O direito à saúde e sua judicialização

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O artigo apresenta o direito constitucional à saúde rotineiramente violado como corolário da situação orçamentária pública e a judicialização como alternativa para garantir sua efetividade.

Resumo: O artigo apresenta o direito constitucional à saúde rotineiramente violado como corolário da situação orçamentária pública e a judicialização como alternativa para garantir sua efetividade. Retrata ainda a respeito do financiamento do Sistema Único de Saúde e sua descentralização, a qual redistribui poderes e responsabilidades aos três níveis de governo, analisando também, e com maior ênfase, a assistência no âmbito municipal.

Palavras-chave: Direito à saúde. Sistema Único de Saúde. Financiamento. Judicialização. Assistência Municipal.  

Sumário: Notas introdutórias; I – O direito à saúde; II – O financiamento da saúde pública; III – A judicialização da saúde; IV – A assistência municipal; Notas conclusivas.

NOTAS INTRODUTÓRIAS

              A Constituição Federal de 1988 preceitua em seu artigo 6º que são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, além da assistência aos desamparados. Estes direitos, em consequência da necessidade de disponibilidade financeira do Estado para sua efetivação, estão sujeitos à cláusula (ou princípio implícito) que se denomina como “reserva do financeiramente possível”, isto é, o Estado deve garantir a concretização destes direitos, mas na medida do realizável conforme a existência de recursos públicos disponíveis. Desta maneira, o não cumprimento, ou a parcial efetivação, apenas ficará justificado se for possível demonstrar a real impossibilidade de sua execução pelo Poder Público.

              O Brasil, por ser considerado um Estado Democrático de Direito, deve garantir o respeito aos direitos humanos e as garantias fundamentais baseadas no que chamamos de “Princípio da Dignidade Humana”. Tal princípio está previsto no artigo 1°, inciso III da Constituição Federal e é considerado o núcleo exegético norteador de todo nosso ordenamento jurídico. Acerca de tais premissas, importa destacar que, apesar de não haver vantagem expressa na fixação das cláusulas pétreas (CF, art. 60, §4º), entende-se a respeito da prevalência da dignidade da pessoa humana em caso de colisão de direitos fundamentais e eventual juízo de ponderação. No que se refere à exigibilidade do mínimo imprescindível de efetivação dos mesmos, discute-se muito a respeito do direito fundamental à saúde, considerado núcleo essencial que deve ser concretizado e bem de maior valor ao ser humano, tema central deste artigo, o qual a Constituição assegura expressamente como direito de todos e dever do Estado.

              A crise no sistema de saúde pública no Brasil atinge os mais diversos e importantes setores, quais sejam: estrutura física, escassez de recursos humanos e a falta de materiais, equipamentos e medicamentos. Todos estes fatores são resultado da carência de reais investimentos destinados a sua melhoria, o que acaba por agravar ainda mais o sucateamento, a superlotação e as consequentes precariedades no atendimento em geral. Com isso, nos casos mais complexos e urgentes, há necessidade da questão ser levada ao Judiciário para que possam ser utilizados todos os mecanismos capazes de dar efetividade, como, por exemplo, os institutos da antecipação da tutela, em outros, a dificuldade em arcar com os empecilhos do acesso à justiça coloca-os em situação de vulnerabilidade e aceitação do quadro caótico das unidades hospitalares nas quais há longas filas para os atendimentos, superlotação, falta de medicamentos e de suporte necessário, infecções, desvio de materiais, entre outros, que resultam em corredores lotados e indivíduos padecendo da forma mais horrenda e humilhante.

I - O DIREITO À SAÚDE

             

              A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, determina a saúde como um dos direitos sociais, sendo que, em disposições mais específicas nos artigos 196 e seguintes, assegura como um direito de todos e dever do Estado que deve ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Além do mais, por ser de relevância pública tais ações e serviços, cabe ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle. Nesse sentido, importante relatar a respeito da Lei Orgânica de Saúde (LOS), Lei nº 8.080 de 19/09/1990, que regulamentou os artigos 196 a 200 da CF/8, alterados pelas Leis nº 9.832/99, nº 10.424/2002 e nº 11.108/2005.

