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Aposentadoria por invalidez e abuso de direito: do desvirtuamento de seus objetivos sociais

09/02/2015 às 08:47
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Pretende-se demonstrar que a concessão de aposentadoria por invalidez por mero atendimento dos seus requisitos legais pode acobertar o desvirtuamento dos seus fins sociais, gerando fraudes e desequilíbrio financeiro ao sistema previdenciário.

INTRODUÇÃO

Pretende-se demonstrar neste artigo que para a concessão de um determinado benefício previdenciário não basta o atendimento dos seus requisitos legais. É necessário ter em mente os princípios e fundamentos do Direito Previdenciário, e, sobretudo, perquirir-se a real intenção do legislador ao criar determinado benefício, para que não haja desequilíbrio financeiro no sistema previdenciário, nem sejam geradas injustiças aos demais segurados.         

O que se tem visto atualmente em processos judiciais é a concessão irregular de um sem número de aposentadorias por invalidez, concessões estas pautadas em uma análise superficial dos seus requisitos legais, e que, por isso, acabam contrariando seus fins sociais.        

Neste contexto, a assimilação dos elementos constitutivos da teoria do abuso de direito pode auxiliar à descoberta de pretensões infundadas, que, mesmo cobertas por uma aparente legalidade, contrariam princípios e valores jurídicos, provocando danos ao sistema previdenciário e, por conseguinte, à sociedade.       


REQUISITOS DA APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. BREVES APONTAMENTOS

Antes de se aprofundar a discussão, é importante, ainda que sucintamente, discorrer acerca dos requisitos legais para a concessão da aposentadoria por invalidez.          

A Lei nº 8.213/91 – Lei de Benefícios da Previdência Social – exige para a concessão da aposentadoria por invalidez, além da qualidade de segurado da Previdência, e do implemento da carência (regra geral, doze contribuições mensais), a incapacidade total e permanente para o labor. Exige-se, ademais, que a incapacidade não seja preexistente à filiação à Previdência Social.         

O que vem ocorrendo repetidamente nos processos judiciais são pretensões nas quais o autor, diante do avançar da idade, sem nunca ter contribuído para a Previdência Social (ou após longo tempo sem contribuir), retoma suas contribuições com o único objetivo de se aposentar por invalidez, já que não reúne os requisitos para aposentar-se por idade ou por tempo de contribuição.         

Poder-se-ia argumentar no sentido da preexistência da incapacidade. De fato, o requerente começa a contribuir, ou mesmo retoma suas contribuições, após o surgimento da incapacidade. Ocorre que, na maioria das vezes, a prova da preexistência da incapacidade é de difícil produção. Os peritos judiciais não conseguem elementos para fixar a data de início da incapacidade, pois, não raro, doenças ligadas à idade avançada tem natureza insidiosa.          

Nestas demandas, uma análise superficial do caso, o que não é incomum devido, entre outros fatores, ao volume absurdo de causas previdenciárias, levaria à constatação de que estão presentes todos os requisitos para a concessão do benefício – qualidade de segurado, carência e incapacidade total e permanente para o labor em virtude do avançar da idade.           

Ocorre que, nestes casos, há concessão irregular da aposentadoria por invalidez, muito embora, aparentemente, tenha o segurado reunido todos os seus requisitos. A concessão torna-se irregular por afrontar o real objetivo da norma previdenciária que previu o benefício, e, por conseguinte, fere princípios previdenciários que visam garantir o equilíbrio financeiro do sistema securitário.           

Necessário se faz, portanto, buscar fundamentos jurídicos outros que impeçam a concessão irregular de um benefício aparentemente legal.  A incapacidade para o trabalho, da forma como foi pensada pelo legislador para o sistema previdenciário, albergaria a incapacidade resultante do avançar da idade? Ou apenas a incapacidade resultante de infortúnios, tais como doenças ou acidentes, comporia o risco social tutelado pela aposentadoria por invalidez? 


DA NECESSÁRIA IDENTIFICAÇÃO DO RISCO SOCIAL TUTELADO

Neste momento, a ideia de risco social ganha relevância.           

Entre os princípios constitucionais informadores do Direito Previdenciário está o princípio da seletividade, segundo o qual, deve o legislador eleger as situações de risco e os benefícios mais essenciais à coletividade, definindo os requisitos legais para sua concessão.          

Na verdade, o princípio da seletividade se opõe ao princípio da universalidade da cobertura, tendo em conta que não há recursos para financiar toda e qualquer situação de risco. Aliás, no Direito Previdenciário, assim como em qualquer ramo do Direito, há de haver interpretação conjunta de seus princípios.          

