprudência norte-americana tem afirmado que o direito à prova de defesa é superior.
Segundo Ada Pellegrini e outros juristas (2001, p. 137), “trata-se de aplicação do princípio da proporcionalidade, na ótica do direito de defesa, também constitucionalmente assegurado, e de forma prioritária no processo penal, todo informado pelo princípio do favor rei”. Acrescentam, ainda, que se “a prova, aparentemente ilícita, for colhida pelo próprio acusado, tem-se entendido que a ilicitude é eliminada por causas legais, como a legítima defesa, que exclui a antijuridicidade”.
Gomes Filho (1997, p. 107) basea-se na diversidade de valores protegidos constitucionalmente, pois a liberdade e a dignidade da pessoa humana são valores insuperáveis na perspectiva da sociedade democrática, além de que não pode interessar ao Estado a condenação de um inocente.
Deve-se reconhecer também que, se ao acusado está sendo imputado injustamente um delito e ele diligencia a produção da prova ilícita, estará atuando em estado de necessidade que, sendo uma excludente de ilicitude (decorrente da proporcionalidade), torna lícita a utilização da prova.
Alexandre de Moraes (2007, p. 265) traça alguns exemplos: a vítima, ameaçada e coagida, poderia realizar uma gravação clandestina, sem o conhecimento do interlocutor, em legítima defesa de sua liberdade pública (liberdade), utilizando-a no processo para comprovar a prática da extorsão; o filho, vítima de maus-tratos e sevícias, poderia utilizar uma gravação clandestina contra o pai, agressor, em legítima defesa de suas liberdades públicas (liberdade, integridade física); a família do seqüestrado poderia utilizar uma possível “carta confidencial”, remetida pelos seqüestradores do ente querido, para comprovar o seqüestro judicialmente e contribuir para a libertação do seqüestrado, vítima da agressão aos seus direitos humanos fundamentais (liberdade, integridade física etc.).
Nestor Távora (2009, p. 311) posiciona-se sobre o assunto:
Desta maneira, a prova ilícita poderia ser utilizada em favor da inocência, de sorte a evitar-se uma limitação na utilização de prova que, mesmo produzida ao arrepio da lei, cumpra o papel de inibir condenação descabida. Deve-se avaliar, portanto, a sua real utilidade para a persecução penal e o grau de contribuição para revelar a inocência, além do bem jurídico violado para a obtenção da prova.
Na utilização da prova ilícita pro reo, o valor em ponderação é a dignidade da pessoa humana do réu (núcleo axiológico da Constituição Federal), injustamente acusado de um delito, que corre o risco de pagar com sua liberdade, perdendo alguns anos de sua vida, pela equivocada apreciação dos fatos na atividade jurisdicional. Milita a favor da admissão da prova ilícita pro reo a ponderação da garantia constitucional da ampla defesa e a configuração da situação de estado de necessidade do acusado. Dessa forma, conclui Scarance Fernandes (2005, p. 94) que “é ampla a aceitação de que ele [o princípio da proporcionalidade] seja aplicado aos casos em que a prova da inocência do réu depende de prova produzida de maneira ilícita”.
Paulo Rangel (2009, p. 426) endossa este entendimento majoritário:
Assim, surge em doutrina a teoria da exclusão da ilicitude, onde a conduta do réu é amparada pelo direito e, portanto, não pode ser chamada de ilícita. O réu, interceptando uma ligação telefônica, sem ordem judicial, com o escopo de demonstrar sua inocência, estaria agindo de acordo com o direito, em verdadeiro estado de necessidade justificante. [...] Dessa forma, é admissível a prova colhida com (aparente) infringência às normas legais, desde que em favor do réu para provar sua inocência, pois absurda seria a condenação de um acusado que, tendo provas de sua inocência, não poderia usá-las só porque (aparentemente) colhidas ao arrepio da lei.
O STF já se pronunciou, em diversos julgados, a favor da licitude da gravação de conversa telefônica, realizada por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro, desde que em determinadas circunstâncias. Em um caso da relatoria do Ministro Moreira Alves, o Tribunal Excelso considerou lícita a gravação e divulgação de conversa telefônica sem o conhecimento de terceiro que pratica o crime, desde que praticada em legítima defesa.