              A LOS é clara ao determinar, no seu artigo 2º, a saúde como direito fundamental em que o Estado deve prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, garantindo assim o direito à saúde através da criação e efetivação de políticas econômicas e sociais que visem à redução de doenças e de outros agravos além de assegurar o acesso universal e igualitário a tais serviços. Desta maneira, entende-se que o mesmo é responsável pelo fornecimento gratuito de medicamentos, com base no que preceitua as previsões constitucionais (artigos 196 a 198) e a referida lei, aos que não possam arcar com as despesas de tratamento.

A LOS criou o CNS, sucedido pelos conselhos estaduais e municipais com a função primordial de elaborar a Política, o Plano e o Fundo Nacional de Saúde e seus consentâneos, estaduais e municipais. Ao Poder Público, determinou regras básicas dos serviços de saúde, sua fiscalização e controle, tanto em nível federal, como estadual e municipal e do Distrito Federal, sob controle da comunidade interessada, por meio de seus representantes. Isso significou a coordenação entre o controle governamental e as entidades privadas, integradas no sistema único, e não mais com a divisão anterior de dois ministérios, o da saúde e o da previdência social (INAMPS).[1]

              Prevê o artigo 198 da Carta Maior que as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único organizado com base na descentralização, com direção única em cada esfera de governo; no atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; e na participação da comunidade. Além do mais, traz ainda que o Sistema Único de Saúde será financiado com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sem retirar outras fontes de custeio. Desta maneira, percebe-se que os pilares desse direito estão baseados nos princípios da Universalidade, Equidade e Integralidade da prestação a saúde, estes princípios, além de outros, são encontrados no artigo 7º da Lei 8.8080/1990. Em rápida síntese, pelo primeiro, entende-se que o sistema deve estar acessível à população em geral, haja vista ser financiado através do dinheiro público. O segundo retrata a ideia de, como bem sustentara Aristóteles, “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”, ou seja, não se refere a uma igualdade absoluta, assim, deve disponibilizar os recursos e serviços da forma mais justa levando em consideração, para tanto, as necessidades de cada um. Já o terceiro diz respeito ao conjunto de ações e serviços desenvolvidos para promover os devidos cuidados alcançando desde o nível preventivo até o curativo, em qualquer escala de complexidade. Vale destacar ainda a participação social como direito e dever da sociedade de partilhar das gestões públicas em geral e da saúde pública em particular, bem como a descentralização, o qual se apresenta pela transferência de responsabilidades de gestão para os municípios definindo atribuições e competências específicas ao mesmo, à União, ao estados e ao Distrito Federal. O princípio da Universalidade não está expresso na Constituição, mas é decorrência clara do que dispõe o artigo 196 que possibilita o ingresso de qualquer pessoa no Sistema Único de Saúde. O mesmo fora implantado diante da influência do movimento sanitarista na Assembleia Constituinte de 1987, sendo que, entre 17 e 21 de março de 1986, em Brasília, se realizara a VIII Conferência Nacional de Saúde que visou, dentre outros temas, a discussão acerca da reformulação do sistema nacional de saúde pública buscando, sobretudo, sua máxima abrangência.

              Nesse mesmo sentido, sustenta Bernardino que

A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício, por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução dos riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde individual e coletiva (art. 2o e parágrafo 1o da Lei n. 8.080/1990 e art. 196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988). A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana (art. 34, VII, alínea“b”, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).[2]