A Constituição Federal de 1988 enumera alguns riscos a serem cobertos pelo sistema securitário, mencionando, porém, a necessidade de ser observar critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial:

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

II - proteção à maternidade, especialmente à gestante; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

Seguindo a determinação constitucional, o legislador ordinário previu na Lei de Benefícios (Lei nº 8.213/91):

Art. 42. A aposentadoria por invalidez, uma vez cumprida, quando for o caso, a carência exigida, será devida ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença, for considerado incapaz e insusceptível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe garanta a subsistência, e ser-lhe-á paga enquanto permanecer nesta condição.

§ 1º A concessão de aposentadoria por invalidez dependerá da verificação da condição de incapacidade mediante exame médico-pericial a cargo da Previdência Social, podendo o segurado, às suas expensas, fazer-se acompanhar de médico de sua confiança.

§ 2º A doença ou lesão de que o segurado já era portador ao filiar-se ao Regime Geral de Previdência Social não lhe conferirá direito à aposentadoria por invalidez, salvo quando a incapacidade sobrevier por motivo de progressão ou agravamento dessa doença ou lesão.

Importante mencionar ainda a previsão da aposentadoria por idade na Lei de Benefícios:

Art. 48. A aposentadoria por idade será devida ao segurado que, cumprida a carência exigida nesta Lei, completar 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta), se mulher. (Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)

§ 1o Os limites fixados no caput são reduzidos para sessenta e cinqüenta e cinco anos no caso de trabalhadores rurais, respectivamente homens e mulheres, referidos na alínea a do inciso I, na alínea g do inciso V e nos incisos VI e VII do art. 11. (Redação Dada pela Lei nº 9.876, de 26.11.99)

§ 2o  Para os efeitos do disposto no § 1o deste artigo, o trabalhador rural deve comprovar o efetivo exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício, por tempo igual ao número de meses de contribuição correspondente à carência do benefício pretendido, computado o período  a que se referem os incisos III a VIII do § 9o do art. 11 desta Lei. (Redação dada pela Lei nº 11,718, de 2008)

§ 3o  Os trabalhadores rurais de que trata o § 1o deste artigo que não atendam ao disposto no § 2o deste artigo, mas que satisfaçam essa condição, se forem considerados períodos de contribuição sob outras categorias do segurado, farão jus ao benefício ao completarem 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta) anos, se mulher. (Incluído pela Lei nº 11,718, de 2008)

§ 4o  Para efeito do § 3o deste artigo, o cálculo da renda mensal do benefício será apurado de acordo com o disposto  no inciso II do caput do art. 29 desta Lei, considerando-se como salário-de-contribuição mensal do período como segurado especial o limite mínimo de salário-de-contribuição da Previdência Social. (Incluído pela Lei nº 11,718, de 2008)

Ora, nesta toada, resta evidente que o constituinte separou a situação de risco invalidez da situação de risco idade avançada, fazendo com que o legislador infraconstitucional criasse um benefício para cada evento.           

Importante ressaltar o constante do §1º do art.42 da Lei de Benefícios, que exige a verificação da incapacidade através de exame médico-pericial. Eis que imprescindível a existência de incapacidade decorrente de doença ou acidente para a concessão da aposentadoria por invalidez.            

Diferentemente, o benefício de aposentadoria por idade exige, além de carência, o implemento de determinada idade para sua concessão.            

Desta feita, deve-se conceder aposentadoria por idade aos segurados de idade avançada – desde que preencha os demais requisitos, por óbvio – e conceder aposentadoria por invalidez àqueles acometidos de doenças que os tornem incapazes para o trabalho.           

Conclui-se, por conseguinte, que o objetivo do legislador ao criar a aposentadoria por invalidez foi resguardar o risco social invalidez decorrente de doenças e acidentes, e não resguardar o risco social idade avançada, para o qual criou benefício específico, qual seja, a aposentadoria por idade.           

É importante sempre destacar que cada benefício criado pelo legislador resguarda o segurado de um risco social específico. O desvirtuamento na concessão dos benefícios previdenciários, gerada por uma interpretação literal da legislação, ocasiona um completo desequilíbrio financeiro e atuarial do sistema securitário.


DO ABUSO DE DIREITO

Há abuso de direito quando o agente exerce direito objetivando fim diverso para o qual foi criado, causando, por conseguinte, prejuízo a outrem, ou mesmo, obtendo vantagem exagerada.            