Oportuno é consignar as razões levantadas pelo Ministro:
[...] evidentemente, seria uma aberração considerar como violação do direito à privacidade a gravação pela própria vítima, ou por ela autorizada, de atos criminosos, como o diálogo com seqüestradores, estelionatários e todo tipo de achacadores. No caso, os impetrantes esquecem que a conduta do réu apresentou, antes de tudo, uma intromissão ilícita na vida privada do ofendido, esta sim merecedora de tutela. Quem se dispõe a enviar correspondência ou a telefonar para outrem, ameaçando-o ou extorquindo-o, não pode pretender abrigar-se em uma obrigação de reserva por parte do destinatário, o que significa o absurdo de qualificar como confidencial a missiva ou a conversa. (STF, HC n. 74.678/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 15/07/1997).
Essa decisão foi confirmada por vários outros julgados da mesma Corte; citem-se os seguintes:
É lícita agravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, ou com sua autorização, sem ciência do outro, quando há investida criminosa deste último. É inconsistente e fere o senso comum falar-se em violação do direito à privacidade quando interlocutor grava diálogo com seqüestradores, estelionatários ou qualquer tipo de chantagista (STF, HC n. 75.338-8/RJ, Plenário, Rel. Min. Nelson Jobim, DJU 25/09/1998).
Captação, por meio de fita magnética, de conversa entre presentes, ou seja, a chamada gravação ambiental, autorizada por um dos interlocutores, vítima de concussão, sem o conhecimento dos demais. Ilicitude da prova excluída por caracterizar-se o exercício de legítima defesa de quem a produziu. Precedentes do Supremo Tribunal Federal HC 74.678, DJ de 15.8.97 e HC 75.261, sessão de 24.6.97, ambos da Primeira Turma (STF, RE n. 212.081-2/RO, 1ª Turma, Rel. Min. Nelson Jobim, DJU 11/03/98).
O Superior Tribunal de Justiça também andou nessa direção:
As liberdades públicas não podem ser utilizadas como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Dessa forma, aqueles que, ao praticarem atos ilícitos, inobservarem as liberdades públicas de terceiras pessoas e da própria sociedade, desrespeitando a própria dignidade da pessoa humana, não poderão invocar, posteriormente, a ilicitude de determinadas provas para afastar suas responsabilidades civil e criminal perante o Estado [...] (Alexandre de Moraes, in Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional, 2ª Edição, 2003, São Paulo, Editora Atlas, páginas 382/383).
Não há falar em ilicitude da prova que se consubstancia na gravação de conversação telefônica por um dos interlocutores, vítima, sem o conhecimento do outro, agente do crime. Recurso improvido (STJ, HC n. 12.266/SP, 6ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJU 20/10/2003).
Outrossim, a prova obtida com a violação de direitos fundamentais deve ser aceita pelo órgão julgador através da aplicação do princípio da proporcionalidade, desde que se destine a provar a inocência do acusado (adequação), seja a única forma de que este dispõe (necessidade) e se respeite a proporcionalidade do bem lesado com o bem a ser protegido (proporcionalidade estrita). Qualquer que seja a excludente de antijuridicidade (legítima defesa, estado de necessidade, etc.), fato é que, na admissão de provas ilícitas pro reo, há a ponderação de interesses própria da proporcionalidade. Ademais, o princípio da proporcionalidade legitima a conduta violadora de direito substantivo, de maneira que a prova obtida não é ilícita, apesar de formalmente violar uma norma jurídica (ÁVILA, 2007, p. 205).
Enfim, a prova da inocência do réu deve sempre ser aproveitada, em quaisquer circunstâncias. Ora, em um Estado de Direito não há como se conceber a ideia da condenação de alguém que o próprio Estado acredita ser inocente. Seria um paradoxo inexplicável.
3.3- Prova Ilícita Pro Societate
Se a admissão da prova ilícita pro reo é acolhida pacificamente, bem mais problemática é a questão da proporcinalidade em desfavor do cidadão.
