Resumo: Este estudo tem como foco a controvertida questão da responsabilidade criminal da pessoa jurídica – RPPJ, em especial, o problema relacionado à imputação material das infrações penais ambientais cometidas pelo ente jurídico. Como é sabido, o art. 3º, da Lei 9.605/1998 ou Lei de Crimes Ambientais - LCA, responsabiliza a pessoa jurídica nos casos em que a infração ambiental seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, que tenha atuado no interesse e por conta de uma decisão societária. Assim, a norma reconhece que a infração penal imputada ao ente coletivo está conectada a uma ação criminosa praticada por uma pessoa física. A doutrina e a jurisprudência convergiram no entendimento de que não poderia haver responsabilidade criminal da pessoa jurídica, isoladamente, mas somente quando em concurso com a pessoa física que tenha realizado a conduta descrita na norma incriminadora da LCA. Ocorreria aí uma hipótese de concurso necessário de agentes ou a regra da dupla imputação. No entanto, é preciso reconhecer que o § 3º do art. 225, da CRFB, não estabelece qualquer condição ao se referir à RPPJ. Por isso, a hermenêutica doutrinária e jurisprudencial elaborada sobre o alcance do dispositivo legal em exame, que predominou sem divergências, poderá mudar completamente, com a recente decisão do STF, que decidiu respaldar ação penal unicamente contra Petrobras, depois que seu presidente e um dos dirigentes da empresa foram excluídos da ação penal.[2] É o que será examinado neste artigo.
PALAVRAS CHAVE: Crime. Meio Ambiente. Pena. Pessoa jurídica. Equilíbrio Ecológico.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Não se pode negar a relevância político-jurídica da Constituição da República Federativa do Brasil - CRFB/88. Em todos os sentidos, seu texto, comprometido com a construção de um Estado Democrático de Direito e de bem estar social, fundado entre outros valores na dignidade da pessoa humana, na cidadania e no pluralismo político, com o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária, constitui um importante instrumento político-jurídico formal na história do povo brasileiro.
Em sintonia com o pensamento ambientalista que se consolidou durante a segunda metade do século 20 e com as diretivas e princípios aprovados em congressos e conferências mundiais promovidos pela ONU, a CRFB/88 abriu importante espaço normativo para firmar o indispensável compromisso com o controle e a preservação do ambiente saudável e equilibrado. Por isso, a doutrina tem considerado o capítulo de nossa Carta Magna, que trata do meio ambiente ecologicamente equilibrado, como um dos mais importantes e avançados. É a opinião de José Afonso da Silva. Fazendo menção ao art. 225, salienta o fato de a Constituição ter proclamado o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos, “para lhe dar a natureza de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”.[3]
Assim sendo, cumprindo o mandamento constitucional prescrito no referido § 3º, do art. 225, o Congresso Nacional aprovou a Lei 9.605/98, Lei de Crimes Ambientais, doravante denominada também de LCA. Com suas normas de aplicação geral e de definição dos crimes ambientais, esta Lei representou a corporificação de, praticamente, todo o Direito Penal Ambiental brasileiro. Dentre suas inúmeras disposições, a mais inovadora e, por isso mesmo, a que causou maior divergência na doutrina e, até certo momento, na jurisprudência, pode ser destacada a norma contida no art. 3º, que inseriu em nosso sistema de controle punitivo, a responsabilidade penal da pessoa jurídica, doravante denominada também de RPPJ. O dispositivo tem a seguinte redação:
As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.
A promulgação da LCA haveria de suscitar intensos comentários e acesas divergências de parte da doutrina penal. Muitos penalistas levantaram críticas severas, chegando a se manifestar – mesmo diante da vigência de lei expressa - pela inconstitucionalidade da norma contida no art. 3º, que introduziu a capacidade penal da pessoa jurídica, no sistema jurídico brasileiro.