A atuação do agente ao exercer determinado direito tem aparência de legalidade, a não ser pela dissociação entre os objetivos que o move e aqueles pretendidos pelo legislador. Aqui, questões éticas ganham relevo conjuntamente com o interesse coletivo, devendo o julgador ter a percepção apurada, para que não haja a chancela judicial de atos lesivos aos princípios e valores jurídicos.             

A conceituação legal do abuso de direito pode ser extraída do art. 187 do Código Civil, não por acaso, após a conceituação de ato ilícito:    

“Art.186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.Art.187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”. 

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Ao tratar da teoria do abuso de direito, elucida SILVIO RODRIGUES (Silvio Rodrigues, Direito Civil – Parte Geral, 28. ed., São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 314.):

“Acredito que a teoria atingiu seu pleno desenvolvimento com a concepção de Josserand, segundo a qual há abuso de direito quando ele não é exercido de acordo com a finalidade social para a qual foi conferido, pois, como diz este jurista, os direitos são conferidos aos homens para serem usados de uma forma que se acomode ao interesse coletivo, obedecendo à sua finalidade, segundo o espírito da instituição”.          

Não é demais relembrar a diretriz traçada pela Lei de Introdução ao Código Civil:

“Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

Ou seja, ao ser exercido determinado direito em descompasso com suas finalidades sociais e econômicas, ou ao ser exercido de forma contrária à boa-fé ou aos bons costumes, o sujeito incorrerá em abuso de direito, não sendo apto à produção de efeitos.            

Pouco importa aqui o elemento volitivo do sujeito (dolo ou culpa), pois adotou-se o critério finalístico na caracterização do abuso de direito. Neste sentido, o Enunciado 37 da I Jornada de Direito Civil da Justiça Federal:

“Art. 187: A responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico.”


DA PROBLEMÁTICA ENVOLVENDO A APOSENTADORIA POR INVALIDEZ

Nos processos judiciais, não é raro deparar-se com a seguinte situação: o autor, já com a idade avançada, recolhe apenas número de contribuições suficiente a satisfazer a carência, e, ato contínuo, pleiteia a concessão da aposentadoria por invalidez; por ocasião da perícia médica judicial, o perito não consegue precisar o início da incapacidade; sem elementos para comprovar que a incapacidade do autor é preexistente à filiação à Previdência Social, o benefício é deferido.          

Assim, passa a receber uma renda mensal muito superior à renda daqueles segurados que por toda vida contribuíram para Previdência. A forma de cálculo da renda mensal da aposentadoria por invalidez é mais favorável do que a de outros benefícios.          

Em situações como a descrita, conforme aqui se sustenta, não basta o atendimento dos requisitos legais para a concessão da aposentadoria por invalidez. Torna-se imprescindível verificar, no caso concreto, se o objetivo da norma previdenciária está sendo alcançado, se os princípios do Direito Previdenciário não estão sendo violados, e se o autor não está atuando em verdadeiro abuso de direito.         

Não se pode negar que o avançar da idade traz limitações físicas e mentais para o trabalho. Entretanto, deve se ter em mente que para aquela situação há a previsão da aposentadoria por idade. Conceder aposentadoria por invalidez aos segurados de idade avançada que, em verdadeiro abuso de direito, contribuem para o sistema previdenciário apenas para satisfazer a carência, é desvirtuar a previsão daquele benefício, resultando no desequilíbrio financeiro da Previdência Social. Ademais, faz-se injustiça com os demais segurados que contribuem durante toda a vida profissional almejando uma aposentadoria digna no futuro.


CONCLUSÃO

Ante o exposto, fica evidente que várias concessões de aposentadorias por invalidez, aparentemente legais, guardam, em seu interior, verdadeiras fraudes ao sistema securitário social. Há desvirtuamento na aplicação da norma previdenciária, quando, a despeito de uma aparente legalidade, não se observam princípios constitucionais e não se repreende a atuação em verdadeiro abuso de direito. O resultado disso: desequilíbrio financeiro e atuarial da Previdência Social, além de injustiça com os demais integrantes do sistema e com toda a sociedade que participa do seu financiamento. 

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Sobre o autor
David Melquiades da Fonseca

Procurador Federal. Pós-graduado em Direito Previdenciário e Direito do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONSECA, David Melquiades. Aposentadoria por invalidez e abuso de direito: do desvirtuamento de seus objetivos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4240, 9 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33322. Acesso em: 22 dez. 2024.

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