A relativização da inviolabilidade de domicílio diante da prisão em flagrante nos crimes permanentes e de perigo abstrato

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10/02/2016 às 15:24
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Este trabalho visa analisar o entendimento jurisprudencial e doutrinário acerca da relativização da inviolabilidade de domicílio diante de prisão em flagrante em crimes permanentes e de perigo abstrato, fazendo uma análise à luz da CRFB/88.

INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho de conclusão de curso visa analisar o entendimento doutrinário e jurisprudencial a respeito da prisão em flagrante, decorrente da invasão domiciliar, de crimes permanentes e de perigo abstrato.

 

O Direito Penal e Processual Penal constitui-se em um ramo das Ciências Jurídicas e Sociais de suma importância. Assim, em um Estado Social Democrático de Direito, acredita-se que é dever do Estado zelar pelas garantias e direitos fundamentais previstos na Lei Maior, principalmente quando há a atuação dos agentes estatais que irão restringir tais direitos e garantias.

 

Para o especializando, esse tema se destaca, em relação ao Direito Penal e Processual Penal, na medida em que é dever do operador jurídico zelar pela correta aplicação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, principalmente no que se refere a leis penais e processuais penais, eis que haverá a (eventual) restrição de um dos direitos mais caros do cidadão: a liberdade.

 

  Nesse norte, a criação de leis penais e processuais penais visa não apenas à segurança coletiva e à tutela de bens jurídicos, mas assegurar que o Estado, por meio dos seus agentes, não viole direitos e garantias fundamentais do indivíduo além do minimamente necessário, nos estritos casos em que há expressa permissão legal.

                                

Na medida em que a liberdade é um direito fundamental e intrínseco ao cidadão, entende o especializando que este trabalho acadêmico possui relevantes aspectos sociais e jurídicos. Do ponto de vista social, destaca-se pelo fato de que toda e qualquer pessoa, no atual Estado Social Democrático de Direito, pode sofrer a restrição da garantia da inviolabilidade do seu domicílio (atingindo reflexamente o seu direito à liberdade) por parte dos agentes de segurança pública. Já na esfera jurídica, o cunho deste trabalho consiste em analisar se a atual posição doutrinária e jurisprudencial interpreta o telos da proteção constitucional insculpida no artigo 5º, inciso XI, da Cara Magna brasileira de 1988, dando a proteção máxima ao direito/garantia fundamental em comento.

 

Ademais, entende-se que o presente trabalho aborda um tema atual, que se reflete em uma questão jurídica polêmica, conforme será demonstrado. Tem-se que o Direito é uma ciência dinâmica, estando seus conceitos e posições doutrinárias em constantes mudanças, sendo necessárias adequações com a realidade vigente. Dessa maneira, já existe no mundo jurídico a controvérsia jurisprudencial referente à interpretação da relativização prevista no artigo 5º, inciso XI, da CRFB/88, havendo julgados que realizam uma análise do referido dispositivo à luz de um Direito Penal moderno e garantidor dos direitos e garantias fundamentais.

 

Primeiramente, realiza-se um estudo acerca da inviolabilidade domiciliar. Após, serão tecidas considerações a respeito das peculiaridades dos crimes permanentes e os de perigo abstrato. Em um momento posterior, será realizado um estudo no que se refere à prisão em flagrante. Analisa-se, por fim, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, a fim de averiguar o posicionamento dos respectivos órgãos julgadores no que tange à prisão em flagrante oriunda da relativização da inviolabilidade domiciliar diante de crimes permanentes e de perigo abstrato.

 

Cumpre ressaltar que, na construção do trabalho, foram utilizados como técnicas de pesquisa uma vasta leitura bibliográfica e abordagens empíricas e documentais, por meio da avaliação de julgados. Assim, o trabalho aborda as regras jurídicas previstas no direito pátrio, bem como a revisão de obras doutrinárias, a fim de elucidar a questão da relativização da inviolabilidade domiciliar diante da prisão em flagrante de crimes permanentes e de perigo abstrato.

 

1 DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR

1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A inviolabilidade domiciliar, direito/garantia que consolida a proteção da casa de qualquer pessoa, nacional ou estrangeira, como um asilo inviolável, trata-se de um instituto necessário para a configuração de um Estado Democrático de Direito. Podemos interpretá-lo como um direito que advém de outros direitos constitucionalmente previstos no famigerado artigo 5º, caput, da Constituição da República Federal do Brasil de 1988 (CRFB/88), quais sejam a liberdade, a segurança e a propriedade.

 

Nesse aspecto não se pode olvidar a lição de Alexandre Moraes[1] que faz referência ao discurso de Lord Chantham no Parlamento britânico:

 

o homem mais pobre desafia em sua casa todas as forças da Coroa, sua cabana pode ser muito frágil, seu teto pode tremer, o vento pode soprar entre as portas mal ajustadas, a tormenta pode nela penetrar, mas o Rei da Inglaterra não pode nela entrar.

 

É inquestionável, pois, a relevância do direito à inviolabilidade domiciliar, mostrando-se como um direito/garantia forte e rígido, só havendo que se falar em sua relativização diante de casos estritamente excepcionais.

 

1.2 NATUREZA JURÍDICA DA INVIOLABILIDADE DE DOMICÍLIO

 

Prevista no artigo 5º, inciso XI, a inviolabilidade de domicílio está inserida no Título II, Capítulo I, da Carta Magna[2]. Trata-se, pois, de uma garantia/direito (individual) fundamental. José Afonso da Silva[3] conceitua como direitos fundamentais do homem-indivíduo:

 

aqueles que reconhecem a autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado. Por isso, a doutrina (francesa, especialmente) costuma englobá-los na concepção e liberdade-autonomia.

