Capa da publicação Manutenção de focos do Aedes aegypti: aspecto criminoso e afronta à função social da propriedade
Artigo Destaque dos editores

A manutenção de focos do mosquito Aedes aegypti, a afronta à função social da propriedade e a possível ocorrência de crime

08/02/2016 às 12:24
Leia nesta página:

Para aqueles moradores que recusam a visita de agentes de saúde e combate ao mosquito em área onde já se observa a ocorrência da doença, pode haver flagrância de crime que autoriza entrada na casa sem consentimento do morador.

O objetivo da elaboração deste texto é alertar à população sobre o grau de responsabilidade social e criminal que compete a cada um de seus indivíduos no combate ao mosquito Aedes aegypti e às diversas doenças transmitidas por ele.

De uns tempos para cá, o Brasil tem sido acometido por uma verdadeira epidemia[1] de Dengue e está em vias de sofrer em larga escala também com a Chikugunya e a Zika.

Todas estas doenças têm um transmissor comum: o mosquito Aedes aegypti. Aliás, afora as doenças causadas diretamente pelo referido mosquito, já há informações oficiais que a ocorrência do Zika Vírus pode ter sido a causa do enorme número de nascimento de crianças com microcefalia[2]:

- Já há confirmação que o aumento de casos de microcefalia no Brasil é causado pelo vírus Zika?

O Ministério da Saúde confirmou no sábado (28/11) a relação entre o vírus Zika e o surto de microcefalia na região Nordeste. O Instituto Evandro Chagas, órgão do ministério em Belém (PA), encaminhou o resultado de exames realizados em um bebê, nascida no Ceará, com microcefalia e outras malformações congênitas. Em amostras de sangue e tecidos, foi identificada a presença do vírus Zika.

A partir desse achado do bebê que veio à óbito, o Ministério da Saúde considera confirmada a relação entre o vírus e a ocorrência de microcefalia. Essa é uma situação inédita na pesquisa científica mundial.

As investigações sobre o tema devem continuar para esclarecer questões como a transmissão desse agente, a sua atuação no organismo humano, a infecção do feto e período de maior vulnerabilidade para a gestante. Em análise inicial, o risco está associado aos primeiros três meses de gravidez.

O achado reforça o chamado para uma mobilização nacional para conter o mosquito transmissor, o Aedes aegypti, responsável pela disseminação doença.

Pois bem, conforme anuncia a parte final do excerto acima transcrito, a sociedade brasileira deve se mobilizar e promover uma verdadeira guerra contra o mosquito transmissor de modo a tentar erradicá-lo, ou, ao menos, diminuir para números aceitáveis de controle.

Infelizmente, o povo brasileiro é acostumado a esperar ações e programas do governo para a solução de todos os problemas existentes em nosso país, porém nos esquecemos que nós somos os verdadeiros agentes da mudança. O governo pode fazer muita coisa, mas não é o único.

A sociedade, desorganizadamente, não logra grandes conquistas. Contudo, na medida em que ela se conscientiza do seu papel, pode fazer a diferença.

Especialmente no combate ao mosquito Aedes aegypti, o Poder Público precisa, mais do que nunca, contar com o apoio da população. Todos nós somos responsáveis pela nossa saúde e de nossos vizinhos, haja vista este ser alado poder atravessar as fronteiras de nossa propriedade e passar a interferir na vida de outras pessoas.[3]

Não se trata de uma luta a ser travada apenas individualmente. Explico melhor: como erradicar um mosquito se todos fazem a sua parte com exceção de um único morador de nosso bairro?

O foco do mosquito é uma ameaça a todos e, portanto, deve ser prontamente eliminado, principalmente em se considerando que no interstício de poucos dias a larva se transforma em mosquito e já pode passar a transmitir uma quantidade bastante significativa de doenças, e outras tantas que ainda não se descobriu.

Dito isto, com o objetivo de alertar a população da sua responsabilidade, imprescindível dizer que a propriedade particular deve cumprir a sua função social (Art. 5º, XXIII, CF)[4]. Em outras palavras: o seio sagrado do nosso lar deve cumprir com o seu papel de acolher a família, mas, ao mesmo tempo, possui também responsabilidade com os demais integrantes da sociedade.

No Capítulo da Política Urbana na Constituição Federal, diz-se expressamente em seu art. 182:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro.

§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

I - parcelamento ou edificação compulsórios;

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

Nesse sentido, no âmbito da política urbana, existem diversos instrumentos capazes de fazer o morador promover a efetivação da função social de sua propriedade. Com certeza, possuir focos de mosquito Aedes aegypti não ajuda o proprietário neste mister. Pelo contrário, pode e deve funcionar como um dos aspectos a ser considerado pela Administração Pública na sua política.

