1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho funda-se na análise do critério de composição do Supremo Tribunal Federal (STF), e para isso, serão analisados dois modelos de Tribunais Constitucionais, sendo eles o modelo norte americano e o europeu, aqui representado pelo modelo alemão.
A razão dessa análise motiva-se diretamente na principal função do STF, a de guardião constitucional, considerando um recente passado ditatorial em que direitos fundamentais foram suprimidos, surge a preocupação de conferir um adequado controle sobre os atos dos poderes legiferantes, como forma de evitar que razões circunstanciais ou egoísticas causem um retrocesso às conquistas democráticas.
Neste ponto, muitas opiniões e sugestões são propaladas sobre os critérios de indicação dos julgadores supremos, já que é conferida a eles a responsabilidade de aferir a compatibilidade das leis ao seu centro de validade.
E desse modo, espalham-se questionamentos pela comunidade jurídica e pela mídia sobre o papel dos Ministros na defesa da Constituição, sendo colocados como alvos de críticas quanto a sua isenção e independência em relação ao Poder Executivo, o que acaba por incentivar a busca de um novo sistema de recrutamento de Ministros ou até da criação de um novo órgão.
2 REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE A GUARDA DA CONSTITUIÇÃO E A NECESSÁRIA ISENÇÃO PARA O EXERCÍCIO DO CARGO DE MINISTRO DO STF
2.1 A Supremacia da Constituição
A Constituição Federal (CF) de 1988 consagrou diversos direitos próprios de um Estado Democrático de Direito, elevando conjuntamente muitas matérias que antes eram tratadas em âmbito infraconstitucional, criando um modelo de constituição dogmática, formal e conferindo rigidez ao seu texto, como dita José Afonso da Silva: “Da rigidez emana, como primordial conseqüência, o princípio da supremacia da constituição [...]”.[3]
Com a finalidade de garantir a proteção dos direitos conquistados, a CF possui instrumentos constitucionais democráticos de limitação ao Poder Estatal, contudo não houve a previsão de diversos pontos sensíveis, para o custeio de um novo Estado Social, que aliado à dinâmica do mundo contemporâneo, mostrou a necessidade de ajustes constantes, realizados pela atuação do Poder Constituinte Reformador, além da participação mais acentuada do Poder Executivo, através de um processo legislativo peculiar, o que sobrelevou a necessidade de fiscalização do escalonamento normativo.
A Constituição sem os referidos ajustes, passaria a ser apenas “uma folha de papel” como advogou Lassalle:
Onde a Constituição reflete os fatores reais e efetivos do poder, não pode existir um partido político que tenha por lema o respeito à Constituição, porque ela já é respeitada, é invulnerável. Mau sinal quando esse grito repercute no país, pois isto demonstra que na constituição escrita há qualquer coisa que não reflete a constituição real, os fatores reais do poder.
[...]
Essa Constituição poderá ser reformada radicalmente, virando-a da direita para a esquerda, porém, mantida integralmente, nunca.[4]
E ainda afirmou Georg Jellinek:
[...]o desenvolvimento das Constituições demonstra que regras jurídicas não se mostram aptas a controlar, efetivamente, a divisão de poderes políticos. As forças políticas movem-se consoante suas próprias leis, que atuam independentemente das formas jurídicas.[5]
Konrad Hesse evoluindo o pensamento constitucional e desenvolvendo na seqüência a idéia da força jurídica, defendeu que apesar da exeqüibilidade da Constituição depender de quanto o seu texto corresponde ao equilíbrio real de forças políticas e sociais, há uma força efetiva em seu texto, tendo assim a chamada vontade de Constituição. [6]
Alça-se, desse modo, a um órgão competente para tanto (um Tribunal Constitucional), a competência de conferir estabilidade à Constituição (centro de validade de todo o ordenamento jurídico que não pode ser desnaturado), mas também, não deve ser apenas este Tribunal o responsável por esta tarefa, pois o povo é diretamente interessado na efetividade constitucional devendo também zelar e cobrar pela higidez do ordenamento jurídico.
2.2 O STF e a Guarda Constitucional
A natureza do STF como Tribunal Constitucional e guardião constitucional advém da própria CF, conforme o art. 102, caput, da CF: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, [...]”.
