Análise contextualizada dos obstáculos opostos à efetivação judicial do direito à saúde

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28/11/2014 às 16:35
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Os obstáculos opostos à concretização do Direito à Saúde pelo Poder Judiciário, apontados os pontos positivos e negativos do ativismo judicial.

INTRODUÇÃO

O direito à saúde, inserido no texto da Constitucional como direito social a ser garantido pelo Poder Público de forma ampla e igualitária é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, sem o qual não há como se garantir o direito ao mínimo existencial.

Assim, o art. 6º combinado com o art. 196, ambos da Constituição da República, alçou o Direito à Saúde a um dos pilares da seguridade social ao garanti-lo a todos que dele necessitam, tratando-se um direito subjetivo de aplicação direta e imediata, independente de contraprestação, a ser efetivado por meio de políticas públicas.

Ocorre que a Administração Pública, por diversas razões, não tem logrado êxito em promover devidamente a saúde pública, o que tem gerado a procura demasiada ao Poder Judiciário a fim de que seja efetivado o direito à saúde posto em juízo. 

Sob tal enfoque, o presente artigo, a partir de uma base teórica, tem por objeto analisar as limitações impostas a implementação do Direito à Saúde em juízo, fixando um ponto de equilíbrio entre os posicionamentos que se divergem quanto ao avanço da concretização em Juízo do Direito à Saúde.

De fato, como se pode constatar nas lides em que se pleiteia o acesso pleno e imediato à Saúde, o entendimento predominante é no sentido de se assegurar o direito à saúde àqueles que dele necessitem. Neste diapasão, ressalta-se o papel de suprema importância do Poder Judiciário no avanço do processo de concretização do referido Direito Social.

Contudo, questões como o equilíbrio dos poderes se manifestam no dilema de aferir-se até que ponto é lícito ao Poder Judiciário interferir em ações do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Também, vários aspectos processuais entram em voga, especialmente no que tange a legitimidade para a propositura das demandas e, especialmente, a eficácia concreta da tutela judicial por fim prestada.

Diante de tal problemática, que é atual e demanda reflexão, o presente artigo visa analisar ainda os obstáculos opostos a efetivação judicial do direito á saúde, considerando os pontos positivos e negativos do ativismo judicial, fixando um ponto de equilíbrio entre os posicionamentos divergentes.


 O CONFLITO EXISTENTE ENTRE A PROTEÇÃO LEGAL DADA AO DIREITO À SAÚDE E A REALIDADE SOCIAL BRASILEIRA                       

A assertiva segundo a qual o cidadão tem direito à saúde e o Estado um dever de prestá-la é inegável. Mas, o reconhecimento deste fato como premissa válida não significa ipso facto, sua materialização efetiva.

Regina Maria Macedo e Nery Ferrari assinalam:

No Brasil dos dias de hoje, é possível identificar a diferença entre o que LASSALE denomina a Constituição Real e a folha de papel em que se converte a Constituição Escrita, uma vez que preceitos constitucionais de grande importância para a coletividade encontram-se na incomoda situação de “letras mortas”, à espera de edição de leis ordinárias ou complementares, que lhes integrem o sentido e possibilitem sua observância, ou, ainda, quando dispositivos constitucionais, que não necessitam de legislação integrativa, às vezes não são cumpridos, o que decorre, por exemplo, de fatores econômicos e políticos[1].

O que chama a atenção dos operadores do direito é que a implantação das políticas sociais que concretizam os direitos desta natureza necessita de recursos que, na nossa realidade, são escassos.

Quem vive a realidade da maioria da população brasileira carente pode perceber quão distante está o sonho do constituinte da prática dos detentores do poder[2].

A sistematização da saúde segue normas de atendimento, que se fossem devidamente cumpridas pelo Estado, proporcionaria ao brasileiro notável sistema de atendimento. O princípio é bom, contudo, a prática é deplorável.

São notórias as deficiências estatais no cumprimento dos mandamentos constitucionais. Dentre elas, podemos citar a falta de leito nos hospitais públicos, a escassez de remédios gratuitos nos postos de saúde, a falta de serviço estruturado, a baixa remuneração dos profissionais da saúde e o baixo investimento no campo das pesquisas, seja de medicamentos, seja equipamental, seja de técnicas de tratamento[3].

