Responsabilidade civil estatal: morte de detento nas dependências de estabelecimento prisional

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23/02/2015 às 11:59
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Análise da jurisprudência dos Tribunais Superiores acerca da responsabilidade estatal sobre custodiados

Morte de detento nas dependências de estabelecimento prisional

1.1 Responsabilidade subjetiva ou objetiva?

Sem delongas, a responsabilidade da Administração Pública por morte ocorrida dentro de estabelecimento prisional é do tipo objetiva, segundo entendimento majoritário. No passado, entendeu-se que a responsabilidade em casos desse jaez comportaria averiguação de culpa do agente penitenciário, de modo que, na ocorrência de morte de detento causado por outro interno, por exemplo, haveria incidência da excludente de culpa de terceiro, com afastamento da obrigação indenizatória do Estado.

No entanto, a doutrina e a jurisprudência evoluíram para reconhecer a responsabilidade estatal, no caso em epígrafe, sob a ótica do risco administrativo. Passou-se a apurar, deveras, responsabilidade estatal a despeito de culpa.

Isso porque, a partir do momento em que a pessoa é recolhida ao presídio, tendo em vista as limitações decorrentes do regime prisional, assume o Estado o dever de vigilância e incolumidade do preso.

A propósito do tema, preleciona Rui Stoco:

O preso, a partir de sua prisão ou detenção, é submetido à guarda, vigilância e responsabilidade da autoridade policial, ou da administração penitenciária, que assume o dever de guarda e vigilância e se obriga a tomar medidas tendentes à preservação da integridade física daquele, protegendo-o de violências contra ele praticadas, seja por parte de seus próprios agentes, seja por parte de companheiros de cela ou outros reclusão com os quais mantém contato, ainda que esporádico. [...]

Assim, se um detento fere, mutila ou mata outro detento, o Estado responde objetivamente, pois cada detento está sempre sujeito e exposto a situações agudas de risco, inerente e próprio do ambiente das prisões onde convivem pessoas de alta periculosidade e, porque no ócio e confinados, estão sempre exacerbados e inquietos. [...]

Desse modo, qualquer lesão que esses presos sofram por ação dos agentes públicos, por ação dos agentes públicos, por ação de outros reclusos ou de terceiros, leva à presunção absoluta (jure et de jure) da responsabilidade do Estado, não admitindo a alegação de ausência de culpa.

Mostra-se, então, despiciendo indagar se a Administração falhou, se houve (ou não) omissão, falta ou falha do serviço, nem se há indagar da culpa do serviço ou culpa anônima do serviço. A responsabilidade nasce tão só da existência de um dano e da existência do nexo causal entre o fato e o resultado. Isto porque o preso fica sob o poder, proteção e vigilância do Estado. Quando preso, não tem escolha quanto ao local em que deve ficar, nem opção quanto aos próprios meios de sua proteção. Mas impõe-se que lhe assegure, ao menos, a cláusula de incolumidade[1]. (grifos nossos)

Acerca do dever de guarda objetivo do Estado por cada presidiário, ponderou o Ministro Teori Alberto Zavascki no julgamento do AgRg no Ag 986.208/MT:

[...] o nexo causal se estabelece, em casos tais, entre o fato de estar preso sob a custódia do Estado e, nessa condição, ter sido vitimado, pouco importando quem o tenha vitimado. É que o Estado tem o dever de proteger os detentos, inclusive contra si mesmos. Ora, tendo o dever legal de proteger os presos, inclusive na prática de atentado contra sua própria vida, com maior razão deve exercer referida proteção em casos como o dos autos, no qual o detento foi vítima de homicídio em rebelião ocorrida no estabelecimento prisional administrado pelo ente público. No mesmo sentido, cita-se: REsp 713682/RJ, 2ª T., Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 11.04.2005.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sido uníssona no sentido de que a responsabilidade civil do ente público é objetiva, considerando o nexo de causalidade entre a ação praticada por terceiro, estranho ao serviço público, e a lesão causada à pessoa que estava sob a custódia do Estado, o qual deveria zelar pela sua integridade física.