Entretanto, para alguns juristas, seria condição essencial para conferir legitimidade ao exercício da guarda constitucional que o modo de composição do órgão fosse de membros eleitos pelos três poderes [7], por ser esta uma função política, neste ponto vale sopesar o seguinte entendimento:
Será certo, e sem dúvida o é, que os conflitos que terá de resolver o Tribunal Constitucional terão, necessariamente, substância política, como é comum em todos os Tribunais desta espécie, supondo que operam sobre uma norma imbuída desta substância em sua mais nobre expressão. A diferença óbvia entre um juiz constitucional e o juiz ordinário é que os valores em que se há de buscar seu primeiro juízo são, em primeiro lugar, os valores políticos decididos pelo constituinte, enquanto que o segundo são simples valores civis, penais, trabalhistas, etc., configurados pelo legislador ordinário... no que se aplicam correntemente já apagaram seu caráter de valores políticos originários para se converter em puramente técnicos. É, pois, certo que o Tribunal decide conflitos políticos, mas o característico é que a resolução dos mesmos se dê por critérios e métodos jurídicos[...][8].
Conforme é possível depreender nesta passagem, interpretar a Constituição não é uma atividade tão simples como interpretar uma norma ordinária, a hermenêutica constitucional consiste na consideração direta dos valores constitucionais, e isto não acarreta ilegitimidade por ter o STF uma conformação de órgão jurisdicional e não político em sua essência.
Ainda neste tópico Tremps assinala:
O que faz que um órgão tenha caráter jurisdicional são as técnicas de atuação e sua independência, cujas garantias procedem, mais que da forma de eleição de seus membros, das condições exigidas para ser elegível, e, sobretudo, de sua falta de dependência a respeito de outros poderes, incluídos aqueles que os nomearam.[9]
Ressalta-se, portanto, neste trabalho, a necessidade de isenção para o exercício do cargo de Ministro, sendo esta qualidade de fundamental importância para a independência do Órgão Supremo do Judiciário, pois está no STF um dos maiores pilares da democracia que é a guarda da Constituição, para isto há a necessidade de uma atuação ética e independente de acordo com as virtudes que tanto enobrecem a magistratura, possibilitando através de suas decisões enxergar o ideal coletivo e a realização dos direitos constitucionais, e assim, considera-se a possibilidade de aprimoramento do modo de composição do Tribunal, com a colheita de alguns pontos sensíveis de mudança obtidos por meio da análise dos modelos de Tribunais que são apresentados no próximo capítulo.
3 TRIBUNAIS CONSTITUCIONAIS - O MODELO NORTE AMERICANO E ALEMÃO
3.1 Origem Histórica
Em apertada síntese é possível compreender que a criação dos Tribunais Constitucionais teve íntima relação com a necessidade do controle de atos dos demais poderes, o que demonstra a necessidade de superação do conceito clássico de separação de poderes ao permitir que o controle seja realizado por um Tribunal como destaca Oswaldo Luiz Palu:
A origem do controle da constitucionalidade é remota e a diversidade de órgãos e sistemas para tanto criados bastante grande. Há países que adotaram a solução jurisdicional, quer atribuindo tal função ao Poder Judiciário comum (caso dos EUA), quer criando órgãos específicos (Tribunais Constitucionais) para exercer a função, mas inserindo-os também no Poder Judiciário, ou ainda criando órgãos específicos para o controle, mas deixando-os fora dos poderes, caso da Itália.[10]
Em relação a qual órgão deveria ser investido da função de exercer o controle de constitucionalidade, Carl Schmitt e Hans Kelsen, sustentaram entendimentos divergentes.
Carl Schmitt foi defensor do controle político exercido pelo chefe do executivo, por entender que a aferição da constitucionalidade de uma lei era incompatível com a função de um Tribunal[11], contudo, esta posição caiu por terra após a experiência nazista em que Adolf Hitler, não precisou sequer derrogar formalmente a Constituição de Weimar para destruí-la, utilizando para isto, o título de guardião constitucional[12].
Hans Kelsen: “[...] teve a oportunidade de refutar cada um dos argumentos expendidos por Schmitt[....]”[13], e assim, consagrou a posição do Tribunal Constitucional como guardião da Constituição, influenciando diretamente a criação do Tribunal da Áustria em 1920 e na seqüência o da Alemanha.
Neste sentido vale citar Hans Kelsen:
De fato, o que parece desqualificar o Chefe de Estado, ou o Chefe do Executivo é que sua escolha se realiza por meio de uma eleição, com base em partidos políticos, como não poderia deixar de ser num regime democrático. Esse fato, por si só, compromete sua independência.[14]
A partir desta experiência, a idéia dos Tribunais Constitucionais proliferou pelo mundo, e neste ponto destaca-se o Tribunal Constitucional Alemão e o controle abstrato de constitucionalidade exercido por este. Sem olvidar, primeiramente, de tecer uma breve análise em relação à Suprema Corte Americana, nascedouro histórico do controle difuso de constitucionalidade.