Não se pode esquecer que, desde a edição do Código Criminal de 1830, o Direito Penal brasileiro, respaldado pelo pensamento doutrinário predominante, havia se mantido firme ao lado da doutrina societas delinquere non potest. Por isso, era e continua sendo compreensível, a reação de muitos penalistas contrária à conveniência política e à validade técnicojurídica do art. 3º, da Lei 9.605/98. Em síntese, os argumentos alegam que a norma infringe os princípios constitucionais da culpabilidade e da pessoalidade da pena,[4] que é desnecessária e que constituiu uma “afronta à tradição” do direito brasileiro.[5]
Severo crítico da LCA, Luiz Regis Prado sustenta que a norma contida no art. 3º não respeitou os princípios da personalidade das penas, da culpabilidade e da intervenção mínima, além de ser um “exemplo claro de responsabilidade penal objetiva”.[6] Grande parcela da atual doutrina penal brasileira ainda se mostra refratária à doutrina societas delinquere non potest e, em consequência, não admite a validade da norma contida no art. 3º, da LCA.[7]
No entanto, boa parte da doutrina recepcionou positivamente a promulgação LCA, especialmente, no que concerne à inserção da regra da capacidade penal da pessoa jurídica, no sistema penal brasileiro. Em síntese, entendem esses autores que a existência de um comando normativo em nível constitucional é fonte de legitimidade jurídica suficiente para imprimir validade à norma infraconstitucional.
Nessa linha de pensamento, Lúcio Ronaldo Ribeiro mostrou-se receptivo à ideia de se punir criminalmente a pessoa jurídica, ressaltando que a inovadora regra contida no art. 3°, da LCA, “deve ser entendida à luz de uma responsabilidade social”.[8] Reconhecendo que o Direito Penal deve estar atento às mutações sociais, políticas, culturais e econômicas e, por isso, “adotar institutos e conceitos jurídicos pertinentes à realidade imperante”, Manoel Carpena Amorim também defende a validade da norma que introduziu a regra da RPPJ no ordenamento jurídico brasileiro. Considera que a LCA constitui um “marco fundamental para acabar, de vez, com qualquer discussão sobre a existência ou não de tal responsabilidade”.[9]
Apesar da ainda persistente divergência verificada na doutrina brasileira, cremos que a Lei 9.605/98 apoiou-se em norma constitucional para positivar, de forma expressa, a responsabilidade criminal da pessoa jurídica. Entendemos que a existência de um comando normativo em nível constitucional é fonte de legitimidade jurídica suficiente para imprimir validade a essa norma infraconstitucional. Num exercício de hermenêutica conforme a Constituição, chega-se à conclusão de que prevalece uma vontade constitucional originária, no sentido de se responsabilizar criminalmente os entes coletivos, como forma de se garantir um ambiente ecologicamente saudável e equilibrado. Dessa forma, ao aprovar a Lei dos Crimes Ambientais para instituir a capacidade penal da pessoa jurídica, o legislador brasileiro nada mais fez do que uma opção de Política Criminal, lastreada na diretiva já consagrada em nossa Carta Magna.
Além do mais, a superação da doutrina societas delinquere non potest manifesta-se como uma tendência contemporânea inevitável, por atender às recomendações contidas nas diretivas e atos normativos supranacionais, aos insistentes apelos do movimento ambientalista mundial e ao novo pensamento da Dogmática Penal.
Portanto, com a promulgação da CRFB/88 e da norma contida no § 3º, do art. 225, o sistema jurídico brasileiro, apesar da divergência doutrinária sobre a questão, foi armado de um sólido alicerce para suportar a positivação, em nível infraconstitucional, da RPPJ.[10] É o que veio a ser concretizado 10 anos após, com a promulgação da Lei 9.605/98.
Diversos foram os questionamentos levantados contra a LCA. O principal consiste em afirmar a falta de capacidade da pessoa jurídica para realizar a ação criminosa, com seu indispensável elemento subjetivo. Portanto, não estaria ela dotada do requisito da imputabilidade sobre o qual se assenta um dos elementos do crime, que é a culpabilidade penal. Realmente, a questão da imputação material para se atribuir responsabilidade penal a uma empresa, pela prática de um crime ambiental, tem sido uma questão geradora de sérias e calorosas divergências, seja na doutrina, seja na jurisprudência.
Sem adentrar na polêmica seara do conceito de ação, pode-se dizer que esta tem seu significado penal vinculado a um comportamento direcionado pela vontade humana. É evidente que esse modo de se comportar tem relevância jurídica, seja quando manifestado de forma comissiva ou de forma omissiva.
