Os direitos fundamentais devem ser considerados verdadeira meta da limitação jurídica do Estado e o conteúdo essencial do Estado de Direito deve residir no reconhecimento desta esfera de autonomia em que os indivíduos são titulares de direitos subjetivos, oponíveis a terceiros e ao Estado. (NOVAIS, 2006, p. 76.)
Na mesma esteira, a consagração constitucional dos direitos fundamentais teria sido a limitação de todos os poderes do Estado acompanhada do reconhecimento da supremacia da Constituição em relação ao Poder Legislativo ordinário. (NOVAIS, 2006, pp. 77-78.) Os direitos fundamentais assumiram, então, o caráter de direitos contra o Estado, de garantias da autonomia individual contrária às invasões do soberano.1
No Brasil, a Constituição da República de 1988 recebeu o nome de Constituição Cidadã ao atribuir aos direitos e garantias individuais do homem o caráter de fundamentais – além de serem cláusula pétrea –, situando-os, inclusive, no início do texto constitucional, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, entre outros, conforme a leitura do art. 5º, caput, e dos seus 78 incisos.
Contudo, segundo a advertência explícita do § 2º do aludido artigo, os direitos e garantias previstos no texto constitucional não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais.
Sob uma perspectiva dogmático-jurídica e devido ao seu conteúdo, podem ser entendidos também por direitos fundamentais outros postulados com rótulo diferente na Carta Magna, a exemplo dos direitos sociais estampados no art. 6º, caput, como educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, bem como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput), haja vista que são inerentes à própria existência do ser humano.
Além disso, o legislador conferiu a estes postulados constitucionais – direitos fundamentais – aplicação imediata (art. 5º, § 1º, CF), cláusula esta que deve ser observada pelos órgãos estatais, bem como afastou qualquer forma de supressão por parte do poder constitucional derivado ou reformador (art. 60, § 4º, CF), mantendo hígidas a identidade e a continuidade da Lei Maior.
Enquanto direitos de defesa, os direitos fundamentais tutelam a esfera de liberdade individual do cidadão contra intervenção indevida do Estado e de particulares que venham a restringir o pleno gozo do seu direito de liberdade.
Neste contexto, é importante fazer uma breve reflexão sobre a legalidade do tratamento de dependentes químicos por meio das internações compulsórias determinadas pelo Poder Judiciário à luz do ordenamento jurídico vigente, em especial da Lei nº 10.216/01 e da Constituição Federal, sem olvidar jamais dos princípios e valores que são inerentes ao ser humano.
ANÁLISE DO TEMA
Sob a ótica constitucional, releva notar que o Estado Democrático de Direito gravita em torno do princípio da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais, estando incluídos nos direitos fundamentais a liberdade, a igualdade e o mínimo existencial que devem ser realizados pelo Legislativo, Executivo e Judiciário na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o núcleo essencial desses direitos.
A dignidade da pessoa humana, considerada como o centro do constitucionalismo moderno, quando relacionada com os Poderes Públicos, impõe que estes tracem sua atuação calcada por tal postulado, não praticando qualquer ato que importe ofensa ao princípio, e interpretem toda e qualquer norma sem se descurar do homem enquanto núcleo do constitucionalismo. Dessa forma, dignidade da pessoa humana não significa somente autonomia da vontade, mas implica, sobretudo, respeito por todos e, principalmente, pelos entes estatais.
De outro giro, é de conhecimento público que o problema das drogas aflige a sociedade de maneira geral, na medida em que reduz sensivelmente o discernimento dos usuários – tanto homens quanto mulheres, jovens ou adultos, pobres ou abastados –, podendo desencadear problemas graves de ordem mental e a prática de pequenos delitos ou até crimes graves, tudo com o objetivo de sustentar o vício, representando assim perigo, tanto para o próprio toxicômano, como para terceiros.