Estamos aqui falando em graves situações de Saúde Pública que devem ser repelidas de forma ampla.

Por óbvio, não se está afirmando que nossas residências podem ser indiscriminadamente devassadas sob o argumento de combate ao mosquito. Claro está que isto só poderia ocorrer em situações bastante estritas. Aliás, assim determina a Constituição: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (Art. 5º, XI, CF).

Ou seja, no que interessa, havendo a flagrância de um delito ou por determinação judicial, a penetração na casa pode ocorrer sem o consentimento do morador.

Surge-nos, então, uma dúvida: possibilitar a ocorrência de focos de mosquitos Aedes aegypti dentro de nossa residência seria crime?

Acredita-se que o meio jurídico ainda não se debruçou como deveria no cerne desta questão.

Fato é que estamos vivendo uma epidemia de diversas doenças causadas por este mosquito e não sabemos até onde as conseqüências dessas doenças vão parar, a exemplo da microcefalia.

Nesse sentido, importante destacar alguns tipos penais que poderiam ter relação com a situação atualmente vivenciada no Brasil:

Perigo para a vida ou saúde de outrem

Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Epidemia

Art. 267 - Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:

Pena - reclusão, de dez a quinze anos.

§ 1º - Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro.

§ 2º - No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.

Infração de medida sanitária preventiva

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa.

Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Certamente não se pretende exaurir o tema. Inclusive este artigo serve até mesmo para que os verdadeiros penalistas/criminalistas se debrucem sobre o mesmo e tragam a nós as suas luzes.

Todavia, a mim me parece que, para aqueles moradores que reiteradamente recusaram a visita de agentes de saúde e combate ao mosquito, aliada à ocorrência de casos de doenças nas áreas adjacentes ao seu imóvel, bem como havendo a existência de causa provável, há a ocorrência de flagrância hábil a ensejar a entrada na casa sem o consentimento do morador. Tudo com muita parcimônia.

Neste caso acima estamos falando de um imóvel ocupado. No caso do mesmo ser abandonado ou baldio, acredito que os agentes de saúde podem e devem adentrar para averiguações e combate. Lembrando que, para o fiel cumprimento do seu dever, imprescindível o reconhecimento formalizado de que o referido bem não tem dono aparente – o que pode ser feito pela simples constatação de que está desocupado (em razão de diversas visitas sem a presença de morador) ou pela informação de vizinhos etc.

De todo modo, a existência dos tipos penais acima não deve ser olvidada nem pelo Poder Público (a quem cabe cumprir a lei), nem pela população (destinatária do tipo no caso de descumprimento). Ressalte-se que as pessoas, além de poderem vir a cometer os referidos crimes, são também o sentido da existência dos mesmos. Às pessoas se tenta proteger. Assim, caso se observe o cometimento de algum daqueles crimes, as pessoas podem levar ao conhecimento das autoridades para que estas tomem as devidas providências.

Enfim, estes são os casos mais graves, mas há ainda a possibilidade de, de forma mais amena, levar ao conhecimento do Poder Judiciário (pelos vários meios processuais cabíveis) para que este, sob fundamento fático e jurídico, autorize determinadas autoridades a que, durante o dia, penetrem no imóvel para realizar as averiguações necessárias e, em sendo o caso, eliminem os focos do mosquito Aedes aegypti.

Concluindo, importante ressaltar que a responsabilidade em erradicar o transmissor destas doenças terríveis é de cada um de nós, individual e coletivamente. Porém, não podemos ficar a mercê de uns poucos descuidados (para dizer o mínimo). Para isso existem diversos instrumentos (referimos acima apenas alguns deles) aptos a por fim a uma situação de perigo para toda a sociedade. Consciência e ação!


Notas

[1] “Doença que, numa localidade ou região, ataca simultaneamente muitas pessoas.” "epidemia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/DLPO/epidemia [consultado em 16-12-2015].

[2] http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/197-secretaria-svs/20799-microcefalia

[3] Para uma rápida, clara e objetiva mensagem de como combater o mosquito, acessar: http://portalarquivos.saude.gov.br/campanhas/combateaedes/index.html

[4] Art. 5º (...)  XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Gentil Ferreira de Souza Neto

Procurador de Estado e Advogado. Mestre em Direito Constitucional. Especialista em Direito Público e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA NETO, Gentil Ferreira. A manutenção de focos do mosquito Aedes aegypti, a afronta à função social da propriedade e a possível ocorrência de crime. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4604, 8 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45355. Acesso em: 19 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos