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Preservação da imagem e identidade da criança e do adolescente infrator como direito fundamental

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4 CONSIDERAÇÕES SOBRE A CRIANÇA E O ADOLESCENTE

Antes de surgir, não só no Brasil, mas no mundo, legislações preocupadas especificamente com a criança, não se reconhecia sequer a importância de sua proteção. Até então, crianças e adolescentes eram vistos como “propriedade” de seus pais, que eram responsáveis por seu desenvolvimento sem interferência por parte do Estado.

Os horrores da Primeira e Segunda Guerra Mundial trouxeram consequências devastadoras para as crianças, como seu abandono após a morte dos pais. Mas os movimentos sociais no final do século XIX e início do século XX, objetivando melhorias nas condições de trabalho, redução das horas trabalhadas e da idade mínima para o trabalho, foram fatores marcantes para que o mundo voltasse os olhos para as crianças[27].

A partir de então, após convenções e lutas pelos direitos das crianças, a Assembléia Geral da ONU, no ano de 1959, aprovou a Declaração dos Direitos das Crianças, onde pela primeira vez um documento fez com que as crianças e adolescentes passassem a ser vistos como sujeitos de direitos, deixando para trás ideia de “bem”, “objeto” ou “propriedade”.

Diversos documentos internacionais passaram a estabelecer a forma de tratamento a ser dispensado aos menores de 18 (dezoito) anos. Tais documentos serviram de base para os principais dispositivos brasileiros que hoje regulam tal matéria. O Pacto de San José da Costa Rica[28], em 1969, estabeleceu em seu artigo 19 “Art. 19. Toda criança tem o direito de proteção que sua condição de menor requerer, por parte da família, da sociedade e do Estado”.

Fundamentado neste artigo, tornou-se no Brasil dever constitucional da família, da sociedade e do Estado, assegurar os direitos da criança e do adolescente, tendo o artigo 227 da Constituição Federal proclamado a chamada doutrina da proteção integral, fixando as questões ligadas àqueles como prioridade absoluta.

Para Smanio[29], “Cf. no ordenamento jurídico ordinário a aplicação da doutrina da proteção integral, como sendo aquela que abrange todas as necessidades do ser humano para o pleno desenvolvimento de sua personalidade”. Dessa forma, explica Moraes[30] que:

É dever constitucional da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, a dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Então, em 13 de julho de 1990 foi promulgada a Lei nº 8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que tomou como princípio a referida doutrina da proteção integral, nascida no IX Congresso Panamericano Del Niño, realizado em Caracas, no ano de 1948, e no X Congresso Panamericano Del Niño, no ano de 1955, tendo ainda raízes na Convenção sobre o Direito da Criança, aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 1989, e pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1990.

Criado com o intuito de regular mais especificamente o tratamento social e legal que deve ser oferecido às crianças e adolescentes, o Estatuto confere absoluta prioridade a estes, estabelecendo direitos fundamentais e assegurando oportunidades para se desenvolver física, mental, moral, espiritual e socialmente.

Mas é preciso entender a quem nos dirigimos quando fazemos referência aos termos “criança” e “adolescente”. Vigente desde 1990, a Convenção sobre direitos da criança, adotada pela ONU em 1989, define a criança como “todo ser humano com menos de 18 anos de idade, a não ser que pela legislação aplicável, a maioridade seja atingida mais cedo”.

O objetivo do Estatuto da Criança e do Adolescente é proteger os menores de 18 (dezoito) anos. Dentro do conceito “menor”, a referida Lei, em seu artigo 2º, distingue a situação da criança e do adolescente, sendo estes com idade até 12 (doze) anos incompletos, e aqueles, com idade entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos. A Lei aplica-se ainda, excepcionalmente e nos casos previsto em lei, aos jovens com idade entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos.

Para os autores Del-Campo e Oliveira[31]:

Baseado na psicologia evolutiva e adotando o critério cronológico absoluto, o art. 2º estabelece a diferença técnica entre criança, assim definida como a pessoa de até 12 (doze) anos, incompletos, e adolescente aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade, evitando o uso do termo menor, que se referia à doutrina da situação irregular. À pessoa com idade entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos denominados, genericamente e por enquanto, de jovem-adulto.

Podemos perceber que o Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe classificações diferentes para a criança (menor de 12 anos) e o adolescente (aquele com idade entre 12 e 18 anos). Distinguir crianças de adolescentes tem relação principalmente no que diz respeito à prática do ato infracional. Entende, Cury[32], do Instituto Interamericano del Niño:

A distinção entre “criança” e “adolescente”, como etapas distintas da vida humana, tem importância no Estado. Em geral, ambos gozam dos mesmos direitos fundamentais, reconhecendo-se sua condição especial de pessoas em desenvolvimento, o que pode ser percebido principalmente no decorrer do Livro I.

Hoje, a partir de estudos psicológicos, sociais, genéticos e biológicos, fica clara a importância da existência do Estatuto para as crianças e adolescentes, uma vez que se encontram em uma fase decisiva na construção de personalidade e caráter. Para Samuel Pfromm Netto apud Cury[33], da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de Campinas:

O que hoje sabemos sobre os processos básicos de natureza psicológica nos primeiros anos de vida humana, sobre fatores que contribuem para retardar ou causar danos ao desenvolvimento, sobre riscos, distúrbios, anomalias e dificuldades uma infância infeliz e prenunciam conflitos e problemas sérios na futura pessoa adulta, é mais do que suficiente para justificar a compreensão do caráter fundamental dos chamados “anos formativos” que, em média, correspondem aos dois primeiros decênios da vida.

Observa-se, então, a fragilidade da criança e do adolescente, e a forma como os fatores externos, como, por exemplo, a exposição a ambientes violentos, a lares desestruturados ou ao abandono do Estado, pode influenciar em seu desenvolvimento e em sua imagem. Suas capacidades física, cognitiva, emocional e social, que ainda não estão desenvolvidas completamente, os tornam vulneráveis aos infortúnios causados pela sociedade, merecendo, portanto, especial tratamento legal.

Nosso ordenamento jurídico, por perceber a necessidade desse tratamento legal diferenciado, considerou que a interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser feita considerando sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, conforme Artigo 6º do ECA. Cabe a família, a sociedade e ao Estado reconhecer e assegurar que os infantes disponham dos mesmos direitos que têm os adultos, observando a fase da vida em que se encontram.

Assim, busca-se sempre garantir a proteção da criança e do adolescente, sendo que seus interesses deverão prevalecer sobre outros bens ou interesses juridicamente tutelados. A intensão do legislador, portanto, é buscar todas as formas possíveis atender as necessidades das crianças e adolescentes, conferindo-lhes prioridade absoluta.


5 O ATO INFRACIONAL

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera como o ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal, conforme artigo 103 desta Lei. Consiste no desrespeito às leis, à ordem pública, ao patrimônio, ou mesmo aos direitos de outrem.

Não existe diferença conceitual entre crime e ato infracional, uma vez que ambas são condutas ilícitas. A real distinção se encontra no fato de que o menor de 18 (dezoito) anos de idade é considerado inimputável. A inimputabilidade penal faz com que não se aplique pena, mas medidas de proteção às crianças e medidas socioeducativas aos adolescentes.

A garantia de inimputabilidade aos menores é assegurada tanto na Constituição Federal[34] quanto no próprio Código Penal[35]. Essa garantia é tida como essencial à dignidade da criança e do adolescente, e representa o direito de ser submetido a um juiz especial – o Juiz da Infância e Juventude, bem como a uma legislação especial.

Art. 228 CF/88 - São penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial.

Art. 27 CP – Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.

A exposição de motivos do Código Penal[36] nº 23 ressalta que o infante é um “ser ainda incompleto, é naturalmente antissocial na medida em que não é socializado ou instruído”. Por este motivo, o legislador entendeu por bem conferir tratamento diferenciado as crianças e adolescentes envolvidos na prática de ato infracional, com base em nada menos que sua condição peculiar de desenvolvimento.

Restou ao Estatuto da Criança e do Adolescente[37] tratar da forma como as crianças e adolescentes serão responsabilizados pelos atos ilícitos que possam cometer. A legislação especial a qual se referem os referidos artigos, portanto, é o já citado Estatuto:

Art. 103 ECA – Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.

Art. 104 ECA – São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei.

Parágrafo único – Para os efeitos dessa Lei, deve ser considerada a idade do adolescente à data do fato.

O ato infracional possui a mesma estrutura do crime ou contravenção, ou seja, para que seja configurado, é preciso que haja uma conduta dolosa ou culposa praticada pela criança ou adolescente, tipicidade e nexo de causalidade. Importante observar que a tipicidade do ato infracional será delegada, conforme ensinam os doutrinadores Rossato, Lépore e Cunha[38], “tomando-se ‘emprestada’ a legislação ordinária, a definição das condutas ilícitas”.

Ainda é necessário que a criança e o adolescente respondam tão somente na medida de sua culpabilidade. Isso porque, de acordo com Sposato[39], “uma vez que possuem capacidade valorativa e liberdade da vontade para aderir ao ilícito ou não, e com a possibilidade de terem diferentes graus de participação”.

Cabe então diferenciar o procedimento a ser realizado quando uma criança pratica um ato infracional, e quando um adolescente faz o mesmo. A criança, ao praticar o ato, fica sujeita a medidas específicas, conforme Artigo 105 do ECA[40] que reza “Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101”.