3.2 Suprema Corte Norte Americana
3.2.1 Escolha dos juízes
A Constituição norte americana determina explicitamente o modo de indicação dos juízes que devem compor a Suprema Corte, atribuindo a escolha ao Presidente da República com a participação do Senado Federal, o qual deve aprovar ou rejeitar o indicado (bastando maioria simples), cabendo a lei complementar regular o número de membros (atualmente nove) e outras competências.
Pode-se constatar, portanto, que este critério de seleção de juízes influenciou a estruturação do STF no texto da Constituição Federal brasileira, a qual exauriu de forma limitativa a competência e os critérios de escolha de seus Ministros.
3.2.2 Requisitos capacitários para a escolha de juízes
Não há previsão de requisitos capacitários para os nomeados para compor a Suprema Corte, sendo uma opção política e marcada por disputas entre os Partidos norte americanos, Republicano e Democrata, devido à importância relativa às nomeações, grupos como os próprios membros de partidos, a Associação Norte-Americana de Advogados (ABA) e até mesmo os membros da Corte participam do processo ao tentar influenciar o Presidente e o Senado.[15]
3.2.3 Duração do exercício do cargo e garantias
Os juízes exercerão o cargo vitaliciamente conservando o cargo “[...] enquanto bem servirem a nação, sem limitação de idade para a aposentadoria compulsória”.[16]
Os componentes da Corte também gozam da garantia de irredutibilidade de suas remunerações e não poderão exercer ou cumular outro cargo.
3.2.4 Competências e forma de controle de constitucionalidade
Quanto à competência da Suprema Corte Americana, caracteriza-se esta como um tribunal eminentemente recursal, inclusive na análise do controle difuso de constitucionalidade (judicial review), tendo como competência originária obrigatória dirimir conflitos que envolvem os Estados-membros, e de forma geral tem um reduzido número de competências.[17]
Ainda no campo de sua competência, surgiu o controle de constitucionalidade difuso, no famoso caso Marbury v. Madison, e já nesta decisão foi possível denotar o caráter político, como assenta Alexandre de Moraes:
[...] a Suprema Corte era composta majoritariamente de federalistas, enquanto o Congresso e o Executivo estavam sob o controle dos republicanos, que jamais aceitariam uma intervenção direta do Judiciário nos negócios políticos do Executivo.[18]
Apesar de inexistir o Controle Abstrato de Constitucionalidade no sistema americano, vige o sistema de precedentes obrigatórios para os tribunais inferiores e entes administrativos, o que acaba por relativizar a ausência do controle abstrato de normas, ressalvando que a Corte não está vinculada aos seus próprios precedentes, possibilitando, portanto, a mutação constitucional. [19]
3.2.5 Atuação do tribunal em defesa dos direitos fundamentais
Em relação à atuação protetiva em que se devem pautar as Cortes Superiores, Alexandre de Moraes leciona que: “Entre todos os tribunais, nenhum se notabilizou tanto pela defesa intransigente, polêmica e construtiva dos direitos fundamentais como a Suprema Corte Americana”[20], tome-se por exemplo, o precedente secular que possibilitava a segregação racial nas escolas públicas dos Estados Unidos, o qual fora reputado inconstitucional em 1954, sendo considerada a mais importante decisão da Corte (caso Brown v. Board of Education)[21], entre outras decisões proferidas reconhecendo direitos aos acusados em processo penal ou em defesa do direito de privacidade.
3.3 Tribunal Constitucional Federal Alemão
3.3.1 Escolha de seus membros
O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha é suprapartidário, conforme entende Nelson Nery Junior, pois:
[...] é órgão constitucional de todos os Poderes, situando-se no organograma do Estado ao lado do Executivo, Legislativo e Judiciário, não sendo, portanto, órgão do Poder Judiciário e nem situando acima dos Poderes Executivo e Legislativo. É formado por pessoas indicadas pelos Três Poderes, com mandato certo e transitório, vedada a contínua ou posterior recondução.[22]
O Tribunal Constitucional é previsto na Lei Fundamental alemã e estruturado por lei ordinária, tendo 16 membros escolhidos através de eleições, estes juízes são divididos em dois Senados ou Câmaras não hierarquizados (com oito juízes cada um), sendo necessariamente seis vagas destinadas a juízes federais advindos dos Tribunais Superiores e as demais vagas de livre escolha pelo Parlamento e Conselho Federal[23].