Em que pese os respeitáveis esforços no exercício de um controle social efetivo sobre a gestão do Sistema através dos conselhos e conferências locais de saúde, os principais problemas do SUS têm as suas basilares causas na ausência de controle operacional e nos excessos por parte dos seus integrantes seja de fabricantes de remédios, farmácias, seja de médicos, laboratórios e hospitais. 

Ademais, o controle social frágil dos processos de atenção e gestão do SUS coaduna-se com a burocratização e verticalização do sistema público de saúde.

O desperdício público de recursos na saúde, por péssima organização e burocracia antiquada facilita a corrupção e os desvios de finalidades apontados como contribuintes para a carência generalizada de cidadania que se observa atualmente.

A precária interação das equipes e o despreparo para lidar com a dimensão subjetiva nas práticas de atenção também são apontadas como pontos negativos na gestão do SUS[4].

Os problemas são muitos e graves. A rede hospitalar pública está sucateada, os equipamentos em péssimo estado de conservação, os profissionais da saúde desvalorizados e as condições sanitárias do país não são boas, contribuindo, assim, para que doenças infecciosas e parasitárias vitimem milhares de brasileiros.

O Brasil, infelizmente, está passando por sérias dificuldades na saúde pública. Em tal conjectura, não surpreende o fato de ter havido um deslocamento do foco de tensão dos conflitos da área salutar para o âmbito do Poder Judiciário.

Luis Roberto Barroso ensina:

[...] A primeira grande causa da judicialização foi a redemocratização do país, que teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas ultimas décadas com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive no confronto com os outros poderes (...) Por outro lado, o ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses perante juízes e tribunais.(...) A segunda causa foi a constitucionalização abrangente que trouxe para a Constituição inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária (...) Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial [...][5]

No país onde há uma das maiores disparidades na distribuição de renda entre a população, a sociedade busca mecanismos, especialmente após a Constituição Federal de 1988, para que possa ser mitigada a distância entre a realidade social e o modelo social escolhido.

De tudo isso resultou uma explosão de litigiosidade à qual o Poder Judiciário dificilmente poderia dar resposta. Ressalte-se que tal explosão veio a agravar-se no final da década de 70, ou seja, num período em que a expansão econômica terminava e se iniciava uma recessão que se prolonga até hoje. Daí decorreu a redução progressiva dos recursos financeiros do Estado e a sua crescente incapacidade para dar cumprimento aos compromissos providenciais assumidos.

Neste contexto, a insuficiência da democracia na qual o cidadão é chamado periodicamente a exercer seus direitos, após a conscientização a respeito dos seus direitos, é substituída pelas possibilidades alternativas da democracia direta, próprias da garantia constitucional de acesso à Justiça, exercitável mediante as diversas ações constitucionais.

Os conflitos da vida político-social encontraram, portanto, no Poder Judiciário o refúgio de um ideal democrático desencantado.

Conforme ensina Pedro Rui da Fontoura Porto, a ampla justiça constitucional insinua-se, então, como instrumento de controle do poder político e econômico pelas instâncias sociais[6].


 OBSTÁCULOS OPOSTOS À EFETIVAÇÃO JUDICIAL DO DIREITO À SAÚDE

A notória omissão governamental concernente à prestação de serviço de saúde digno e humano face à hipertrofia do Welfare State (Estado Providência) decorre de obstáculos diversos tendentes a gerar uma grande disparidade entre o Direito à Saúde, constitucionalmente consagrado, e a realidade fática do Brasil.

Desta forma, a crise do Estado tenta ser justificada por várias maneiras no intuito de se afastar a implementação dos direitos Sociais pela Administração Pública, uma vez que assegurado o Direito à Saúde no ordenamento jurídico pátrio, as demandas da população, visando alcançar um determinado patamar deste direito, aumentaram significativamente.

Passamos, portanto, à análise de cada um dos empecilhos alegados como forma de afastar o Estado do seu dever de fornecer os meios para a plena satisfação do direito à saúde.        

1-Ausência de eficácia imediata das normas programáticas dispostas na Constituição Federal de 1988

Como se sabe, a positivação dos direitos sociais prestacionais no texto constitucional brasileiro foi efetivada através de normas programáticas. Nos dizeres de Ingo Wolfgang Sarlet:

Cuida-se de normas que apresentam a característica comum de uma (em maior ou menor grau) baixa densidade normativa, ou, se preferirmos, uma normatividade insuficiente para alcançarem plena eficácia, porquanto se trata de normas que estabelecem programas, finalidades e tarefas a serem implementadas pelo Estado, ou que contêm determinadas imposições de maior ou menor concretude dirigidas ao Legislador[7].