Scarance Fernandes (2005, p.81) defende a admissibilidade da prova ilícita pro societate:
A proporcionalidade verificada entre duas normas constitucionais de natureza material: a proteção ao sigilo da correspondência, superada pela necessidade de ser preservada a segurança do presídio e a vida do juiz de direito, aqui, a prova obtida não será considerada ilícita e, por isso, não há afronta à regra de sua inadmissibilidade no processo. Em suma, a norma constitucional que veda a utilização no processo de prova obtida por meio ilícito deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade, devendo o juiz, em cada caso, sopesar se outra norma, também constitucional, de ordem processual ou material, não supera em valor aquela que estaria sendo violada.
O doutrinador paulista acrescenta, ainda, que “não se trata, contudo, de ser o princípio invocado a favor ou contra o acusado, mas de se verificar, em cada situação concreta, se a restrição imposta a algum direito do acusado é necessária, adequada e justificável em face do valor que se protege” (FERNANDES, 2005, p.82).
Barbosa Moreira (apud PACHECO, 2008, p. 822) entende também que a admissibilidade da prova ilícita por aplicação do princípio da proporcionalidade também pode servir à acusação (prova ilícita pro societate), com fundamento no princípio da isonomia e tendo em vista a crescente criminalidade organizada.
A aplicação da proporcionalidade, em favor da defesa, também se fundamenta no princípio da isonomia, pois “os órgãos de repressão penal dispõem de maiores e melhores recursos que o réu. Em tal perspectiva, ao favorecer a atuação da defesa no campo probatório, não obstante posta em xeque a igualdade formal, se estará tratando de restabelecer entre as partes a igualdade substancial” (MOREIRA, 1997, p.128).
Em raciocínio inverso, a aplicação do princípio da proporcionalidade, fundada no princípio da isonomia, também poderia ocorrer em favor da acusação, por exemplo, na hipótese da criminalidade organizada, quando esta é superior às Polícias e ao Ministério Público, restabelecendo-se, assim, a igualdade substancial na persecução penal. Nos dizeres de Barbosa Moreira (1997, p.105):
Se a defesa – à diferença da acusação – fica isenta do veto à utilização de provas ilegalmente obtidas, não será essa disparidade de tratamento incompatível com o princípio, também de nível constitucional, da igualdade das partes? Quiçá se responda que, bem vistas as coisas, é sempre mais cômoda a posição da acusação, porque os órgãos de repressão penal dispõem de maiores e melhores recursos que o réu. Em tal perspectiva, ao favorecer a atuação da defesa no campo probatório, não obstante posta em xeque a igualdade formal, se estará tratando de restabelecer entre as partes a igualdade substancial.
O raciocínio é hábil e, em condições normais, dificilmente se contestará a premissa da superioridade de armas da acusação. Pode suceder, no entanto, que ela deixe de refletir a realidade em situações de expansão e fortalecimento da criminalidade organizada, como tantas que enfrentam as sociedades contemporâneas. É fora de dúvida que atualmente, no Brasil, certos traficantes de drogas estão muito mais bem armados que a polícia e, provavelmente, não lhes será mais difícil que a ela, nem lhes suscitará maiores escrúpulos, munir-se de provas por meios ilegais. Exemplo óbvio é o da coação de testemunhas nas zonas controladas pelo narcotráfico: nem passa pela cabeça de ninguém a hipótese de que algum morador da área declare à polícia, ou em juízo, algo diferente do que lhe houver ordenado o ‘poderoso chefão’ local.