              A situação orçamentária pública vem resultando numa violação direta a tal direito constitucional, em especial no que se refere à integralidade do atendimento. Dos mais de 200 milhões de residentes no Brasil, segundo dados do Censo 2013 do IBGE, divulgado dia 02/06/2015, 71,2% (142,8 milhões) consultaram o médico nos últimos doze meses anteriores à data de referência da Pesquisa Nacional de Saúde[3] 2013. No que diz respeito aos serviços preventivos, do total, 53,4% dos domicílios estavam cadastrados em Unidades de Saúde da Família. Dentre os que se registraram há um ano ou mais, 17,7% nunca receberam visita de agente comunitário de saúde ou de um membro de equipe de saúde da família. No que diz respeito ao saneamento, apenas 60,9% dos domicílios (39,7 milhões) possuem banheiro ou sanitário e esgotamento sanitário por rede geral de esgoto ou pluvial. Até mesmo a situação financeira reflete no acesso aos serviços de saúde no país, pois, enquanto que os 10% mais ricos da população detêm 46,1% da renda familiar per capita, os 20% mais pobres detêm apenas 2,9% da renda, sendo que a mencionada pesquisa retrata que 10,6%, 15,5 milhões, da população brasileira adulta já se sentiram discriminadas na rede de saúde, seja ela pública ou privada, 53,9% em função da falta de dinheiro e 52,5% por consequência da classe social. Como bem relata Viviane Forrester, “o desemprego invade hoje todos os níveis de todas as classes sociais, acarretando miséria, insegurança, sentimento de vergonha em razão essencialmente dos descaminhos de uma sociedade que o considera uma exceção à regra geral estabelecida para sempre”[4], milhões de destinos são destruídos e aniquilados pelo que denomina como o mais sagrado tabu: o trabalho.

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II - O FINANCIAMENTO DA SAÚDE PÚBLICA

              O Projeto de Lei Complementar n. 01/2003, regulamentando a Emenda Constitucional n. 29, aprovada em 2000, qualifica, na esfera do SUS, as políticas voltadas à saúde como de Estado e não de governo, melhorando, ainda, os mecanismos de controle governamental e social no que se refere à aplicação dos recursos do sistema. Vinculando os recursos nas três esferas federativas, tal emenda modificou o artigo 198 da Constituição Federal certificando os recursos mínimos necessários aos financiamentos destes serviços. Com isso, determinou-se que o gasto anual mínimo de saúde seja fixado em 10% das receitas correntes da União, continuando os Estados e os municípios obrigados a destinar o mínimo de 12% e 15%, respectivamente, dos seus orçamentos para a saúde.

              Em 16 de janeiro de 2012 foi editada, após nove anos de tramitação, a Lei Complementar nº 141 que “regulamenta o § 3o do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis no 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências”. No seu artigo 6º prevê que “os Estados e o Distrito Federal aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, no mínimo, 12% (doze por cento) da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam o art. 157, a alínea “a” do inciso I e o inciso II do caput do art. 159, todos da Constituição Federal, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios”. Já os Municípios e o Distrito Federal aplicarão anualmente, no mínimo, 15% (quinze por cento) da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam o art. 158 e a alínea “b” do inciso I do caput e o § 3º do art. 159, todos da Constituição Federal (art. 7º), enquanto que o Distrito Federal aplicará, anualmente, no mínimo, 12% (doze por cento) do produto da arrecadação direta dos impostos que não possam ser segregados em base estadual e em base municipal (art. 8º), sendo que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão observar o disposto nas respectivas Constituições ou Leis Orgânicas sempre que os percentuais nelas estabelecidos forem superiores aos fixados nesta lei para aplicação em ações e serviços públicos de saúde (art. 11). Portanto, em rápida síntese, a União deverá disponibilizar do valor aplicado no ano anterior somando a variação nominal do PIB do ano anterior, vale ressaltar que, caso o PIB venha a ter variação negativa, não se poderá reduzir o seu valor. Os Estados aplicarão 12% e os Municípios 15% da receita de sua competência, enquanto que o Distrito Federal aplicará 12% e 15% das receitas de competência estadual e municipal, respectivamente. Importante a ressalva que esses percentuais mínimos podem ser alterados, logo, de acordo com a Constituição no seu artigo 198 §3º, a Lei complementar será reavaliada pelo menos a cada cinco anos.