Desta forma, as normas programáticas explicitam comando - valores traduzidos em expectativas, vez que acompanhadas de conceitos indeterminados condicionados à ponderação do legislador infraconstitucional[8].

Tratando-se, deste modo, de preceitos constitucionais de eficácia limitada, conforme classificação de José Afonso da Silva[9], por não produzirem efeitos jurídicos de forma imediata, há que se indagar se o Direito à Saúde, consagrado por meio de normas abstratas, poderia ser vislumbrado como um direito subjetivo individual.

Surge, então, o questionamento: teria as pessoas direito de ação, isto é, direito de exigir do Estado, por meio do Poder Judiciário, a proteção e a garantia do direito à saúde?

Neste contexto, faz-se necessário registrar o conteúdo presente no art. 5º, § 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Elival da Silva Ramos sustenta que nem todos os direitos sociais consagrados na Constituição do Brasil gozam de completo amparo jurisdicional. Segundo o referido autor, os direitos sociais estruturados em normas de eficácia limitada e natureza programática, não consubstanciam de forma imediata, direitos subjetivos plena e diretamente exercitáveis perante o Estado-juiz, a despeito da prescrição do §1º, do artigo 5º, da Constituição Federal[10].

Em que pese o respeitável entendimento esposado acima, a ilação de que as normas programas por si só não possuem o condão para se exigir judicialmente o direito por elas asseguradas não merece prosperar.

Não resta dúvida que, diante da ponderação feita pelo legislador constituinte, as normas programas, mesmo sem nenhum ato concretizador, podem desencadear algum efeito jurídico. Em verdade, todas as normas consagradoras de direitos fundamentais são dotadas de eficácia e, em certa medida, diretamente aplicáveis ao nível da Constituição e independentemente de intermediação legislativa.

Isto porque a Constituição da República não pode ser transformada em ordenamento jurídico recheado de simbolismos já que as normas programáticas nela inseridas são dirigidas não só ao Legislativo como também ao Executivo e ao Judiciário.

Ademais, a existência de instrumentos judiciais de tutela de garantias fundamentais, tais como o mandado de segurança, cuja função é assegurar direito líquido e certo, e o mandado de injunção criado no intuito de se verem concretizados, dentre outros, os Direitos Sociais, é conseqüência senão da subjetividade contida nas normas constitucionais.

Mesmo que assim não fosse, não se deve olvidar que na interpretação da Constituição Federal deve se aplicar o Princípio da Máxima Efetividade segundo o qual à norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior efetividade possível, com vistas à realização concreta de sua função social.

Ainda, dentre as regras interpretativas da Magna Carta temos a regra da força normativa da Constituição segundo a qual dentre as interpretações possíveis deve ser adotada aquela que densificando suas normas tornem-nas mais eficazes e permanentes, proporcionando-lhes uma força otimizadora. A técnica hermenêutica – concretizadora, para Manuel Jorge e Silva Neto, deve estar voltada à consagração – entre as soluções possíveis encontradas para solver o problema normativo - daquele desfecho que mais efetive, melhor concretize a norma constitucional[11].

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De mais a mais, certo é que o legislador infraconstitucional não permaneceu inerte frente à sua função legislativa de dar concretude ao Direito à Saúde. Ao contrário, no caso do Direito à Saúde, regulamentou satisfatoriamente, por meio da Lei n.º 8.080/1990 e da Lei n.º 8.142/1990, o Sistema Único de Saúde pelo qual a promoção da saúde deve ser alcançada.

Dessa forma, levando-se em conta que, a partir do preceito contido no art. 5º, § 1º, da Constituição da República, toda norma constitucional possui um mínimo de eficácia, observa-se que a reduzida eficácia social do Direito à Saúde não se deve à carência de leis ordinárias as quais as normas programáticas chamam para si. O problema maior é a dificuldade estrutural na prestação de serviços, em face da ausência de profissionais da saúde, de hospitais, de tratamento especializado e de medicamentos pelo Poder Público.

O Supremo Tribunal Federal, com a função precípua de guarda da Constituição que lhe é inerente a partir do texto constitucional de 1988, chamado a se manifestar à cerca da impossibilidade de normas programáticas gerarem direitos subjetivos, assim se manifestou:

A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. Distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes – O reconhecimento judicial da validade de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (art. 5º, caput e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm ou possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF[12].