E o jurista complementa a séria questão:
A propósito: não merecerá particular reexame a precipitação em importar, de maneira passiva e acrítica ? segundo não raro acontece ?, a doutrina dos ‘frutos da árvore venenosa’, ainda mais em formulação indiscriminada, nua dos matizes que a recobrem no próprio país de origem? Será ela adequada à realidade do Brasil de hoje? Ampliarem tal medida, para os infratores atuais e potenciais ? sobretudo na área constantemente em expansão , da ‘criminalidade organizada’ ?, a perspectiva de escapar às sanções cominadas em lei acaso contribuirá para satisfazer o generalizado clamor contra a impunidade, vista por tantos, com razões ponderáveis (e descontados alguns acessos de paranóia), qual fator relevante na aceleração do ritmo em que vai baixando o nível ético dos nossos costumes, políticos e outros? Devemos confessar de resto, com absoluta franqueza, a enorme dificuldade que sentimos em aderir a uma escala de valores que coloca a preservação da intimidade de traficantes de drogas acima do interesse de toda a comunidade nacional (ou melhor: universal) em dar combate eficiente à praga do tráfico ? combate que, diga-se de passagem, é também um valor constitucional, conforme ressalta da inclusão do ‘tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins’ entre os ‘crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia’ (art. 5º, XLIII). (MOREIRA, 1997, p.134)
Camargo Aranha (1999, p.50) levanta pertinentes questionamentos:
[...] absolver ou não um inocente acusado de um crime grave quando a prova única em seu favor é uma gravação obtida clandestinamente? Condenar ou não um grupo de celerados que organiza uma quadrilha de seqüestradores, quando a prova única é uma gravação ambiental obtida ocultamente numa cela de presídio? E como falar-se na defesa do princípio da moralidade do serviço público quando a prova obtida for uma gravação clandestina feita pela vítima da 'chantagem'?
Posicionamento interessante é o de Pacelli de Oliveira (2009, p.330), analisando o tema das provas ilícitas. Segundo o processualista, o critério de proporcionalidade poderá validamente ser utilizado em favor da acusação, nas hipóteses em que não estiver em risco a aplicabilidade potencial e finalística da norma da inadmissibilidade. Por aplicabilidade potencial e finalística entende o autor ser a função de controle da atividade estatal (responsável pela produção da prova) que desempenha a norma do art. 5º, LVI, da CF. “Assim, quando não se puder falar no incremento ou no estímulo da prática de ilegalidade pelos agentes produtores da prova, pensamos ser possível, em tese, a aplicação da regra da proporcionalidade.”
O autor exemplifica com o julgamento do RE nº 251.445/GO (DJU 2.8.200), de relatoria do eminente Ministro Celso de Mello, que tratava do caso de uma habitual prática de crimes contra crianças e adolescentes. Ocorre que um terceiro invadiu o local de trabalho do acusado e subtraiu diversas fotografias que exibiam crianças nuas e/ou mantendo relações sexuais. De posse do material incriminador o terceiro exigiu dinheiro do acusado para devolver as fotos; ante a recusa do suspeito, o terceiro entregou as fotos à Polícia.
A Suprema Corte confirmou a absolvição realizada em segunda instância, com base na inadmissibilidade da prova obtida ilicitamente, com violação ao domicílio do réu. Pacelli critica que a violação covarde dos direitos fudamentais (à segurança, à proteção da incapacidade, à intimidade e outros tantos) de vários menores não mereceu a aplicação do princípio da proporcionalidade, preferindo-se proteger o domicílio do acusado (art. 5º, XI, CF). O jurista aduz que a Suprema Corte desperdiçou uma grande oportunidade de aplicar o critério da proporcionalidade, sobretudo porque se encontrava diante de uma situação em que as lesões (presentes e futuras) causadas pela infração criminal eram (e serão) imensamente maiores que aquela decorrente da violação do domicílio (PACELLI, 2009, p.331).
E vai além. Lembra que o principal objetivo da garantia da inadmissibilidade da prova ilícita é servir como fator inibitório e intimidatório de práticas ilegais perpetradas pelos agentes policiais e órgãos responsáveis pela produção da prova, missão que não foi cumprida em momento algum. Não se obstou o incremento das atividades policiais abusivas, porque “quem produziu a prova não foi o Estado, e, sim, um particular, que, à evidência, não se dedica a essa função (a de produtor de provas para o processo penal).” E lança sua conclusão:
Ora, se é possível, como de fato nos parece, sustentar que a norma da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente destina-se prioritariamente (e não unicamente) ao Estado, no processo penal, dado que este é o produtor da prova, mesmo nas ações penais privadas, não há como negar que o referido princípio constitucional não perderia tanto em sua efetividade quanto aquele (princípio) que garante a proteção dos direitos fundamentais, e cuja violação se demonstraria por meio da prova ilicitamente obtida pelo particular. (...) Não por outra razão, o Direito norte-americano, exatamente a fonte de nossa vedação das provas ilícitas, aceita, sem maiores problemas, a prova obtida ilicitamente por particulares. (...) O fundamento é o mesmo que acabamos de expor: a norma da vedação da prova ilícita dirige-se ao Estado, produtor da prova, e não ao particular.