              Outra conquista da Emenda nº 141 fora detalhar quais despesas são consideradas como gastos com a saúde, como bem preceitua o seu artigo 2º: Para fins de apuração da aplicação dos recursos mínimos estabelecidos nesta Lei Complementar, considerar-se-ão como despesas com ações e serviços públicos de saúde aquelas voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde que atendam, simultaneamente, aos princípios estatuídos no art. 7º da Lei nº 8.080 (...)”. Desta forma, determina o artigo 3º que serão consideradas despesas com ações e serviços públicos de saúde as referentes a: I - vigilância em saúde, incluindo a epidemiológica e a sanitária; II - atenção integral e universal à saúde em todos os níveis de complexidade, incluindo assistência terapêutica e recuperação de deficiências nutricionais; III - capacitação do pessoal de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS); IV - desenvolvimento científico e tecnológico e controle de qualidade promovidos por instituições do SUS; V - produção, aquisição e distribuição de insumos específicos dos serviços de saúde do SUS, tais como: imunobiológicos, sangue e hemoderivados, medicamentos e equipamentos médico-odontológicos; VI - saneamento básico de domicílios ou de pequenas comunidades, desde que seja aprovado pelo Conselho de Saúde do ente da Federação financiador da ação e esteja de acordo com as diretrizes das demais determinações previstas nesta Lei Complementar; VII - saneamento básico dos distritos sanitários especiais indígenas e de comunidades remanescentes de quilombos; VIII - manejo ambiental vinculado diretamente ao controle de vetores de doenças; IX - investimento na rede física do SUS, incluindo a execução de obras de recuperação, reforma, ampliação e construção de estabelecimentos públicos de saúde; X - remuneração do pessoal ativo da área de saúde em atividade nas ações de que trata este artigo, incluindo os encargos sociais; XI - ações de apoio administrativo realizadas pelas instituições públicas do SUS e imprescindíveis à execução das ações e serviços públicos de saúde; e XII - gestão do sistema público de saúde e operação de unidades prestadoras de serviços públicos de saúde. Além disso, apresenta ainda, no seu artigo 4º, quais não serão consideradas como tais despesas.     

III - A JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE

              A fragilidade do sistema público de saúde em consonância com a insuficiência no fornecimento de medicamentos gratuitos resultou no que se denomina “judicialização da saúde”. Cresce em demasia a procura pelo Judiciário para dar efetividade a este direito fundamental assegurado pela Constituição em contrapartida à reiterada e contínua omissão do Estado na sua prestação. Nesse sentido, sustenta Ballerini que

Surge destas constatações a necessidade de se colocar à disposição da garantia do direito à saúde todos os mecanismos assecuratórios desta efetividade, incluindo-se as chamadas tutelas de urgência e, com maior razão o próprio instrumento da antecipação de tutela, devendo-se recomendar sua disseminação, em detrimento de outras formas de tutela emergencial, ao menos por um aspecto de economia processual (já que todas já visariam a uma celeridade).[5]

              Rogério Gesta Leal, Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Professor universitário, autor e organizador de diversos livros jurídicos, em seu livro intitulado “Condições e possibilidades eficaciais dos direitos fundamentais sociais[6]”, apresenta as principais dificuldades e as possíveis melhoras que o Judiciário se pôs a buscar por meio de medidas sociais compensatórias ou até mesmo satisfativas para certas demandas, sejam elas individuais ou coletivas, citando até mesmo casos reais, no intuito de assegurar ao máximo o entendido como mínimo existencial que configura e dá efetividade ao princípio da dignidade humana. Sabe-se que efetivação dos direitos fundamentais e sociais exige disponibilidade financeira e isso tem se tornado o argumento de defesa do Estado para se omitir da responsabilidade, no entanto, é certo que os mesmos estarão sujeitos a um princípio implícito denominado como “reserva do possível”, o qual assegura que tais direitos constitucionais só podem ser realizados na medida em que isso é possível. Segundo ele,

É claro que o simples argumento da escassez de recursos dos cofres públicos não pode autorizar o esvaziamento de direitos fundamentais, muito menos os relacionados à saúde, eis que diretamente impactantes em face da vida humana e sua dignidade mínima, e por isto estarão sujeitos ao controle jurisdicional para fins de se aferir a razoabilidade dos comportamentos institucionais neste sentido, devendo inclusive ser aprimorados os parâmetros, variáveis, fundamentos e a própria dessimetria concretizante do direito em xeque.[7]

              Em análise a descentralização de competências, há diversas dúvidas quanto quem deve figurar no polo passivo na prestação do serviço público de saúde. O artigo 23, inciso II, da Constituição Federal determina como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, cuidar da saúde e assistência pública, além da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência. Desta maneira, a responsabilidade pela assistência integral à saúde está regulamentada de forma tríplice por interessarem simultaneamente a todas as entidades estatais. Assim, o SUS é formado por várias instituições dos três níveis de governo e pelo setor privado, que dele participa por meio de contratos e convênios, para a realização de suas finalidades públicas. Em decorrência, um serviço privado, como um hospital conveniado, deve atuar como se fosse um hospital público[8].

