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Prisão em flagrante e as excludentes de ilicitude

04/08/2015 às 11:22
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O delegado de polícia, como primeiro agente estatal a dar um contorno jurídico aos fatos aparentemente delituosos, tem o dever de analisar as causas excludentes da ilicitude no momento do flagrante.

O objetivo desse texto é demonstrar que o delegado de polícia, como primeiro agente estatal a dar um contorno jurídico aos fatos aparentemente delituosos, tem o dever de analisar as causas excludentes da ilicitude no momento de decretar ou não a prisão em flagrante de uma pessoa conduzida até a Delegacia de Polícia.

Como é cediço, estão espalhados por todo o texto constitucional diversos direitos e garantias essenciais aos indivíduos. Alguns desses direitos (direitos de defesa) têm a função específica de proteger o indivíduo dos arbítrios estatais.

O direito de liberdade de locomoção, por exemplo, proíbe que uma pessoa seja presa fora das hipóteses previstas na própria Constituição. Isto, pois, a liberdade individual é um dos principais direitos fundamentais, só podendo ser suprimida em casos extremos, de acordo com as previsões constitucionais e legais.

Assim, a prisão de uma pessoa é justificada apenas quando restar constatado que ela cometeu um crime. É com o cometimento de um crime que nasce o direito de punir pertencente ao Estado.

Partindo dessa premissa, somos obrigados a nos socorrer da doutrina para chegar ao conceito de crime. Entretanto, este conceito pode variar de acordo com a corrente doutrinária adotada. Para alguns, crime é um fato típico, ilícito e culpável. Para outros, o crime é um fato típico e ilícito. Há, ainda, quem adote a teoria da tipicidade conglobante no momento da análise do crime.

Dessa forma, cabe aos operadores do Direito (juízes, promotores, delegados de polícia, defensores públicos, advogados, procuradores etc.) analisar o caso concreto e optar pelo entendimento que melhor lhes convier, respeitando o seu livre convencimento motivado. A ciência do Direito é tão fascinante justamente pelo fato de não ser exata, permitindo diversos entendimentos para uma mesma questão.

Por tudo isso, entendemos que o delegado de polícia deve analisar as causas excludentes de ilicitude durante a fase pré-processual. Como operador do Direito e garantidor dos direitos fundamentais, a autoridade policial deve formar seu convencimento e decidir de maneira fundamentada e discricionária, de acordo com o caso concreto.

Não podemos diminuir a importância do delegado de polícia afirmando que ele deve fazer apenas um juízo de tipicidade ou de subsunção entre os fatos e o tipo penal. Cabe a autoridade de Polícia Judiciária analisar o fato como um todo, com todas as suas peculiaridades e decidir fundamentadamente.

O próprio artigo 23 do Código Penal estabelece que não há crime quando constatada a presença das causas excludentes de ilicitude. Ora, se não há crime, como poderá ser efetuada a prisão em flagrante de alguém nessas circunstâncias.

Da mesma forma, o artigo 314 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela nova Lei 12.403/2011, determina que não será decretada a prisão preventiva daquele que praticar o fato amparado pelas causas excludentes de ilicitude.

Em consonância com esse entendimento, Fernando Capez nos ensina que

"A autoridade policial, sendo autoridade administrativa, possui discricionariedade para decidir acerca da lavratura ou não do auto de prisão em flagrante. Sempre considerando que, nessa fase, vigora o princípio in dubio pro societate, e que qualquer juízo exculpatório se reveste de arrematada excepcionalidade, o delegado de polícia pode recusar-se a ratificar a voz de prisão emitida anteriormente pelo condutor, deixando de proceder à formalização do flagrante e, com isso, liberando imediatamente o apresentado. Não se trata aqui, a nosso ver, de relaxamento de prisão, uma vez que ela não chegou sequer a ser efetivada, tampouco formalizada. Melhor definir tal hipótese como recusa em iniciar a prisão, ante a ausência de requisitos indiciários mínimos da existência de tipicidade ou antijuridicidade. Evidentemente, a autoridade policial não precisa prender em flagrante, vítima de estupro ou roubo que, claramente em situação de legítima defesa, matou seu agressor. O juízo sumário de cunho administrativo pode ser efetuado, ainda que isso só possa ocorrer em situações absolutamente óbvias e claras de ausência de infração penal.”[1]