Neste sentido, colhem-se os seguintes arestos:

ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. MORTE DE DETENTO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. SÚMULA 83/STJ. COMPROVAÇÃO DO DANO. VALOR DA INDENIZAÇÃO. PRETENSÃO DE REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. JUROS DE MORA. LEI N. 11.960/2009.

1. No que se refere à morte de detento sob custódia do Estado, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a responsabilidade civil do ente público é objetiva. (grifo nosso)

2. O valor estabelecido pelas instâncias ordinárias a título de indenização por danos morais pode ser revisto, tão somente nas hipóteses em que a condenação revelar-se irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade, o que não se evidencia no presente caso.

3. Quanto aos juros de mora, impõe-se a aplicação ao presente feito do art. 1º-F da Lei n. 9.494/97, com as alterações introduzidas pela Medida Provisória n. 2.180-35/2001, que determinou a incidência de juros no percentual de 6% ao ano, a contar da citação, até 29.6.2009. A partir dessa data, como no caso dos autos, os juros serão calculados nos mesmos moldes aplicados à caderneta de poupança, nos termos do art. 5º da Lei n. 11.960/2009.

Agravo regimental parcialmente provido.

(AgRg no AREsp 169.476/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/08/2012, DJe 08/08/2012)


ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. MORTE DE DETENTO. HONORÁRIOS DE ADVOGADO DEVIDOS PELO ESTADO À DEFENSORIA PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. CONFUSÃO. ART. 381 DO NOVO CÓDIGO CIVIL.

1. O Estado responde objetivamente por dano advindo de morte de detento provocada por demais presidiários dentro do estabelecimento prisional.

2. Nas demandas em que a parte contrária for representada pela Defensoria Pública, o Estado não paga honorários advocatícios.

3. Extingue-se a obrigação quando configurado o instituto da confusão (art. 381 do Código Civil atual).

4. A circunstância de o valor fixado a título de indenização por danos morais ser inferior ao pleiteado não configura hipótese de sucumbência recíproca (CPC, art. 21).

5. Recurso especial parcialmente provido.

(STJ, REsp 713.682/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA DJ 11.O4.2OO5 p. 286).

Na mesma linha de posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, também se tem manifestado a jurisprudência do Excelso Pretório, consoante exemplificam os arestos a seguir transcritos:

EMENTA: Recurso extraordinário. 2. Morte de detento por colegas de carceragem. Indenização por danos morais e materiais. 3. Detento sob a custódia do Estado. Responsabilidade objetiva. 4. Teoria do Risco Administrativo. Configuração do nexo de causalidade em função do dever constitucional de guarda (art. 5º, XLX). Responsabilidade de reparar o dano que prevalece ainda que demonstrada a ausência de culpa dos agentes públicos. 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento
(RE 272839, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 01/02/2005, DJ 08-04-2005 PP-00038 EMENT VOL-02186-03 PP-00417 LEXSTF v. 27, n. 317, 2005, p. 236-257 RT v. 94, n. 837, 2005, 129-138 RTJ VOL-00194-01 PP-00337).

EMENTA: Agravo regimental NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO. MORTE DE DETENTO POR OUTRO PRESO. 1. Detento assassinado por outro preso. Responsabilidade objetiva do Estado de reparar o dano. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (RE 466322 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 13/03/2007, DJe-004 DIVULG 26-04-2007 PUBLIC 27-04-2007 DJ 27-04-2007 PP-00102 EMENT VOL-02273-06 PP-01188).