              A responsabilidade solidária dos entes federados também é tema sedimentado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal:

ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERATIVOS. 1. O funcionamento do Sistema Único de Saúde. SUS é de responsabilidade solidária da união, estados-membros e municípios, de modo que qualquer destas entidades tem legitimidade ad causam para figurar no polo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros. Precedentes do STJ. 2. No julgamento do RMS 38.746/RO, em 24.4.2013, pela primeira seção do STJ, foi reconhecida a legitimidade passiva do secretário de estado de saúde de Rondônia para figurar como autoridade coatora em mandado de segurança impetrado em prol do fornecimento de medicamentos. 3. Agravo regimental não provido. (STJ; AgRg-RMS 42.313; Proc. 2013/0123509-3; RO; Segunda Turma; Rel. Min. Herman Benjamin; DJE 17/09/2013; Pág. 3299)

ADMINISTRATIVO. DIREITO À SAÚDE. DEVER DO ESTADO. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. SOLIDARIEDADEENTRE OS ENTES FEDERATIVOS. EXISTÊNCIA. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. DISCUSSÃO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DEVOLUÇÃO DOS AUTOS À ORIGEM. ARTIGO 543-B DO CPC E ART. 328 DO RISTF. 1. Incumbe ao Estado, em toda as suas esferas, prestar assistência à saúde da população, nos termos do art. 196 da Constituição Federal, configurando essa obrigação, consoante entendimento pacificado nesta Corte, responsabilidade solidária entre os entes da Federação. 2. O Supremo Tribunal reconheceu a existência da repercussão geral das questões relativas à legitimidade ativa do Ministério Público e ao fornecimento de medicamentos de alto custo. Aplicação do art. 543-B do CPC. 3. Agravo regimental não provido na parte relativa à ilegitimidade passiva da União e prejudicado no tocante às questões relativas à ilegitimidade ativa do Ministério Público e ao fornecimento de medicamentos de alto custo. (STF - AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO RE 755485 SC; Primeira Turma; Relator Min. Dias Toffoli; DJe-199 DIVULG 10-10-2014 PUBLIC 13-10-2014)

              Posto isso, é certo que, diante de tamanha omissão, é de suma importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Ana Paula de Barcelos, em seu livro intitulado “A eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais[9]”, sustenta que a prestação concedida por um magistrado a determinado indivíduo deveria poder ser concedida também a todas as demais pessoas na mesma situação, pois todos têm direito ao mínimo existencial e não somente aqueles que recorrem ao Judiciário para sua efetivação, logo, partindo desse pressuposto, toda sociedade está comprometida a custear e assegurar a dignidade a todos os indivíduos que necessitem, ao menos em patamares mínimos, deve-se assegurar o núcleo exegético de ordenamento jurídico: a dignidade da pessoa humana. Além do mais, devemos ter atenção que estamos falando de direitos sociais, os quais só estão sendo efetivados de forma individual na medida em que conseguem uma sentença favorável através do Judiciário ficando necessitado ainda o amparo da assistência federal, estadual e municipal através de políticas públicas e investimentos reais. Fazendo uma analogia às ideias de Anthony Giddens, sociólogo britânico considerado por alguns como o mais importante filósofo social inglês contemporâneo, pode-se afirmar que há “defeito de projeto” e “falha do operador”[10].

IV - A ASSISTÊNCIA MUNICIPAL

              Como já supracitado nos tópicos anteriores, um dos princípios que norteia o Sistema Único de Saúde é a descentralização. Este, em consonância com outros princípios organizativos, redistribui poder e responsabilidade aos três níveis de governo no intuito de assegurar uma prestação de serviços de maior qualidade e eficiência além de ampliar a possibilidade de fiscalização e controle pela sociedade. De acordo com que se denomina “comando único”, cada ente estatal é autônomo e soberano em suas atividades, desde que haja respeito aos princípios gerais, determinações legais e a participação da sociedade. Com isso, a autoridade sanitária é representada na União pelo Ministro da Saúde, nos Estados pelos secretários estaduais de saúde, e nos Municípios pelos secretários municipais de saúde.