Com efeito, as normas constitucionais ditas programáticas são suficientes e vinculantes para impor aos Poderes Públicos uma conduta que não destoe da previsão normativa de forma a tornar o Direito à Saúde real e efetivo.

Ademais, sua finalidade não se limita a exortar a consciência dos administradores políticos brasileiros, servindo também de uma fonte teleológica da sociedade política, não se devendo esquecer em absoluto, que dentre os fundamentos do Estado brasileiro está incluído a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).

2-Insuficiência de Recursos Orçamentários e a Teoria da Reserva do Possível

Outra questão não menos tormentosa tem sido objeto de discussão quando analisada a possibilidade do Poder Judiciário determinar a prestação de um serviço sem levar em consideração a existência ou não de recursos orçamentários já que todas as despesas pelo Estado estão condicionadas à prévia dotação orçamentária.

Destarte, faz-se necessário tecer uma consideração a respeito do orçamento, peça esta não só de natureza contábil, mas de estrutura legal e de assento constitucional:

A ação planejada do Estado quer na manutenção de suas atividades, quer na execução de seus projetos, materializa-se através do orçamento público, que é o instrumento de que dispõe o Poder Público (em qualquer de suas esferas) para expressar, em determinado período, seu programa de atuação, discriminado a origem e o montante dos recursos a serem obtidos, bem como a natureza e o montante dos dispêndios a serem efetuados[13].

O orçamento, portanto, traça sua política para os diversos setores sociais, fixando as despesas, e, para custeá-las, prevê fontes de arrecadação. Tem-se, pois, que a função de traçar as políticas públicas é, precipuamente, do Poder Executivo, mediante aprovação do Poder Legislativo.

Todavia, a partir do momento em que se verifica que o orçamento do Estado não é capaz de atender de forma satisfatória as prestações prometidas constitucionalmente, desenvolveu-se a Teoria da Reserva do Possível.

Segundo Andréas J. Krell essa teoria, oriunda de uma decisão da Corte Constitucional Alemã, sustenta que os direitos sociais prestacionais estariam sob reserva das capacidades financeiras do Estado, se e na medida em que consistem em direitos a prestações financiadas pelos cofres públicos. Neste sentido, a disponibilidade desses recursos estaria localizada no campo discricionário das decisões políticas, através da composição dos orçamentos públicos[14].

Sobre a reserva do possível, leciona Ingo Wolgang Sarlet:

Trata-se da efetiva disponibilidade do objeto dos direitos sociais a prestações materiais, perquirindo-se se o destinatário da prestação da norma se encontra em condições de dispor da prestação reclamada (isto é, de prestar o que a norma lhe impõe seja prestado), para cumprir com a sua obrigação[15].

A partir deste raciocínio é que se levantou a assertiva de que o Poder Judiciário não poderia efetivar o direito social à saúde, eis que por se tratar de uma matéria de direito público seu alcance caberia apenas ao Legislativo e ao Executivo.

Com efeito, neste sentido a Constituição da República, ao cuidar do financiamento da Seguridade Social, dispôs em seu art. 195, §5º que nenhum benefício ou serviço da seguridade social e da previdência social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total, incorporando a lição de que para que se possa realizar e garantir serviços e benefícios é indispensável que haja meios para tanto, afim de que o equilíbrio financeiro e atuarial da previdência social e dos entes políticos seja preservado.

Do mesmo modo, o art. 196 da Constituição Federal deixa claro que o direito a saúde será assegurado por meio de políticas sociais e econômicas, e não através de decisões judiciais.

Insta ressaltar, porém, que não é ampla e total a liberdade do legislador para incluir no planejamento orçamentário o que entender melhor nem é irrestrita a liberdade do Administrador para realizar os gastos de acordo com a sua livre consciência.  A discricionariedade administrativa e legislativa não pode incorrer em desvio de finalidade devendo sempre vincular a previsão orçamentária aos objetivos traçados no texto constitucional.

Saliente-se, ainda, que a efetivação do Direito à Saúde não depende apenas da aplicação das normas constitucionais concernentes à organização econômica haja vista que as necessidades advindas da saúde são ilimitadas mesmo considerando-se as limitações financeiras e orçamentárias.