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA. MORTE DE DETENTO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. 1. Impossibilidade do reexame das provas contidas nos autos na via extraordinária. Incidência da Súmula 279 do Supremo Tribunal Federal. 2. Morte de detento em estabelecimento prisional. Responsabilidade civil objetiva do Estado configurada. Precedentes. 3. Proibição constitucional de vinculação de qualquer vantagem ao salário mínimo. Impossibilidade da modificação da base de cálculo por decisão judicial: Súmula Vinculante n. 4. (AI 603865 AgR, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 11/11/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-15 PP-03016).

Agravo regimental em recurso extraordinário com agravo. 2. Morte de detento sob custódia da Administração Pública. Responsabilidade objetiva do Estado. Art. 37, § 6º, da Constituição Federal. Missão do Estado de zelar pela integridade física do preso. Precedentes do STF. 3. Discussão acerca da existência de culpa do Estado. Necessidade do reexame do conjunto fático-probatório. Súmula 279. 4. Agravo regimental a que se nega provimento. (ARE 662563 AgR, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 20/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-066 DIVULG 30-03-2012 PUBLIC 02-04-2012) (grifos nossos)

Muito embora haja consenso da responsabilidade objetiva do Estado por morte de detentos na esfera de competência dos Tribunais Superiores, a jurisprudência estadual ainda titubeia entre a modalidade objetiva e subjetiva[2].

Desse modo, a fim de pronunciar-se definitivamente acerca da matéria, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em setembro de 2012, a repercussão geral da matéria aqui ventilada. Nas razões de abertura para votação da repercussão geral, o relator, Ministro Luiz Fux, assentou:

A questão constitucional posta à apreciação deste Supremo Tribunal Federal cinge-se na discussão sobre a  responsabilidade civil objetiva do Estado, em razão de morte de detento, nos termos do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal. A meu juízo, o recurso merece ter reconhecida a repercussão geral, haja vista que o tema constitucional versado nestes autos é questão relevante do ponto de vista econômico, político, social e jurídico, e ultrapassa os interesses subjetivos da causa. Diante do exposto, nos termos do art. 543-A, § 1º, do Código de Processo Civil, combinado com o art. 323, § 1º, do RISTF, manifesto-me pela existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, submetendo-a à apreciação dos demais Ministros desta Corte[3].(grifo nosso)

O reconhecimento da repercussão geral é, sem dúvida, um grande passo para a uniformização paulatina do tema nos tribunais. O pronunciamento definitivo do STF possibilitará a diminuição de decisões judiciais que, malgrado a previsão constitucional e o posicionamento homogêneo do STJ e daquele excelso Sodalício, afastam a responsabilidade do Estado sob a pecha de ausência de demonstração de culpa do agente público pelo interessado, prova esta, dada a segurança que envolve o presídio, muito difícil de produzir, quiçá impossível.

1.2 Suicídio: rompimento do nexo causal?

Questão deveras tormentosa é a responsabilidade estatal em decorrência de autoextermínio (suicídio[4]) de detento custodiado em estabelecimento prisional.

Pensamos, como traçado nos tópicos 3.2 e 3.3.1, que, desde que o preso passa à custódia e disciplina do Estado, reveste-se de direitos, deveres e prerrogativas inerentes à sua condição de detento. O Estado converte-se em garantidor e, assim, cumpre-lhe velar e zelar pela incolumidade pessoal das pessoas segregadas. Essa posição de garantidor da segurança do detendo advém do próprio texto constitucional, insculpida no art. 5º, XLIX (“É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”).

O detento tem o direito subjetivo público à proteção pelos órgãos públicos, cujo poder administrativo se exercerá para resguardá-lo contra qualquer tipo de agressão.

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Dessa forma, o Poder Público é responsável pela incolumidade física do preso que está sob sua custódia, incumbindo a seus agentes a vigilância e o zelo pela vida e integridade dos detentos que se encontram privados de sua liberdade e, por consequência, impossibilitados de se defenderem.

Não obstante o dever legal de zelar pela segurança dos encarcerados, o que atrai a sua responsabilidade objetiva, adotamos o posicionamento de que, na hipótese de suicídio, a responsabilidade estatal deve reger-se pela culpa administrativa, por presença de integral rompimento do nexo causal, em regra.