Pacelli acrescenta ainda um caso concreto que demonstra a aplicação do princípio da proporcionalidade pela Suprema Corte. Trata-se de julgamento envolvendo a extradição de uma artista mexicana, a qual alegara ter sido vítima de estupro no interior das dependências da Polícia Federal. Neste caso, o Supremo Tribunal Federal deferiu a produção de exame de DNA na placenta da gestante, recolhida sem a autorização desta, com fundamento em uma necessária ponderação entre valores constitucionais contrapostos, admitindo a aplicação da proporcionalidade na produção da prova (RCL nº 2.040/DF. Rel. Min. Néri da Silveira, em 21.2.2002 ? Informativo STF nº 257, 18 a 22 de fevereiro de 2002).
O autor ressalta que não existe lei brasileira autorizando o exame de DNA contra a vontade do titular do material recolhido, nem tampouco há lei prevendo a possibilidade de prévia autorização judicial para a criação de meios de prova não estabelecidos na legislação pertinente. Observa que, mesmo se tratando de material colhido junto à vítima do suposto estupro, o fato é que, em relação aos possíveis réus/indiciados/suspeitos, o meio de prova utilizado seria ilegal. Conclui que, inegavelmente, a Suprema Corte valeu-se de critério de proporcionalidade para a aceitação de prova não prevista em lei, que seria, a priori, inadmissível, ainda mais porque favorável à acusação.
Eis interessante acórdão do STF, lavrado pelo Ministro Celso de Mello, em que o Pretório Excelso, sopesando os bens jurídicos em colisão, acolheu a orientação de que é possível limitar um direito fundamental em prol da sociedade:
A administração penitenciária, com fundamento em razões de segurança pública ou disciplina prisional, desde que respeitada a norma inscrita no art.41, parágrafo único, da Lei n. 7.210/84, pode proceder à interceptação da correspondência remetida pelos sentenciados, eis que a cláusula tutelar da inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de prática ilícitas (STF, HC n. 70.814-5/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU 24/01/1994).
Neste julgado, assim fundamentou o Relator:
[...] deve ser considerada a inviolabilidade do sigilo da correspondência, com vistas à finalidade ética ou social do exercício do direito que resulta da garantia; tutela desta natureza não pode ser colocada para proteção de atividades criminosas ou ilícitas. Certamente há limitações que, em casos concretos, aconselham as exigências de segurança da execução penal, inclusive com a limitação do direito e sigilo da correspondência do preso. Podem ser efetuadas a interceptação e a violação da correspondência no caso de suspeita da prática de infração penal, da remessa ou recebimento de objetos proibidos, de dúvidas quanto ao remetente ou destinatário, da preservação da segurança do presídio, das medidas para impedir a fuga ou motins, das comunicações que comprometem a moral e os bons costume, ou seja, em todas as hipóteses em que avulte o interesse social ou se trate de proteger ou resguardar direitos ou liberdade de outrem ou do Estado, também constitucionalmente assegurados.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça também tem acolhido com certa freqüência a tese da proporcionalidade, mormente quanto à questão das gravações de conversas por um dos interlocutores sem a autorização do outro. Foi o que ocorreu com a inédita e polêmica decisão do STJ no Habeas Corpus 3.982/RJ, na qual se reconheceu a eficácia de prova obtida ilicitamente para embasar a acusação, valendo-se da teoria da proporcionalidade pro societate:
Constitucional e Processual Penal. ‘Habeas Corpus’. Escuta Telefônica com ordem judicial. Réu condenado por formação de quadrilha armada, que se acha cumprindo pena em penitenciária, não tem como invocar direitos fundamentais próprios do homem livre para trancar ação penal (corrupção ativa) ou destruir gravação feita pela polícia. O inciso LVI do artigo 5º da Constituição, que fala que ‘são inadmissíveis as provas obtidas por meio ilícito’, não tem conotação absoluta. Há sempre um substrato ético a orientar o exegeta na busca de valores maiores na construção da sociedade. A própria Constituição Federal Brasileira, que é dirigente e programática, oferece ao juiz, através da ‘atualização constitucional’ (VERFASSUNGSAKTUALISIERUNG), base para o entendimento de que a cláusula constitucional invocada é relativa. A jurisprudência norteamericana, mencionada em precedente do Supremo Tribunal Federal, não é tranqüila. Sempre é invocável o princípio da ‘razoabilidade’ (REASONABLENESS). O ‘princípio da exclusão das provas ilicitamenteobtidas’ (EXCLUSIONARY RULE) também lá pede temperamentos (STJ, HC n. 3.982/RJ, 6ª Turma, Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU 26/02/1996).