              O administrador municipal, no intuito de assegurar tal direito a seus munícipes, deve assumir a responsabilidade pelos resultados e visar sempre à redução dos riscos assegurando a qualidade na oferta de ações e serviços que promovam e protejam a saúde dos indivíduos, bem como que previnam as doenças e os agravos além da recuperação dos enfermos. Desta maneira, para que sejam cumpridos os pilares básicos de atenção à saúde, exige-se que sejam assumidas as atribuições de gestão, incluindo: a execução dos serviços públicos de responsabilidade municipal; a destinação de recursos do orçamento municipal e utilização do conjunto de recursos da saúde, com base em prioridades definidas no Plano Municipal de Saúde; o planejamento, organização, coordenação, regulação, controle, avaliação e auditoria das ações e dos serviços de saúde sob gestão municipal; e a participação no processo de integração ao SUS, em âmbito regional e estadual, para assegurar a seus cidadãos o acesso a serviços de maior complexidade, não disponíveis no município[11], não obstante, na realidade, “além da fragilidade da integração de políticas públicas, a descontinuidade administrativa verificada na sucessão de governos e administradores, na ausência de um planejamento a longo prazo, nos diversos níveis e esferas, colabora para o abandono de programas/projetos”[12]

              Nesse contexto, importa mencionar, a título de exemplo, as dificuldades enfrentadas pelos indivíduos nas gestões municipais do interior baiano. Em um projeto de pesquisa efetuado em 2015 pelos estudantes do colegiado de Direito da UniAges, que visava averiguar a eficácia das políticas públicas quanto à assistência social, tendo como campo de observação a assistência municipal promovida na região, observou-se o grau de insatisfação da população acerca dos serviços prestados, pois, segundo eles, faltam recursos, atendimentos específicos, medicamentos, infraestrutura, entre outros. No entanto, como argumento para algumas ocasiões, especificamente em Paripiranga, o diretor e secretário de saúde relata que o município é de gestão plena de atenção básica e, por isso, não provém de recursos para procedimentos complexos, sendo estes encaminhados a outras localidades[13].

              Nesta perspectiva, vale ressaltar que tais medidas realmente não são estruturadas apenas na escala municipal, pois há no território brasileiro milhares de pequenas cidades que não possuem as mínimas condições de oferecerem serviços de média e alta complexidade. Com isso, alguns municípios “referências” que recebem mais recursos e maiores demandas acabam por abarcar e garantir o atendimento da sua população e da vizinha, acontecendo até mesmo, em áreas de divisas estaduais como no campo de pesquisa acima citado, “intercâmbio” entre estados diferentes. Tais estratégias se apresentam como melhor solução e medida emergencial em contrapartida à falta de recursos e outros tantas precariedades já mencionadas.

NOTAS CONCLUSIVAS

              A saúde, sendo direito de todos garantido por meio de políticas sociais e econômicas baseadas em princípios norteadores, é dever do Estado, o qual deve assegurar o acesso igualitário e universal às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Em direção oposta, apesar de ter sido triplicado os gastos com a saúde nos últimos dez anos, sua qualidade e integralidade é altamente discutível, logo, os usuários do SUS se deparam com a falta de leitos e equipamentos, superlotação, longas filas de espera, pessoas sendo atendidas nos corredores devido à falta de infraestrutura, falta de medicamentos, e outras tantas mazelas que tem se tornado característica do sistema.

              A descentralização de competências por meio de uma rede regionalizada e hierarquizada como princípio do Sistema Único de Saúde é de suma importância na medida em que distribui os serviços de acordo com a proximidade ao indivíduo buscando amparar suas necessidades. Desta maneira, para melhoria do quadro desafiador em que se encontra a saúde pública, mostra-se necessário a participação da comunidade na política sanitária, bem como maior esforço do Poder Público, pois, em contrapartida, os gestores municipais, na grande maioria dos casos, escolhem seus secretários não por critérios técnicos como competência e comprometimento, mas sim por questões políticas, se utilizando de importantíssimos cargos como meio de negociação. A fiscalização pelo Estado e pela própria sociedade é de extrema necessidade, sendo possível que os próprios usuários indiquem e denunciem problemas de acesso ou restrições ao seu direito diretamente na ouvidoria do SUS (Disque Saúde – 136), o qual fora criado pela Secretária de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) e que, segundo o Ministério da Saúde, foram registradas, só em 2013, mais de 17 mil reclamações acerca dos mais diversos quadros englobados pela integralidade do sistema. Além do mais, necessita-se de maiores recursos provindos da União, melhor capacitação dos profissionais, políticas de Estado a curto e longo prazo, e alternativas emergenciais para mudança deste panorama.