Assim sendo, se o crime é o resultado de um comportamento voluntário, para boa parte da doutrina penal, não poderia a pessoa jurídica ser autora de uma infração penal, já que lhe falta essa capacidade de agir voluntariamente, condição que seria própria das pessoas físicas.
No entanto, os que defendem a validade e conveniência político-jurídica de se incriminar o ente coletivo, salientam que prevalece hoje a teoria da realidade, segundo a qual a pessoa jurídica tem, sim, capacidade de agir e de atuar - por meio de seus órgãos diretivos - no espaço socioeconômico e cultural. E, dessa forma, praticar atividades lesivas ao ambiente, inclusive de natureza criminal. Porém, é preciso não esquecer que a pessoa jurídica só tem condições de agir por intermédio de seus funcionários e dirigentes, sempre que estes, por sua vez, atuarem de conformidade com a “vontade” de seus órgãos administrativos ou decisórios.
Dessa forma, mesmo aceitando-se a teoria da realidade e admitir que a pessoa jurídica tem capacidade de agir no meio econômico, social e cultural, ainda assim não ficaria solucionada – ao menos à luz da teoria do crime ainda vigente - a complexa questão relativa à imputação material para fins de se estabelecer o necessário juízo de censura no caso de crime ambiental praticado pelos entes coletivos.
2.A Omissão da LCA em Criar Regra Expressa de Imputação Material à Pessoa Jurídica
Aqui, deve ser ressaltado que a LCA foi, lamentavelmente, omissa e simplista, ao inserir uma lacônica regra da capacidade penal da pessoa jurídica e apenas indicar os tipos penais passíveis de serem por ela cometidos, com as respectivas penas em matéria de criminalidade ambiental. Assim, fica evidenciada a forma lacunosa e contraditória com que a lei em exame tratou de tão relevante matéria, pois deixou de editar um conjunto de normas complementares de apoio, de ajuste e de mudanças indispensáveis para que a nova proposta incriminadora dos entes coletivos possa cumprir - com o indispensável grau de efetividade - sua relevante função de defesa do ambiente em face da criminalidade empresarial.[11] Afinal, a norma contida no art. 3º, da LCA rompeu com uma prática secular fundada no axioma da societas delinquere non potest e todo sistema jurídicopenal estava (e ainda continua) construído e sistematizado para processar e julgar a pessoa física.
A doutrina favorável à validade da norma contida no art. 3º, da LCA, tem procurado construir um conceito de imputação material que seja compatível com a regra da capacidade penal da pessoa jurídica. Afinal, a lei apenas dispõe que a pessoa jurídica será responsabilizada penalmente, pela prática de um crime ambiental, “nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade”.
Embora o texto legal não seja claro nem explícito, parece evidente que o sentido da norma é de que a pessoa jurídica não pratica diretamente a infração penal contra o ambiente, mas sim por meio de uma pessoa física (seu dirigente ou funcionário em sentido geral), que tenha atuado no interesse e por conta de uma decisão societária. Ocorre aí uma hipótese de concurso necessário de agentes. Assim, a norma reconhece que a infração penal imputada ao ente coletivo estará sempre conectada a uma ação criminosa praticada por uma pessoa física atuando a serviço do interesse da pessoa jurídica.
Pela dicção literal da norma, a responsabilidade da pessoa jurídica em relação a um crime ambiental terá como elemento subjetivo necessário uma tomada de decisão, pelo colegiado ou órgão diretivo, para a prática do crime. Isto vale para os casos de uma decisão positiva. A ausência de decisão e das providências que se fizerem necessárias por parte do órgão administrador, a fim de evitar, quando possível e previsível, práticas criminosas contra o ambiente, equivale também a uma decisão para o crime.[12]
Por outro lado, embora a lei seja omissa, entendemos que o autor direto da conduta delituosa não precisa ser, necessariamente, dirigente ou funcionário da empresa, para que esta seja responsabilizada penalmente. Basta que o agente – pessoa física – tenha atuado em cumprimento de decisão do órgão dirigente e “no interesse ou benefício” da corporação.[13]
É preciso, portanto, encontrar um critério de imputação material e um conceito de culpabilidade que se ajustem à norma contida no art. 3º, da LCA e, assim, justificar a RPPJ pela prática de um crime ambiental. Nesse sentido, dois modelos de teorias foram formulados para fundamentar essa nova forma de responsabilidade penal.[14]
É o que será examinado a seguir, com a necessária brevidade.