Quer dizer, a obrigação de compensar o dano (já que a reparação é impossível) aos familiares do suicida apenas encontra guarida se houver prova de que o ente público participou direta ou indiretamente do fato danoso, o que se configura mesmo quando, fugindo do dever de cautela, deixa de adotar as providências cabíveis que o evitassem.

Nesses moldes, se eventualmente foi concedida oportunidade velada de o preso ceifar a própria vida, como permitir o seu ingresso na cela portando cinto – instrumento hábil para enforcamento -, há omissão específica do estado apta a engendrar responsabilidade.

Assim, se o autoextermínio do preso decorre de falha dos agentes penitenciários, uma vez que ao se descurarem do dever de cautela, deixam de retirar pertences com os quais o preso poderia atentar contra sua vida, criam o cenário necessário para o evento danoso. Ao revés, não havendo culpa lato sensu, afasta-se o dano.

Do mesmo modo ocorre se a direção do presídio é leniente com a condição mental suspeita do preso, com sinais típicos de pessoas na iminência de se suicidarem, segundo literatura médica, deixando de acautelar-se com realização de exames e consultas a psicólogos e psiquiatras. Aqui, pôde agir o agente público, e não o fez, razão pela qual há responsabilidade.

Ora, filiar-se à teoria da responsabilidade objetiva para reger hipótese de suicídio de detentos seria admitir conclusão dissociada da realidade. Pensar que o Estado poderia impedir o suicídio, sob qualquer pretexto, é admitir vigília diuturna e ininterrupta a cada preso, o que, de fato, não ocorre, e nem ocorrerá em curto espaço de tempo, dado o longo caminho a ser trilhado para equipar todos os estabelecimentos prisionais de equipamentos eletrônicos de vigília. Ainda que com esse aparato técnico, não há qualquer garantia que fatos danosos como esse possam ocorrer.

Não há como o Estado manter a vigilância individual sobre todos os presos durante todo o tempo – é atentar contra o próprio princípio da reserva do possível[5].

Pela possibilidade de afastamento da responsabilidade estatal por culpa exclusiva da vítima, argumenta Leonardo Ayres Santiago:

Concluímos que vige, como regra geral, a responsabilidade objetiva do Estado fundada na teoria do risco administrativo, com base na norma contida no art. 37, § 6º da Constituição da República. Nessa modalidade de responsabilidade, como vimos, a culpa exclusiva da vítima impede que se forme o nexo de causalidade, afastando a responsabilidade do Estado. Se foi a vítima quem provocou o dano, então não foi o Estado; se não foi o Estado, então não há que se falar em responsabilidade[6].

Gize-se, nessa seara, que, ainda que o detento não disponha de qualquer discernimento, com debilidade mental grave[7], inteiramente incapaz de gerir seus próprios atos, entendemos pela mantença da tese da responsabilidade com culpa. Alguns podem contra-argumentar que a vontade de pôr termo à própria vida decorre de uma enfermidade psíquica e, neste caso, não há que se falar em culpa.

Ora, a despeito de seu estado mental, o fato é que ele ceifou a própria vida, e, o que é mais importante, cercado do aparato estatal básico à sua segurança. É o nítido retrato da dirimente de responsabilidade consubstanciada na culpa exclusiva da vítima.

Pondera SANTIAGO quanto à dispensabilidade do domínio da situação de fato pela vítima:

Desconsiderando o fato de que não se pode afirmar, seguramente, que todo suicida (ou mesmo a maioria deles) sofra de algum tipo de anomalia mental, deve-se ressaltar que a expressão ‘culpa exclusiva da vítima’ também abrange, além da culpa propriamente dita, os atos imputáveis exclusivamente ao lesado, ainda que sem a presença de culpa. Isto porque o que importa é verificar a existência, ou não, de nexo causal. Assim, se a vítima foi culpada, ou, embora não tenha sido culpada, ocasionou o evento danoso por ato exclusivo seu, então inexistiu a relação causal capaz de gerar a obrigação de reparar[8].