A eleição dos juízes constitucionais deverá ser realizada metade pelo Bundestag (Parlamento Federal) e a outra metade pelo Bundesrat (Conselho Federal), sendo a escolha por estas casas realizada da seguinte forma:
[...]exigindo-se maioria de dois terços, o que acaba por obrigar os partidos políticos a um consenso, de forma que a escolha reflita a representatividade parlamentar.[24]
3.3.2 Requisitos capacitários para a escolha de juízes
Quanto aos requisitos capacitários, a Lei Fundamental deixou a matéria para ser regulada através de lei ordinária, e esta por sua vez, determina que os juízes do Tribunal Federal devem possuir os direitos políticos exigíveis para o ingresso no Parlamento Federal, além dos requisitos exigidos para o exercício da judicatura, conforme salienta Alexandre de Moraes[25].
3.3.3 Duração do exercício do cargo e garantias
Não há de se falar em vitaliciedade, pois se adota o sistema de mandatos fixos com duração de 12 (doze) anos, sendo vedada a recondução, este critério é considerado uma garantia de salvaguarda e independência para a instituição[26], desse modo também há incompatibilidades com outro cargo ou função para os juízes do Tribunal, salvo no caso de magistério.
A idade mínima para os juízes é de 40 (quarenta) anos e somente poderão exercer o mandato até os 68 (sessenta e oito) anos, independentemente do término do mandato.
E ainda acresce Peter Häberle ao comentar o critério de composição e exercício do cargo que: “uma vez eleitos, na história do Tribunal Constitucional Federal, até agora, todos os juízes se têm mostrado incrivelmente independentes frente a seus partidos patrocinadores”[27].
3.3.4 Competências e forma de controle de constitucionalidade
Quanto à competência deste Tribunal e à atuação protetiva, vale salientar as lições de Hans Rupp:
Na garantia da supremacia das normas constitucionais e na proteção e efetividade dos direitos fundamentais residem as competências mais importantes da jurisdição constitucional, exercidas na Alemanha pelo Tribunal Constitucional Federal por meio, tanto do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, quanto da proteção individual, mediante recurso constitucional[...][28]
O Tribunal Constitucional alemão tem em sua competência o monopólio para o controle de constitucionalidade, tanto no modo difuso quanto no concentrado, cita Alexandre de Moraes em relação ao modo difuso que:
Estabelece o art. 100 da Lei Fundamental alemã que, quando um tribunal considerar inconstitucional uma lei, de cuja validade dependa a decisão, terá de suspender o processo e submeter a questão à decisão do tribunal estadual competente em assuntos constitucionais, quando se tratar de violação da Constituição de um Estado, ou à do Tribunal Constitucional Federal, quando se tratar da violação da Lei Fundamental.[29]
Depreende-se, portanto, que qualquer juiz poderá verificar a possível existência de uma inconstitucionalidade, porém, caberá sempre ao Tribunal Constitucional a decisão acerca da incompatibilidade ou não da lei à Constituição.
A provocação direta de inconstitucionalidade, isto é, a evocação do controle abstrato, é limitada ao Governo Federal, aos Governadores Estaduais e através da manifestação de um terço dos membros do Parlamento Federal[30].
Quanto à competência acresce Gilmar Ferreira Mendes: “O controle abstrato de normas contribui, ademais, para a solução de conflitos entre a União e os estados, conflitos estes que, as mais das vezes, decorrem da edição ou da aplicação da lei.”[31]
Visando permitir o acesso à justiça e a proteção de direitos fundamentais, não há exigência de que os casos de particulares sejam patrocinados por advogados, além de não haver custas processuais para a propositura de ações de competência do Tribunal Constitucional.
No direito alemão o cidadão também possui para a defesa de seus direitos fundamentais um instrumento de ação denominado recurso constitucional ou de amparo, assemelhado ao recurso extraordinário brasileiro, em decorrência da auto-aplicabilidade dos direitos fundamentais previstos na Lei Fundamental alemã e da confiança no Tribunal como garante da efetividade destes direitos.[32]
Vale aqui concluir que o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha cumpre o relevante papel de guarda constitucional, seja através do controle de constitucionalidade, seja pelas competências recursais de tutela de direitos fundamentais, solucionando também os conflitos que afetam à ordem federativa, gozando de considerável prestígio na comunidade jurídica por suas decisões e também por suas orientações, que chega a transpassar a sua competência, como assevera Gilmar Ferreira Mendes que o Tribunal é instado a se posicionar já no momento da feitura das leis.[33]