3. Teorias sobre a Responsabilidade Criminal da Pessoa Jurídica
3.1 Teorias da Responsabilidade por Transferência ou da Identificação
Uma proposta teórica de solução do problema é conhecida como teoria da “responsabilidade por transferência” ou por “atribuição” ou, ainda, teoria da “identificação”. Carlos Gómez-Jara Diez registra que a denominada responsabilidade vicarial (vicarious liability) começou a ser forjada nos tribunais ingleses a partir do século XV, mas seu verdadeiro desenvolvimento ocorreu durante o século XX, com o enfrentamento do Caso Hudson, ocorrido, em 1909. Para o autor, foi aí que teve origem a responsabilidade vicarial, que passou a exigir a intenção na prática dos delitos corporativos.[15]
Para esta doutrina (vicarious liability), a imputação de um crime ao ente coletivo é juridicamente viável quando o autor da infração – sempre uma pessoa física – seja seu representante ou alguém integrante de seu órgão dirigente e sempre que tenha atuado por conta e no interesse da pessoa jurídica. Neste caso, a conduta criminosa praticada pela pessoa física deve ser vista como uma manifestação de vontade do próprio ente coletivo. Assim, se a pessoa jurídica não é dotada de vontade delitiva própria, pode ela, no entanto, atuar por meio de seus dirigentes, que se identificam e concretizam essa vontade ou mente diretiva empresarial ou dos demais entes coletivos.[16]
Como ressaltou Bernardo del Rosal, para aqueles que defendem esse marco teórico, “el título por el cual se produce dicha transferencia de responsabilidad de la persona física a la persona jurídica es la identificación de la voluntad del primero con la del segundo, de modo que la persona que actúa no es que actúe para la corporación, es que es la corporación.”[17]
A mesma informação é também prestada por Klaus Tiedemann, assinalando que “desde mediados del siglo XIX, por razones más bien pragmáticas y de política criminal”, a regra da capacidade penal dos entes corporativos foi introduzida no Direito inglês, “en primer lugar para los delitos imprudentes y de omisión” e, posteriormente, para os delitos econômicofinanceiros em geral. Para o autor em referência, este é um modelo viável para países com “ordenamientos jurídicos inspirados en pragmatismo penal que establece la plena responsabilidad penal de las agrupaciones sin gran consideración a los obstáculos dogmáticos”.[18]
Por isso, fala-se em responsabilidade por transferência, atribuição ou representação, pois o executor do crime (sempre uma pessoa física) deve ser alguém que, necessariamente, represente o ente coletivo; ou, ainda, em teoria da identificação, pois a conduta do representante ou do órgão dirigente identifica-se com a própria pessoa jurídica.[19] Assim, conforme escreve Fernando Quadros, o elemento subjetivo da infração penal transmite-se, por reflexo, à pessoa jurídica beneficiária da ação criminosa.[20]
Deve-se assinalar, no entanto, a dificuldade da teoria da atribuição por identificação, por transferência, representação ou empréstimo para sustentar sua adequada aplicação às grandes empresas, que funcionam mediante um sistema organizacional complexo e com diversos níveis de poder decisório.
Por isso, a doutrina tem se esforçado para apresentar um modelo teórico distinto, assentado na ideia de uma forma de responsabilidade própria da pessoa jurídica.
3.2 Responsabilidade Criminal Própria da Pessoa Jurídica
O outro modelo de imputação material propõe que a pessoa jurídica atue com responsabilidade criminal própria ou originária e não admite que o processo de transferência de culpabilidade penal seja juridicamente viável. Conforme leciona Bernardo del Rosal, os adeptos deste modelo de responsabilidade penal partem do pressuposto fático de que as empresas se constituem em uma realidade em si diversa da dos indivíduos, “con sus propios y distintivos objetivos, su propia y distintiva cultura y su propia y distintiva personalidad, cultura y personalidad que son únicas y nacen de un número identificable de características”.[21] Assim, o juízo de censura em que consiste a culpabilidade, assenta-se na omissão ou deficiência da pessoa jurídica em adotar as medidas necessárias para evitar a prática da ação delituosa.