Noutro giro, o mesmo não se pode dizer quando o dano advém de causa alheia ao agente, como agressão de outros detentos ou de própria injúria policial, ocasião em que a responsabilidade objetiva do Estado se faz presente, como retratada no tópico antecedente.

Nesses casos, o próprio Estado cria situações propiciatórias do dano, assim como ocorre com usinas nucleares, depósitos de explosivos, manicômios e os presídios propriamente ditos.

Disserta Celso Antônio Bandeira de Mello:

Uma vez que a Sociedade não pode passar sem estes estabelecimentos, instituídos em proveito de todos, é natural que ninguém em particular sofra o gravame de danos eventualmente causados pelas coisas, animais ou pessoas que neles se encontravam sob a custódia do Estado. Daí que os danos eventualmente surgidos em decorrência desta situação de risco e por força da proximidade de tais locais ensejarão a responsabilidade objetiva do Estado. Com efeito, esta é a maneira de a comunidade social absorver os prejuízos que incidiram apenas sobre alguns, os lesados, mas que foram propiciados por organizações constituídas em prol de todos[9].

Mais adiante, diz o autor que, por critérios e razões idênticas, a responsabilidade objetiva por danos oriundos de coisas ou pessoas perigosas sob a guarda do Estado aplica-se, inclusive, às outras pessoas que se achem sob tal guarda. Exemplifica dizendo que, se um detento fere outro, o Estado responde objetivamente, pois cada um dos presidiários está exposto a uma situação de risco inerente ao ambiente em que convivem.

Mas, se um raio vier a matar um dos detentos – continua o autor – a responsabilidade desloca-se para o campo da culpa administrativa, deixando de ser objetiva, por inexistir conexão lógica entre o evento raio e a situação de risco vivida pelo desafortunado. A responsabilidade advirá se eventualmente ficar comprovado que as instalações capazes de impedir o evento (para-raios) não existiam, foram mal projetadas ou estavam mal conservadas.

Usando a própria argumentação do autor, pensamos que não podemos enquadrar a responsabilidade advinda do suicídio de preso como responsabilidade objetiva derivada de situação propiciatória criada pelo Estado, pois não há conexão lógica entre o evento suicídio e a situação de risco vivida pelo detento. O encarceramento gera vários riscos aos detentos, mas não podemos afirmar, com certeza, que gera o risco de suicídio, pelo menos do ponto de vista objetivo.

A respeito do tema, traz-se à colação lição do doutrinador Yussef Said Cahali, para quem:

O Estado deve ressarcir o dano resultante do suicídio de preso recolhido ao xadrez de delegacia de polícia cujo estado físico e mental inspirava cuidados com assistência médico-hospitalar. Pois, em tais situações, as condições pessoais do detento fariam presumir a necessidade de uma vigilância efetiva sobre o mesmo, a fim de prevenir a prática do ato tresloucado.  Entretanto, como ressalva o civilista ‘se o preso agiu contra ele próprio, enforcando-se, sem que o preposto do Estado tivesse concorrido, sequer por negligência, para o resultado letal, não há cogitar-se de responsabilidade civil do Poder Público’. Assim, em caso de suicídio de presidiário no interior da cela, ‘a obrigação de indenizar só acontece quando fica caracterizada a culpa dos funcionários do presídio, e não decorrente de atos de terceiros, quando o Poder Público não podia evitar o sinistro’. Portanto, ‘para a definição da responsabilidade civil do Estado (no caso), é necessário que se indique, de maneira clara, a culpa com que se houve seu preposto, seu representante. Entrever essa culpa no ato tresloucado do preso, decididamente, é ir muito longe. O suicida tem meios fáceis e impossíveis de se prevenir à obtenção do resultado. A impedi-lo, somente a manutenção permanente de um funcionário a seu lado. Dir-se-ia que deveria ter sido encaminhado a tratamento. Não havia elementos, porém, a curto prazo, que sugerissem o gesto extremo[10]. (grifos nossos)

Na jurisprudência, os tribunais trilham ambos os caminhos, ora adotando a teoria objetiva, ora a subjetiva.