Não se deve olvidar, entretanto, que sendo os recursos públicos insuficientes para atender as necessidades sociais, impõe-se ao Estado a tomada de difíceis decisões. Os provimentos judiciais em matéria de medicamentos, recentemente, têm provocado a desorganização administrativa de forma que as decisões que atendem as necessidades imediatas do jurisdicionado, globalmente, impedem a otimização das possibilidades estatais no que tange a promoção da saúde pública.

Luiz Roberto Barroso elucida que o beneficio auferido pela população com a distribuição de medicamentos é significativamente menor que aquele que seria obtido caso os recursos fossem investidos em outras políticas públicas[16].

Com efeito, as tutelas requeridas judicialmente devem ser sempre concedidas com cautela e bom senso uma vez que medicamentos e tratamentos de alta complexidade pleiteados podem consumir significativa parcela do orçamento da saúde especialmente se considerarmos os pequenos municípios.

Além disso, o lobby das indústrias farmacêuticas tem gerado demandas em que drogas novas, que carecem de regulamentação e aprovação da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), são requeridas em caráter de urgência, sem a devida comprovação de que os remédios fornecidos gratuitamente pelo SUS não atendem a necessidade do postulante[17].

Saliente-se, ainda, que o Poder Público não pode fornecer todos os medicamentos lançados pela tecnologia do mercado sem a eficácia comprovada no tempo, sob pena de se estrangular o funcionamento do SUS. Tal assertiva se justifica uma vez que quanto mais novo o remédio, menor é previsibilidade de seus efeitos e, portanto, menos se sabe sobre seus efeitos colaterais.

Não se pode deixar de consignar a existência de diversos interesses em jogo, extrapolando a perspectiva estritamente prestacional do direito à saúde haja vista ter sido os medicamentos transformados em commodities, deixando em plano secundário o papel que pode desempenhar como elemento de prevenção ou recuperação da saúde[18].

Nessa linha de orientação veja-se o seguinte aresto do Superior Tribunal de Justiça no sentido da impossibilidade de se impor ao Poder Público o custeio de tratamentos ou terapias alternativas, ainda mais em fase de estudo ou pesquisa:

ADMINISTRATIVO – SERVIÇO DE SAÚDE – TRATAMENTO NO EXTERIOR –RETINOSE PIGMENTAR.1. Parecer técnico do Conselho Brasileiro de Oftalmologia desaconselha o tratamento da "retinose pigmentar" no Centro Internacional de Retinoses Pigmentária em Cuba, o que levou o Ministro da Saúde a baixar a Portaria 763, proibindo o financiamento do tratamento no exterior pelo SUS.2. Legalidade da proibição, pautada em critérios técnicos e científicos. 3. A Medicina social não pode desperdiçar recursos com tratamentos alternativos, sem constatação quanto ao sucesso nos resultados. 4. Mandado de segurança denegado. (STJ, Mandado de Segurança n.º8895/DF, 1ª Seção, Rel. Min, Eliana Calmon, j. em 22.10.2003, Fonte: DJ de 07.06.2004) [19].

Portanto, ponderando-se o rombo orçamentário que tais tutelas podem causar, um ponto de equilíbrio deve ser buscado quando o Poder Judiciário institui políticas casuísticas de saúde de modo a garantir o Direito Constitucional à Saúde somente a quem dele realmente necessite.

Outrossim, os medicamentos, posto que intrinsecamente ligados à manutenção da saúde da população, devem transcender a natureza civil para alcançarem a caracterização de coisa pública, enquanto produtos de primeira necessidade.

Verifica-se, desta feita, que, face às antinomias apresentadas ao intérprete, a ponderação dos bens jurídicos em conflitos, dentro de critérios de razoabilidade, é essencial na solução do litígio. Neste particular, faz-se necessário aos juízes desenvolver uma fundamentação suficiente para demonstrar o acerto do resultado que visam alcançar.

Em que pese o Princípio da Proporcionalidade, não ter sido acolhido expressamente pela Constituição da República, é possível asseverar seguramente que a proporcionalidade decorre da interpretação ampla e sistêmica dos direitos fundamentais previstos na Magna Carta de 1988.

Neste diapasão, deve-se perquirir o cabimento do sacrifício dos bens jurídicos da vida e da saúde, em prol da resposta da prerrogativa estatal orçamentária.