A imputabilidade ocorreria por meio de um conceito funcional ou puramente normativo, diferente, portanto, do conceito de ação penal como ato de vontade imputável ao indivíduo e a culpabilidade assume uma dimensão social, assentada na ocorrência de uma atividade empresarial deficiente, marcada pela omissão em evitar o cometimento da infração penal.
Escudado em doutrina espanhola, Bruno Tanus Job e Meira entende que esse modelo propõe a adoção de uma “culpabilidade de organização”, pela qual a pessoa jurídica passa responder por fatos delituosos praticados pela pessoa física, mas “com base na inobservância das medidas de cuidado necessárias para garantir uma correta e legítima atividade empresarial”.[22]
Klaus Tiedemann defende uma proposta semelhante de responsabilidade penal para o que ele denomina “el derecho de las ‘Ordnungswidrigkeiten’ alemanas”. Propõe este autor um modelo de culpabilidade que “partiría de un principio de falta (y de culpa) de organización como legitimación de la responsabilidad de la agrupación”.[23]
Jesús María Silva Sánchez ressalta que as construções de uma teoria da culpabilidade por defeito de organização atribuem a culpa pela omissão de um órgão da empresa à própria pessoa jurídica. Assinala que
resulta más que dudoso si la culpabilidad por defecto de organización es expresión de una culpabilidad en sentido estricto de la persona jurídica o, por el contrario, una regla de transferencia de responsabilidad a la persona jurídica por el hecho culpable de las personas físicas que, en el seno de la misma, infringen los deberes de organización y vigilancia que recaen sobre ellos.[24]
Desse modo, percebe-se que o autor espanhol referido destaca a dificuldade em se criar uma culpabilidade própria da pessoa jurídica, pois mais uma vez aqui (defeito de organização) vai se buscar na conduta de outrem a censura penal para poder ser atribuída à empresa. Para Luiz Regis Prado, isso significaria uma “culpabilidade em fato alheio – culpabilidade presumida - porque a responsabilidade da pessoa jurídica estaria baseada na imputação do fato culpável de seu órgão ou representante”.[25]
3.3 O Modelo de Responsabilidade Penal Adotado pelo Art. 3º, da LCA
Quanto à LCA, é preciso reconhecer que a redação dada à norma contida no seu art. 3º, peca por falta de clareza e objetividade. Mas, numa interpretação segundo os termos da lei, é possível dizer que o critério ali adotado corresponde ao modelo de responsabilidade penal por atribuição ou de identificação de responsabilidade, pois a lei atribui à pessoa jurídica a responsabilidade criminal decorrente da ação criminosa causada pela pessoa física. Na doutrina brasileira, a corrente largamente majoritária defende esta posição para afirmar que o modelo aqui praticado, por força do art. 3º da LCA, é o da dupla imputação ou dupla incriminação.