Outras decisões do STJ abarcam o princípio da proporcionalidade pro societate:
GRAVAÇÃO DE CONVERSA TELEFÔNICA POR UM DOS INTERLOCUTORES. PROVA LÍCITA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. "HABEAS CORPUS". RECURSO. 1. A gravação de conversa por um dos interlocutores não é interceptação telefônica, sendo lícita como prova no processo penal. 2. Pelo Princípio da Proporcionalidade, as normas constitucionais se articulam num sistema, cujo harmonia impõe que, em certa medida, tolere-se o detrimento a alguns direitos por ela conferidos, no caso, o direito à intimidade. 3. Precedentes do STF. 4. Recurso conhecido mas não provido (STJ, RHC 7.216/SP, relator Ministro Edson Vidigal, publicação DJ 25/05/1998).
"HABEAS CORPUS". ESCUTA TELEFONICA COM ORDEM JUDICIAL. Réu condenado por formação de quadrilha armada, que se acha cumprindo pena em penitenciária, não tem como invocar direitos fundamentais próprios do homem livre para trancar ação penal (corrupção ativa) ou destruir gravação feita pela polícia. O inciso LVI do art. 5º da Constituição, que fala que ‘são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícito’, não tem conotação absoluta. Há sempre um substrato ético a orientar o exegeta na busca de valores maiores na construção da sociedade. A própria Constituição Federal brasileira, que é dirigente e programática, oferece ao juiz, através da ‘atualização constitucional’ (verfassungsaktualisierung), base para o entendimento de que a cláusula constitucional invocada é relativa. A jurisprudência norte-americana, mencionada em precedente do Supremo Tribunal Federal, não é tranquila. Sempre é invocável o princípio da ‘razoabilidade’ (reasonableness). O ‘princípio da exclusão das provas ilicitamente obtidas’ (exclusionary rule) também lá pede temperamentos. Ordem denegada. (STJ, HC 3.982/RJ, relator Ministro Adhemar Maciel, publicação DJ 26/02/1996).
Registre-se o entendimento favorável de Capez (2004, p.261):
Entendemos que o princípio da proporcionalidade deve também ser admitido pro societate, pois o confronto que se estabelece não entre o direito ao sigilo, de um lado, e o direito da acusação à prova, do outro. Trata-se de algo mais profundo. Quando o conflito se estabelecer entre a garantia, o sigilo e a necessidade de se tutelar a vida, o patrimônio e a segurança, bens também protegidos por nossa Constituição, o juiz, utilizando-se do seu alto poder de discricionalidade, deve sopesar e avaliar os valores contrastantes envolvidos. Suponhamos uma carta apreendida ilicitamente, a qual seria dirigida ao chefe de uma poderosa rede de narcotráfico internacional, com extensas ramificações com o crime organizado. Seria mais importante proteger o direito do preso ao sigilo de sua correspondência epistolar, do qual se serve para planejar crimes, do que desbaratar uma poderosa rede de distribuição de drogas, a qual ceifa milhões de vidas de crianças e jovens? Certamente não.