              Em um país com mais de 200 milhões de habitantes a efetivação dos direitos sociais exige ampla disponibilidade financeira do Estado. Com isso, vem sendo utilizada a chamada “reserva do financeiramente possível”, tida como cláusula ou princípio implícito, como argumento para a omissão do Poder Público sob a alegação da falta de recursos suficientes. Não obstante, essa impossibilidade econômica deve ser demonstrada pelo fato de ir ao encontro do mínimo existencial, o qual pode (e deve) ser exigido diante do Judiciário por força constitucional. O processo denominado como “Judicialização da saúde” tem se apresentado como uma alternativa eficaz na medida em que atua como controlador da atividade administrativa. Na maioria das vezes, buscam-se remédios e/ou tratamentos não oferecidos pelo SUS em relevante urgência, sendo determinada a tutela antecipada e a cominação de multa diária como meio coercitivo de cumprimento.

REFERÊNCIAS

BALLERINI, Júlio César, Silva. Direito à Saúde, Aspectos Práticos e Doutrinários no Direito Público e no Direito Privado. São Paulo: Habermann Editora, 2009.

BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. 2. ed. Renovar.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Departamento de Apoio à Descentralização. O SUS no seu município : garantindo saúde para todos / Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva, Departamento de Apoio à Descentralização. 2. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009.

COSTA, Alexandre Bernardino. DELDUQUE, Maria Célia. [et al]. O Direito achado na rua: Introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: CEAD/UnB, 2009.

FORRESTER, Viviane. O horror econômico. Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

LEAL, Rogério Gesta. Condições e possibilidades eficaciais dos direitos fundamentais sociais: os desafios do poder judiciário no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

OLIVEIRA, James Eduardo. Constituição federal anotada e comentada: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2013.

Projeto Integrador. Assistência municipal nos municípios da região. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – AGES. Paripiranga/BA, 2015.

SIMÕES, Carlos. Curso de direito do serviço social. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2014.


[1] SIMÕES, Carlos. Curso de direito do serviço social. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2014. p. 130.

[2] COSTA, Alexandre Bernardino. DELDUQUE, Maria Célia. [et al]. O Direito achado na rua: Introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: CEAD/UnB, 2009. p. 196.

[3] http://www.pns.icict.fiocruz.br/ (Último acesso em 08/11/2015).

[4] FORRESTER, Viviane. O horror econômico. Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 125.

[5] BALLERINI, Júlio César, Silva. Direito à Saúde, Aspectos Práticos e Doutrinários no Direito Público e no Direito Privado. São Paulo: Habermann Editora, 2009. p. 10.

[6] LEAL, Rogério Gesta. Condições e possibilidades eficaciais dos direitos fundamentais sociais: os desafios do poder judiciário no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

[7] LEAL, Rogério Gesta. Condições e possibilidades eficaciais dos direitos fundamentais sociais: os desafios do poder judiciário no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 158.

[8] SIMÕES, Carlos. Curso de direito do serviço social. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2014. p. 136.

[9] BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. 2. ed. Renovar.

[10] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.

[11] Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Departamento de Apoio à Descentralização. O SUS no seu município : garantindo saúde para todos / Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva, Departamento de Apoio à Descentralização. 2. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2009.

[12] COSTA, Alexandre Bernardino. DELDUQUE, Maria Célia. [et al]. O Direito achado na rua: Introdução crítica ao direito à saúde. Brasília: CEAD/UnB, 2009. p. 276.

[13] Projeto Integrador. Assistência municipal nos municípios da região. Faculdade de Ciências Humanas e Sociais – AGES. Paripiranga/BA, 2015. 

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Sobre o autor
José Lucas Rodrigues de Oliveira

Graduando em Direito pela UniAges.

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