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As crianças, apesar de praticarem atos infracionais, não passam por um processo, como ocorre com os adolescentes. O procedimento é diferenciado e se inicia com a apreensão pela Polícia, que a conduz para o Conselho Tutelar ou autoridade judiciária, que determina as medidas a serem aplicadas, que estão previstas no Artigo 101 do ECA. Caso a criança utilize armas ao praticar o ato infracional, ou em se tratando de infrações contra o patrimônio, os objetos serão apreendidos e remetidos à Justiça da Infância e da Juventude.

Importante observar que a competência para colher provas e investigar os fatos não é da autoridade policial, e sim do Conselho Tutelar, tendo a autoridade judiciária competência subsidiária, por força do Artigo 262 do ECA, como ensina Liberati[41]. Desta maneira, a criança não deve ser conduzida à delegacia de polícia, por mais hediondo que seja o ato infracional cometido.

Já o adolescente que pratica ato infracional fica sujeito a um devido processo legal, estando presentes a ampla defesa e o contraditório, o que é garantido tanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente quanto pela Constituição Federal de 1988. Ensina Bastos apud Liberati[42], “o direito ao devido processo legal é mais uma garantia do que propriamente um direito. Por ele visa-se a proteger a pessoa contra a ação arbitrária do Estado”.

O adolescente somente pode ser privado de sua liberdade por apreensão em flagrante ou por mandado emanado de autoridade judiciária competente, conforme Artigo 106 do ECA. Ressalta-se que o termo correto é “apreensão”, e não “prisão”. Cury[43] explica que:

[...] Não se refere o artigo em comento a ‘preso’ em flagrante, uma vez que não existe voz de prisão, sendo apenas o adolescente conduzido à delegacia, sem nota de culpa e lavratura do auto (salvo no caso do art. 173), para os fins pertinentes e oportuno encaminhamento ao juiz competente. Se não há prisão em flagrante, o mesmo se dá com a prisão preventiva.

O Artigo 106 do ECA nada mais faz do que reafirmar um direito já definido pelo Artigo 5º, LIV da Constituição Federal, sendo a liberdade de qualquer indivíduo parte da essência de qualquer regime democrático. Além disso, qualquer apreensão de adolescente deve ser imediatamente comunicada ao juiz da infância e juventude e à família daquele, por força do Artigo 107 do ECA.

São asseguradas ao adolescente autor de ato infracional todas as garantias constitucionais do devido processo legal, tais como a presunção de inocência, ampla defesa, contraditório, presunção de inocência e defesa técnica. Somente após a sentença é que o juiz decide se o adolescente receberá ou não uma medida socioeducativa, previstas em rol taxativo do artigo 112 do ECA[44].

Vejamos:

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I - advertência;

II - obrigação de reparar o dano;

III - prestação de serviços à comunidade;

IV - liberdade assistida;

V - inserção em regime de semi-liberdade;

VI - internação em estabelecimento educacional;

VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

§ 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração.

§ 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado.

§ 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.

Tais medidas socioeducativas são, nas palavras de Rossato, Lépore e Cunha[45], medidas jurídicas de caráter sancionador e ao mesmo tempo pedagógico. Seu objetivo é inibir a reincidência, evitar que aquele adolescente se torne, no futuro, habituado a prática de crimes. O Prof. José Barroso Filho[46] que afirma:

Creio que essa exaustiva explanação vem melhor demonstrar o valor perseguido pelo aplicador do Direito da Infância e da Juventude, qual seja a reeducação e a ressocialização do adolescente infrator. Repise-se, procura-se sempre, que a sociedade ganhe um cidadão e não um marginal, para tanto faz-se necessária a correta escolha da medida sócio-educativa, nem branda demais, pois inócua, nem severa ao extremo, sob o risco de conduzir à morte civil do agente, apenas a adequada às peculiaridades de cada caso.

A partir do entendimento de que é preciso não só punir impositivamente, mas também recuperar, é que surge a preocupação do legislador em evitar que a criança ou adolescente fiquem expostos e estigmatizados. Neste sentido, não há duvida de que os princípios arrolados no Artigo 113 do ECA também se aplicam em casos de prática de ato infracional, entre eles o princípio da privacidade, do qual decorre o direito ao esquecimento, cabendo ao Estado preservar a imagem do infrator.

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Sobre a autora
Fernanda dos S. Oliveira Sousa

Advogada Pós-graduanda em Direito Civil e Empresarial pela Faculdade Damásio de Jesus. Bacharela em Direito pela Faculdade de Ensino Superior da Amazônia Reunida.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Fernanda S. Oliveira. Preservação da imagem e identidade da criança e do adolescente infrator como direito fundamental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4356, 5 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32974. Acesso em: 18 abr. 2024.

Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso - TCC apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ensino Superior da Amazônia Reunida, como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharela em Direito.

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