Tal análise passa pelo cumprimento dos três requisitos do Princípio da Proporcionalidade. A adequação do meio restritivo escolhido para levar a cabo o fim pretendido; a necessidade da medida restritiva, vale dizer, a imprescindibilidade do instrumento mais eficaz e menos gravoso ao cidadão; e a proporcionalidade em sentido estrito, que trata da avaliação da relação custo – benefício sopesando-se as desvantagens do meio restritivo escolhido e as vantagens do fim perquirido[20].

Finalmente, é intuitivo concluir, conforme leciona Fernando Facury Scaff, que a aplicação da reserva do possível só poderá ser invocada:

[...] Se houver comprovação de que os recursos arrecadados estão sendo disponibilizados de forma proporcional aos problemas encontrados, e de modo progressivo, a fim de que os impedimentos ao pleno exercício das capacidades sejam senados no menor tempo possível[21].

Desse modo, havendo disponibilidade fática e jurídica e sendo a pretensão razoavelmente exigível a alegação da reserva do possível não merece acolhida. 

Neste sentido, é o entendimento do Ministro Celso de Mello segundo o qual somente o justo motivo realmente auferível pode ser invocado pelo Estado com o objetivo de exonerar-se da obrigação de cumprir suas obrigações sociais, especialmente, de conferir o essencial Direito à Saúde, haja vista que a conduta governamental negativa, omissa, pode gerar enormes prejuízos a existência digna do ser humano[22].

Assim, devem ser ponderadas as consequências das diferentes soluções aplicáveis à lide, pois certo é que poderá, também, tratar-se de hipótese que não justifique a alteração orçamentária, por afigurar-se mais prejudicial à coletividade.

3.Impossibilidade do Juiz Imiscuir-se no Mérito Administrativo e a Proibição do Juiz Legislador

Contra a possibilidade de se deduzir em juízo os direitos sociais, argumenta-se que a atuação do juiz no sentido de efetivar os direitos sociais à falta de intervenção legislativa e executiva, invade a competência reservada ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo, na elaboração e execução das políticas públicas, violando o Princípio da Separação dos Poderes.

Preliminarmente, é necessária uma breve exposição acerca do Princípio da Separação do Poderes para que a sua flexibilização possa ser entendida.

Não se pretende, é mister esclarecer, uma abordagem profunda do tema, a qual se ocupa a Ciência Política na perquirição dos fenômenos ligados ao fundamento, à organização, à estrutura, aos objetivos e ao exercício do poder político (nas suas diversas formas) em sociedade.

Conforme ensina Alexandre de Moraes, O Princípio da Separação dos Poderes consagrado por Montesquieu foi esboçado pela primeira vez por Aristóteles, na obra “Política” e, posteriormente, por Locke no “Segundo Tratado do governo civil” no momento em que surgiu a necessidade de se limitar a ação do Estado Absolutista e de fundamentar o liberalismo emergente[23].

Todavia, foi na obra “Espírito das Leis” de Montesquieu que o princípio de organização política liberal transformou-se em dogma sendo adotado e previsto no art. 2º da Constituição da República Federativa do Brasil.

Montesquieu distingue três poderes de Estado: Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário, cada um com funções estatais previamente definidas.

Ao poder legislativo caberia a função de criar e modificar o ordenamento jurídico mediante a edição de normas gerais, abstratas e inovadoras.

Ao poder executivo, a função administrativa pela qual o Estado alcança suas metas, atuando concretamente mediante decisões e atos materiais em respeito às normas jurídicas.

Ao poder Judiciário, a função jurisdicional que visa à conservação e à tutela do ordenamento jurídico mediante decisões individuais e coletivas definitivas, declarando a conformidade ou não dos fatos com as normas e impondo as eventuais conseqüências jurídicas.

Contudo, a inviabilidade da rigidez do sistema ocasionou a evolução doutrinária no sentido de flexibilizá-lo, permitindo aos poderes, a título subsidiário, o exercício de funções aos outros conferidas ainda que prevalentes as que lhe foram originariamente atribuídas.

Tal ponderação se justificou pelo fato de tratar-se de poderes dinâmicos quanto ao seu exercício, harmônicos e interdependentes. Neste diapasão, não se falaria mais em separação e independência de poderes, mas em harmonia, coordenação, colaboração e controle dos Poderes de modo a frear uns aos outros, mediante o sistema de “freios e contrapesos”[24].