No mesmo diapasão, Silvio Maciel entende que

“A verdade é que o Delegado de Polícia – autoridade com poder discricionário de decisões processuais – analisa se houve crime ou não quando decide pela lavratura do Auto de Prisão. E ele não analisa apenas a tipicidade, mas também a ilicitude do fato. Se o fato não viola a lei, mas ao contrário é permitido por ela (art.23 do CP) não há crime e, portanto, não há situação de flagrante. Não pode haver situação de flagrante de um crime que não existe (considerando-se os elementos de informação existentes no momento da decisão da autoridade policial). O delegado de Polícia analisa o fato por inteiro. A divisão analítica do crime em fato típico, ilicitude e culpabilidade existe apenas por questões didáticas. Ao delegado de polícia cabe decidir se houve ou não crime. E o art. 23, I a III, em letras garrafais, diz que não há crime em situações excludentes de ilicitude.”[2]

Eduardo Cabette, por sua vez, tem o seguinte entendimento sobre o tema:

“Malgrado a insensibilidade legislativa para um problema tão importante, pode-se solucionar o caso lançando mão do Direito Material. Ora, a Autoridade Policial somente pode lavrar um flagrante legalmente se há uma infração penal a ser apurada. Ocorre que o conceito de crime abrange os elementos da tipicidade e da antijuridicidade. Faltando um deles não há crime e assim sendo como poderia a Autoridade Policial prender alguém em flagrante, estando convencida de uma excludente de criminalidade? Não convence o argumento de que a análise da Autoridade Policial deve ser superficial, atendo-se tão somente à aparência da tipicidade formal, isso sob pena da admissão de que o sistema processual penal é erigido tendo um ator que não somente é autorizado, mas obrigado a agir violando sua consciência jurídica, bem como, o que é pior, lesionando os direitos fundamentais de alguém por mera formalidade. Seria o império de uma burocracia (ou “burrocracia”) autoritária. A lei determinaria e obrigaria uma autoridade constituída a violar a própria lei para que depois outra autoridade consertasse essa violação, mas obviamente sem ter o poder de obliterar a desonra do recolhimento de um inocente ao cárcere.”[3]

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Consubstanciando esse entendimento, imaginemos o caso em que uma mulher vítima de uma tentativa de estupro, após sofrer diversas lesões graves, consegue se livrar do seu algoz e o mata em legítima defesa. Seria justo que essa mulher fosse presa em flagrante pelo Delegado de Polícia? Entendemos que não.

Nesse caso, com base no artigo 304, §1°, do Código de Processo Penal, a Autoridade Policial deve ouvir todos os envolvidos na ocorrência e, constatada a presença da excludente de ilicitude e, portanto, não restar comprovada a fundada suspeita exigida pelo dispositivo legal, deixar de prender em flagrante a pessoa conduzida.

Visando deixar clara a teratologia dos entendimentos em sentido contrário, se o delegado de polícia não pudesse reconhecer as causas excludentes de ilicitude, o policial ou qualquer pessoa do povo que tivesse capturado um criminoso em flagrante delito e o conduzido até a Delegacia de Polícia, deveria ser preso em flagrante pelo crime de cárcere privado ou constrangimento ilegal. Explicamos! Ao deter um criminoso em suposto estado flagrancial, o policial (no flagrante obrigatório) ou qualquer um do povo (no flagrante facultativo), agem, respectivamente, no estrito cumprimento do dever legal e no exercício regular de um direito, que constituem causas excludentes da ilicitude. Nesse contexto, em prevalecendo o entendimento de que o delegado de polícia não pode verificar as causas excludentes da ilicitude, sua única opção seria decretar a prisão em flagrante do responsável pela captura do criminoso. Vejam a que ponto chegaríamos numa análise superficial do tema.

Frente ao exposto, defendemos que o delegado de polícia, como operador do Direito e garantidor dos direitos individuais da fase pré-processual, tem o dever de analisar as causas excludentes de ilicitude, não podendo prender em flagrante alguém que aja amparado por uma causa justificante.


Referências

BIANCHINIM Alice; MARQUES, Ivan Luís; GOMES, Luiz Flávio; SANCHES CUNHA, Rogério; MACIEL, Silvio. Prisão e Medidas Cautelares.ed.2ª. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O Delegado de Polícia e a análise de excludentes na prisão em flagrante. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 08 nov. 2011. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?colunas&colunista=371_Eduardo_Cabette&ver=1089>. Acesso em: 05 dez. 2011.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 10ª edição. Editora Saraiva, 2003.

SANNINI NETO, Francisco Sannini. Inquérito Policial e Prisões Provisórias. São Paulo: Ideias e Letras, 2014.


Notas

[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. pág.261.

[2] MACIEL, Silvio. Prisão e Medidas Cautelares. pág. 139.

[3] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O Delegado de Polícia e a análise de excludentes na prisão em flagrante. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 08 nov. 2011. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?colunas&colunista=371_Eduardo_Cabette&ver=1089>. Acesso em: 05 dez. 2011.

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Sobre o autor
Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini. Prisão em flagrante e as excludentes de ilicitude . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4416, 4 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41301. Acesso em: 2 nov. 2024.

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