No Excelso Pretório, a matéria ecoa forte no sentido da teoria objetiva[11], conforme passagem de voto do Ministro Gilmar Mendes no julgamento do agravo regimental no recurso extraordinário com agravo 700.927, do estado de Goiás, no qual assentou que:

[...] a jurisprudência dominante desta Corte, que se firmou no sentido de que o Estado tem o dever objetivo de zelar pela integridade física e moral do preso sob sua custódia, atraindo então a responsabilidade civil objetiva, em razão de sua conduta omissiva, motivo pelo qual é devida a indenização decorrente da morte do detento, ainda que em caso de suicídio[12].

O Superior Tribunal de Justiça caminha na mesma senda palmilha. Cite-se, por oportuno, excerto de voto do Ministro Teori Albino Zavascki, no julgamento do REsp 847.687/GO :

[...] entendo que não se trata de uma questão fática, data venia. Os fatos estão colocados. Houve o suicídio de uma pessoa que estava presa. A questão é saber se desse fato decorre responsabilidade civil do Estado. Entendo que a questão é de nexo causal. Pedindo vênia ao Sr. Ministro Francisco Falcão. Penso que é um equívoco negar o nexo de causalidade, como fez a sentença de 1ª Instância, entre o fato de o Estado ter efetuado a prisão e o suicídio. Entre o fato de o Estado ter efetuado a prisão e o suicídio não há nexo causal. Mas não é esse o fato. O nexo que se deve estabelecer é entre o fato de ele estar preso sob a custódia do Estado, e não de ele ter sido preso. O Estado tem o dever de proteger os detentos, inclusive contra si mesmos. Não se justifica que tenha tido acesso a meios aptos a praticar um atentado contra sua própria vida. Os estabelecimentos carcerários são, de modo geral, feitos para impedir esse tipo de evento. Se o Estado não consegue impedir o evento, ele é o responsável[13].

No âmbito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, aplica-se, com unanimidade, a tese da responsabilidade objetiva, faceta do dever de guarda e de vigilância do Estado, todavia com minoração do quantum indenizatório. Vide as ementas transcritas a seguir:

ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. SUICÍDIO DE PRESO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL. NEXO CAUSAL. DEVER DE GUARDA E VIGILÂNCIA DO ESTADO. POSSIBILIDADE. MANUTENÇÃO DA INTEGRIDADE FÍSICA DOS DETENTOS.

Do Estado exige-se cuidado e vigilância constantes e eficientes daqueles que se encontram encarcerados em estabelecimentos prisionais, a fim de manter sua integridade e incolumidade física.

A contribuição da vítima para o evento morte não afasta o nexo causal, muito embora possa repercutir na redução da indenização.

Em se tratando do evento morte o sofrimento e o flagelo experimentados repercutem na esfera moral da prole, ensejando o direito à indenização.

É evidente a necessidade alimentar tendo em vista a presumida dependência econômica decorrente do poder familiar.

Na fixação do quantum relativo à reparação material deve-se considerar o emprego de 1/3 (um terço) dos ganhos que o pai auferiria com gastos pessoais, restando 2/3 (dois terços) para a prole.

Recurso parcialmente provido.

(Acórdão n.467755, 20070110436653APC, Relator: MARIO-ZAM BELMIRO, Revisor: NIDIA CORREA LIMA, 3ª Turma Civel, Publicado no DJE: 07/12/2010. Pág.: 214)

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Sobre o autor
André Bernardes Dias

Especialista em Direito Público pela PUC-MG. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela UNESA. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Assessor no TJDFT.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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