Na medida em que se efetiva o sistema de freios e contrapesos, é necessário salientar que o Princípio da Separação dos Poderes não tem o condão de paralisar as reivindicações de cunho social diante do seu escopo original de garantir os Direitos Fundamentais contra os arbítrios do Absolutismo e hoje, também, contra a omissão estatal.

Com efeito, o Poder Executivo e o Poder Legislativo, no exercício de suas funções gozam de prerrogativas a eles conferidas por lei, dentre as quais destacamos o poder discricionário.

José dos Santos Carvalho Filho ensina que o poder discricionário “é a prerrogativa concedida aos agentes administrativos de elegerem, entre as várias condutas possíveis, a que traduz maior conveniência e oportunidade para o interesse público”[25].

A limitação para o exercício desse poder deve consistir na adequação da conduta escolhida pelo administrador à finalidade que a lei expressa de modo que o posicionamento adotado deve ser fundamentado para a averiguação de sua legalidade.

Sobre a liberdade administrativa, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello:

[...] Não significa poder de opções livres, como as de direito privado. Significa o dever jurídico funcional (questão de legitimidade e não de mérito) de acertar, ante a configuração do caso concreto, a providência – isto é o ato – ideal, capaz de atingir com exatidão a finalidade da lei, dando, assim, satisfação ao interesse de terceiros - interesse coletivo e não do agente - tal como firmado na regra aplicanda[26].

No caso de implementação de políticas públicas ligadas à saúde em vista de casos concretos, os limites do poder discricionário tornam-se imprecisos dificultando o estabelecimento do campo de atuação do Poder Judiciário.

Isto porque o campo de liberdade decisório e a própria valoração administrativa conferida ao administrador seriam intangíveis ao controle meritório por parte do Poder Judiciário a quem incumbiria somente a análise da legalidade de tais atos.

Todavia, os limites formais da legalidade, por vezes, têm que ceder à busca do atendimento dos fins sociais da lei, concretizados a partir de uma cautelosa interpretação do texto legal, sempre tendo por norte os princípios e fins por ela colimados.

A Administração Pública, segundo, Leonardo José Carneiro da Cunha tem sua atuação adstrita aos limites da lei, só podendo agir secundum legem, isto é, ao administrador só é permitido fazer o que a lei previamente autorizar[27].  

Assim, os parâmetros do constitucionalismo liberal-iluminista que consagrou o Poder Discricionário da Administração Pública bem como os paradigmas hermenêuticos que lhe são próprios não servem para enfrentarmos os problemas da sociedade atual. O Poder Judiciário não pode permanecer inerte frente às dificuldades de se assegurar um mínimo de dignidade a todo cidadão brasileiro.

A orientação geral, na matéria, tem seguido a linha aplicada no seguinte julgado:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS. DIABETES TIPO I. - Não ocorre violação ao Princípio da Tripartição dos Poderes, porque a pretensão não objetiva fazer com que os medicamentos em questão voltem a figurar na lista de substâncias especiais, apenas visa ao fornecimento dos mesmos para solucionar o problema do filho do autor, não envolvendo decisão em abstrato, mas no caso concreto. - Pretensão que não pode ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. - Matéria que envolve direitos e garantias fundamentais do ser humano, como o direito à vida e à saúde, assegurados de forma incondicional na Constituição da República, sobre os quais não pode prevalecer o interesse financeiro do Estado. - O direito à vida é garantido no art. 5º da Constituição Federal e como desdobramento deste, o art. 6º enumera o direito à saúde como direito social. - Comprovada a necessidade de tratamento com os medicamentos questionados, sentença mantida por seus próprios fundamentos. - Sucumbência mantida por ausência de impugnação. - Apelação e remessa oficial, considerada interposta, improvidas.[28]

Certo é que não basta a Constituição proclamar que todos têm direito à saúde, da mesma forma que não é suficiente a sua transposição para normas infraconstitucionais que confira executoriedade aos respectivos preceitos constitucionais se a Administração não lhes confere a devida eficácia, tornando tais proclamações inócuas.

Se o ativismo constitucional da Administração Pública se degenera, a própria função jurídica e política da Lei Fundamental restará desvalorizada.

Desta forma, o cumprimento das tarefas sociais pode e deve ser controlada pelo Poder Judiciário, haja vista o caráter orientador e educador que as decisões judiciais podem proporcionar à Administração Pública.

É possível, portanto, que o Poder Judiciário e o Poder Executivo trabalhem integrados na promoção do bem comum de modo que o Princípio da Separação dos Poderes esteja em consonância com a eficiência do Estado e com a preservação dos Direitos sociais.