Segundo Luis Regis Prado, a nossa lei foi influenciada pelo Código Penal francês, que adota o modelo da capacidade penal do ente coletivo por empréstimo ou pelo ricochete, decorrente da responsabilidade penal da pessoa física que tenha atuado em seu nome e por sua conta.[26] Na França, escreve Jean Pradel, o código de seu país fez uma opção pela teoria da dupla incriminação, denominada de “responsabilidade por reflexo ou ricochete”. Para o direito francês, esclarece o autor, somente a pessoa física pode atuar com dolo ou culpa, que é o elemento subjetivo de uma infração, segundo a clássica teoria do delito, entendimento que ali prevalece após a Corte de Cassação ter decidido que a pessoa jurídica tem sua responsabilidade penal vinculada à de seus dirigentes ou de seus órgãos de administração, em relação aos quais (pessoas físicas) é preciso demonstrar que atuaram com o elemento subjetivo do crime.[27]
Assim, a norma brasileira em referência não admite que a pessoa jurídica possa atuar com responsabilidade penal própria no cometimento de uma infração penal ambiental. Sua responsabilidade, em face de um crime ambiental, pressupõe que este seja originariamente imputável à pessoa física atuando na representação, por conta ou no interesse do ente corporativo.[28]
Examinando esta questão, Carlos Alberto de Salles escreve que a opção expressa no caput do art. 3º, da LCA, “não foi a mais condizente com as expectativas”, pois ao condicionar a responsabilidade penal do ente corporativo “à existência de uma decisão dos representantes legais ou contratuais”, manteve a mesma dificuldade anterior, para se identificar e promover a ação penal contra os dirigentes ou representantes responsáveis pela decisão criminosa contra o ambiente. O autor assinala ainda que, ao exigir que a responsabilização da pessoa jurídica fique sujeita à verificação de uma decisão de seus representantes, na prática judiciária, a norma contida no art. 3º, da LCA, “impõe a necessidade de seus responsáveis figurarem na condição de partícipes ou co-autores, uma vez que, em graus variáveis, deram causa ao delito”.[29]
Ao abordar esta questão, Lídia Maria Lopes Ribas destaca “que a responsabilidade penal da pessoa jurídica não é exclusiva e nem em detrimento de seus dirigentes.” Para a autora, trata-se de responsabilidade cumulativa, sendo os sócios, administradores e agentes da pessoa jurídica também responsabilizados por seus atos de gestão, “num sistema de dupla imputação”.[30]
Édis Milaré e José Paulo da Costa Júnior também se posicionam no sentido de que não é possível entender a questão da responsabilidade criminal do ente corporativo à luz dos “cânones tradicionais”, havendo, portanto, necessidade de “reformulação do conceito”. Por isso, escrevem que a “culpabilidade da pessoa jurídica não está adstrita à vontade, enquanto laço psicológico entre a conduta e o agente, ou à sua consciência da ilicitude, mas à reprovabilidade de sua conduta”.[31]
Dessa forma, a doutrina brasileira se posiciona no sentido de que o art. 3º da LCA adotou a regra da dupla imputação para que se possa responsabilizar a pessoa jurídica pela prática de um crime ambiental. Em consequência, os seguintes requisitos são indispensáveis para se imputar responsabilidade penal ao ente corporativo: primeiro, que “a violação da norma ocorra por deliberação havida na esfera de poder legitimada a representar a pessoa jurídica e orientar seus caminhos”. Tal deliberação pode ocorrer de forma voluntária (dolosa) como, também, de forma culposa.
O segundo requisito consiste na constatação da vinculação existente entre a conduta do executor material do fato lesivo e a deliberação institucional. Aqui, a lei estabelece a necessidade de um comportamento enquadrado no espaço das decisões, das deliberações, ou da política e das atividades assumidas pela empresa em face das normas de proteção de proteção ambiental. Sempre que a conduta individual for praticada no âmbito do poder decisório dos órgãos de deliberação ou de administração do ente corporativo ou se mostrar perfeitamente enquadrado ao seu modo de atuação em relação à questão ambiental, pode-se dizer que estamos diante de uma infração penal também imputável à pessoa jurídica.
Como terceiro requisito legal está o elemento normativo de ter sido a infração cometida no interesse ou benefício do ente corporativo. Assim, para a lei brasileira, não basta a constatação apenas dos dois requisitos acima. É preciso, também, que a infração contra o ambiente seja praticada no interesse da pessoa jurídica para que esta venha a ser responsabilizada criminalmente. Se os dirigentes de uma empresa tomam uma decisão de agredir o ambiente, com o objetivo pessoal de auferir vantagens econômicas, em detrimento dos interesses da empresa, é evidente que esta não poderá ser acusada da prática de crime contra o ambiente, nos termos do art. 3º, da LCA.
Como acabamos de examinar, a doutrina brasileira convergiu para entender que, apesar da ambiguidade e da falta de clareza redacional do seu art. 3º, a LCA adotou a regra da dupla imputação material a fim de se estabelecer a responsabilidade da pessoa jurídica, no caso de crime contra o ambiente.
A seguir, examinaremos a hermenêutica judicial sobre a matéria, especialmente, os termos da decisão do STF que, ao contrário do que vinha sendo decidido, reconheceu a possibilidade de responsabilidade própria ou isolada do ente jurídico, como autor de crime ambiental.