O uso de drogas ilícitas, assim como o consumo de drogas lícitas, como a bebida alcoólica e o cigarro, foi considerado, já há bastante tempo, uma patologia psíquica, sendo, inclusive, catalogada na Classificação Internacional de Doenças (CID – 10/F19), tendo em vista que subtrai do adicto a capacidade de escolher entre continuar, ou não, usando a substância entorpecente, colocando-o em situação de total dependência física e psicológica.
Com efeito, o que se tem hoje veiculado pela mídia, infelizmente, é a proliferação das chamadas “cracolândias” (o local em que viciados em crack compram e consomem a droga). Nestes locais, assim como em outros, pessoas de todas as idades consomem drogas em plena luz do dia e em condições degradantes, deixando de lado família, trabalho, amigos e até a própria dignidade, sendo vistos por parte da sociedade como indigentes ou irrecuperáveis.
Nesses casos, tem-se que o tratamento somático e psicossocial, se bem planejado, estruturado e executado, no âmbito doméstico ou ambulatorial, seria capaz de prevenir e coibir o uso de drogas, trabalhar a ansiedade, orientar sobre eventuais recaídas e recuperar pessoas, mas, a internação compulsória/judicial é, em muitos casos, evocada pela família como o primeiro, único ou derradeiro escape para a crise instaurada pelo comportamento desregrado de um de seus membros.
Assim, o legislador editou a Lei nº 10.216/01, conhecida como “Lei da Reforma Psiquiátrica”, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, prevendo, dentre outras medidas, as internações compulsórias. Nesse sentido, o legislador estabeleceu, no art. 4º da Lei, que as políticas públicas de prevenção continuam sendo regra e que a internação, em qualquer de suas modalidades, é exceção, só podendo ser recomendada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
No que toca às modalidades de internação psiquiátrica, realizadas somente mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, estas são classificadas em três espécies: internação voluntária, quando há a aquiescência do usuário, sendo o seu término condicionado à solicitação do paciente; internação involuntária, aquela que se dá sem o consentimento do usuário, mas a pedido de terceiro, podendo ser o familiar, o tutor, o cônjuge, um parente próximo ou o Ministério Público (art. 1.177, CPC); e a internação compulsória, aquela determinada pelo Poder Judiciário, depois de observadas as condições de segurança do estabelecimento quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários, devendo o mesmo procedimento ser observado no caso de alta.
Consabido que o direito à vida, a priori, deve preceder a qualquer outro, inclusive, aos da liberdade e autonomia da vontade, tal como alicerçado no caput do art. 5º do Pergaminho Político, haja vista que assegurado tal direito, em princípio, o ser humano poderá viver de forma digna e com liberdade.
Nesta ótica, à guisa de exemplo, o Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário nº 511.961-SP (DJe 13.11.09), de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, assentou que não há direitos absolutos e reconheceu a preponderância da liberdade de imprensa sobre o direito à intimidade e à vida privada, citando o preceito do art. 220 da Carta Magna a respeito da comunicação social; e, em outra oportunidade, o Ministro Joaquim Barbosa, ao analisar pedido de liminar impetrado em habeas corpus contra decisão de indeferimento de liminar proferida nº 253.818-SP, manejado no Superior Tribunal de Justiça, também vaticinou que não há direito absoluto, de modo que, havendo conflito entre dois princípios constitucionais resta ao juiz, valendo-se da proporcionalidade, fazer a ponderação entre eles no caso concreto.
Volvendo os olhos ao presente estudo, é possível concluir que o princípio da dignidade da pessoa humana se constitui o núcleo essencial do direito à vida e, assim, deve prevalecer no caso de tratamento de jovens e adultos quando as circunstâncias exigirem a internação compulsória determinada pelo Poder Judiciário, atendendo ao verdadeiro espírito da Lei nº 10.216/01, que é a recuperação e reinserção do usuário no grupo social da forma menos danosa possível.