Em vista disso, propugna Mariana Filchtiner Figueiredo:

Nessa direção, outros valores constitucionais ganham peso e permitem o exercício da atividade jurisdicional mesmo em searas tidas como tipicamente políticas e, por isso, impassíveis do controle judicial. É o caso do direito constitucional brasileiro, da garantia fundamental da inafastabilidade da jurisdição (CR/88, art. 5º, XXXV), que possibilita o acesso de todas as pessoas ao judiciário sempre que haja lesão ou ameaça de lesão a direito, qualquer direito[29].

O Poder Judiciário, como controlador da legitimidade do ato administrativo, não pode deixar de averiguar, ao lume das situações concretas que ensejaram o ato, se, a vista de cada uma daquelas situações, havia ou não discricionariedade, sua extensão e se a providência ótima almejada pela Constituição foi alcançada[30].

Destarte, não se admite um poder discricionário ilimitado devendo haver critérios que limitem a sua área de atuação. Ultrapassados os referidos limites não restará alcançada a finalidade dos atos administrativos, qual seja, o interesse público, de modo a se impor a sua anulação pelo Poder Judiciário, face ao desvio de poder.

É inegável que o controle judicial da atividade administrativa não implica usurpação da discricionariedade pelos órgãos judiciários. Não se pode conceber a alegação de que o controle judicial das políticas públicas é antidemocrático pelo fato de que o Poder Judiciário não ser composto de pessoas eleitas pelo povo.

A legitimidade do Poder Judiciário decorre da própria Constituição Federal de forma que a sua atuação não se resume a uma ação defensiva.  A propósito, tendo em vista a sociedade pluralista em que vivemos, o significado que se deve dar a democracia ultrapassa a defesa dos direitos da maioria abrangendo a defesa das minorias cujos interesses muitas vezes não encontram defensores no âmbito do Poder Executivo e do Poder Legislativo.

Neste contexto, ainda se discute se na falta de previsão legal para a efetivação do direito à saúde constitucionalmente assegurado, poderia o julgador, no caso concreto, exercer a competência originariamente atribuída ao Poder Legislativo.

Com efeito, tanto o Poder Judiciário quanto o Poder Legislativo podem ser vistos como criadores do Direito, eficaz instrumento de controle social, que ordena, regula a cooperação dos indivíduos, previne e soluciona conflitos[31].             

Ademais, o interesse público inserido em tais demandas justifica o poder criador do juiz esculpido no art. 126 do Código de Processo Civil, que impossibilita o juiz eximir-se de julgar alegando lacuna, obscuridade ou ausência de lei.

Isto porque a lesão que a omissão do juiz pode causar ao não efetivar um direito social à falta de lei regulamentadora é demasiadamente maior que a lesão ao Princípio da Separação dos Poderes no caso concreto.

Como disse Mauro Cappelletti:

[...] O Juiz não pode mais se ocultar, tão facilmente detrás da frágil defesa da concepção do direito como norma preestabelecida, clara e objetiva, na qual pode basear sua decisão de forma “neutra”. É envolvida sua responsabilidade pessoal, moral e política, tanto quanto jurídica, sempre que haja no direito abertura para escolha diversa[32].

Destarte, não se trata de uma atuação totalmente discricionária e arbitrária do Poder Judiciário na medida em que tutela um direito previsto pelo próprio Estado, mas de uma legitimidade que encontra limites substanciais haja vista que o progresso que se verificou na formalização da sociedade do bem estar social pelo Estado Moderno não foi materialmente alcançado.

 Nos moldes do que foi visto, por conseguinte, é de se reconhecer o acerto do posicionamento segundo o qual se extrai a legitimidade do Poder Judiciário para implementar os direitos sociais haja vista a posição proeminente e essencial que ocupa no Estado Democrático de Direito, garantindo, assim, na omissão do Poder Executivo ou do Poder Legislativo, as condições materiais mínimas para a concretização dos Direitos Sociais, especialmente do Direito à Saúde.

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Sobre o autor
Nayana Machado Freitas Rosa

Nayana Machado Freitas Rosa<br>Procuradora Federal, lotada na Procuradoria Federal de Minas Gerais. <br>Especialista em Direito Processual pela UNIDERP. <br>Pós-graduanda em Advocacia Pública pelo IDDE.

Informações sobre o texto

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