Entretanto, algumas vozes se insurgem quanto a este tipo de programa, sob o argumento de que o dependente químico só poderia ser internado com a sua concordância ou, sem esta, mas após a decretação de sua interdição judicial. Já outra vertente sustenta que obrigar o paciente a se submeter, contra a sua vontade, a um regime de enclausuramento institucional configuraria o ilícito penal de cárcere privado – verdadeira prisão.
A despeito das críticas, temos que essas posições não podem ser consideradas a partir de uma independência moral ou intelectual que os adictos não possuem, pois integra o próprio quadro da doença a recusa ao tratamento, e curvar-se a esta resistência redundaria em afronta à mais basilar das prerrogativas constitucionais, o direito à vida, pois ainda que se alegue que a internação compulsória é infrutífera, tal medida radical, em muitos casos, é o último recurso para aquele que vê o seu ente querido caminhar a passos largos para a autodestruição.
Assim, ao determinar a realização da internação compulsória de dependentes químicos para fins de tratamento com base na Lei nº 10.216/01, o juiz não está a usurpar a competência médica e nem a tolher a liberdade do cidadão, mas tão somente agindo para dar eficácia aos princípios fundamentais garantidores da vida e da paz social, já que do magistrado, na condição de agente político que ostenta, se espera não se eximir do seu compromisso constitucional e não ter uma postura alheia aos problemas sociais e políticos do País, já que tem a responsabilidade de julgar demandas judiciais caracterizadas, na maioria das vezes, por conflitos de interesses entre pessoas, ou entre estas e o Estado, sendo que tais decisões hão de ser adequadas e céleres, atendendo às expectativas da população e ao verdadeiro ideal de justiça social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao se constatar a crescente proliferação de cracolândias País afora, vê-se que os problemas causados pelas drogas refletem em todas as classes e segmentos sociais, atingindo a dignidade da pessoa humana, que constitui o ponto nevrálgico do direito à vida, principal bem jurídico tutelado na atual ordem constitucional, e, neste contexto, cabe ao Estado adotar medidas, ainda que extremas, para preservar a vida e os valores que regem a sociedade.
Não é de se olvidar que não há direito fundamental absoluto, devendo o seu exercício ser pautado por interesses maiores como, no caso da dependência química, a vida e a dignidade humana, com reflexos positivos para toda a coletividade.
Neste diapasão, o Poder Judiciário, uma vez provocado, deve dar uma resposta rápida ao jurisdicionado, garantindo o efetivo cumprimento da Constituição e das leis no tocante à disponibilização de vagas para dependentes químicos em hospitais e clínicas especializadas, determinando que se garantam suas estruturas físicas e humanas para esse atendimento adequado e ordenando a internação compulsória – medida de salvaguarda de pessoas vulneráveis – quando houver indicação médica nesse sentido e se mostrar como única alternativa viável para a recuperação do dependente químico, que não consegue estabelecer um controle sobre a sua vontade, resguardando-se, assim, a sua dignidade e a sua própria vida.
Além disso, ao lado das comunidades terapêuticas religiosas que realizam relevantes trabalhos nessa seara, registre-se que é indispensável que se tenha uma estratégia de enfrentamento da questão por parte, sobretudo, do Poder Executivo, pela prevenção e conscientização dos jovens, a fim de se cumprir fielmente a legislação, bem servir à sociedade e buscar cortar o mal pela raiz.
Assim, sempre haverá grandes desafios a serem superados nessa área, pois a questão das drogas não atinge só o adicto, mas também a família e toda a sociedade – problema coletivo e que não é novo para o Estado. Por isso, o Estado e a própria sociedade precisam apostar cada vez mais na educação e na prevenção, sendo, neste sentido, louvável a atuação de juízes, não só criminais, que, no âmbito de sua jurisdição, ministram palestras e realizam campanhas de prevenção e conscientização quanto ao uso de drogas.
NOTA
1 Em outra obra (As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p. 49), Jorge Reis Novais também trata dos direitos fundamentais, explora suas dimensões objetiva e subjetiva e os denomina de direitos de liberdade, distinguindo-os dos direitos sociais.
REFERÊNCIAS
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