 

Por outra linha, o supracitado autor refere a direitos fundamentais do homem que “não significa esfera privada contraposta à atividade pública, como simples limitação ao Estado ou autolimitação desta, mas limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem”[4].

 

No que se refere ao artigo 5º, inciso XI, o suprarreferenciado autor[5], insere a garantia fundamental em análise no direito à intimidade, aduzindo que ao estatuir que a casa é o asilo inviolável do indivíduo (art. 5, inciso XI), a Constituição está reconhecendo que o homem tem direito fundamental a um lugar em que, só ou com sua família, gozará de uma esfera jurídica privada e íntima, que terá que ser respeitada como sagrada manifestação da pessoa humana. A casa como asilo inviolável comporta o direito a vida doméstica livre de intromissão estranha, o que caracteriza a liberdade das relações familiares (a liberdade de viver junto sob o mesmo teto), as relações entre pais e seus filhos menores, as relações entre os dois sexos (a intimidade sexual). Em respeito à posição do aludido autor, ressalva-se, no nosso entender, que, diante de uma interpretação à luz da Carta Magna brasileira de 1988, há de se conceituar família como a união de duas pessoas, independente do sexo ou opção sexual, desde que mantenham o intento de constituir um núcleo familiar estável.

 

Nesses termos, seguindo a lição de Alexandre Moraes, tem-se que garantias se traduzem no “direito dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a proteção dos direitos”[6]. Assim podemos inferir que a inviolabilidade domiciliar pode ser capitulada como uma garantia fundamental, tendo em vista que se trata de um instituto que guarnece outros direitos fundamentais, quais sejam: a liberdade, a propriedade e a segurança.

1.3 ABRANGÊNCIA DO CONCEITO DE CASA E A RELATIVIZAÇÃO DA INVIOLABILIDADE DOMICILIAR

Tem-se que o vocábulo “casa” apresenta-se como um conceito vago. Nesse teor, o Legislador, ao criar o tipo penal previsto no artigo 150 do Código Penal – violação de domicílio – estabeleceu, nos parágrafos 4º e 5º, uma extensão ao direito de inviolabilidade domiciliar. Vejamos:

§ 4º - A expressão "casa" compreende:

        I - qualquer compartimento habitado;

        II - aposento ocupado de habitação coletiva;

        III - compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade.

§ 5º - Não se compreendem na expressão "casa":

        I - hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior;

        II - taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.

 

Nesses moldes, imperioso iniciar algumas considerações no que tange ao reconhecimento da relativização da inviolabilidade domiciliar. Como já referenciado, o artigo 5º, inciso XI, da CRFB/88, expõe que a casa é asilo inviolável, só podendo haver a sua violação, sem o consentimento do morador nos seguintes casos:  flagrante delito, desastre,  para prestar socorro e, durante o dia, por determinação judicial.

Nessa senda, permite-se inferir que a referida garantia fundamental consiste em conceder a inviolabilidade domiciliar, em regra, somente por determinação judicial e durante o dia. Importante ressaltar que não há direito ou garantia absoluta e, nesse aspecto, segue a doutrina de Alexandre Moraes[7]:

Os direitos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.

 

Como bem asseverado pelo ilustre autor, os direitos e garantias fundamentais não são absolutos, devendo ser relativizados para salvaguardar outros direitos e garantias. Contudo, diante do telos do mencionado dispositivo constitucional, depreende-se que o Legislador Constituinte, ao relativizar a inviolabilidade domiciliar, o fez em hipóteses estritamente excepcionais. Nesse diapasão, as causas autorizativas “desastre” e “prestar socorro” permitem extrair a ilação de que o “flagrante delito” há de se referir somente a ações delituosas que estejam a, concretamente, ferir um bem juridicamente tutelado.

Dessarte, passa-se a analisar, nos próximos capítulos, os crimes permanentes e de perigo abstrato e a sua conformidade com a interpretação do dispositivo constitucional em voga.

2 DOS CRIMES DE PERIGO E DOS CRIMES PERMANENTES

2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 

               Importante atentar à função do Direito Penal. Em que pese existir uma respeitável, mas minoritária, base doutrinária que entende de forma diversa[8], a maioria dos doutrinadores brasileiros aduz que a função primordial do Direito Penal, nas palavras de Luiz Régis Prado[9], é:

 

a proteção de bens jurídico-penais – bens do Direito – essenciais ao indivíduo e à comunidade. Para cumprir esse desiderato, em um Estado de Direito democrático, o legislador seleciona os bens especialmente relevantes para a vida social que, em razão disso, são  merecedores da tutela penal. A noção de bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano

 

Nessa linha, merece fazer menção à obra do ilustre doutrinador Fernando Capez[10] que acentua a importância do princípio da ofensividade, bem como o princípio do fato e da exclusiva proteção do bem jurídico:

 

não há crime quando a conduta não tiver oferecido ao menos um perigo concreto, real, efetivo e comprovado de leão ao bem jurídico.  A punição de uma agressão em sua fase ainda embrionária, embora aparentemente útil do ponto de vista de defesa social, representa ameaça à proteção do indivíduo contra uma atuação demasiadamente intervencionista do Estado. Como ensina Luis Flávio Gomes “ o princípio do fato não permite que o direito penal se ocupe das intenções e pensamentos das pessoas, do seu modo de viver ou de pensar, das suas atitudes internas (enquanto não exteriorizada a conduta delitiva.

A atuação repressivo-penal pressupõe que haja um efetivo e concreto ataque a um interesse socialmente relevante, isto é, o surgimento de, pelo menos, um real perigo ao bem jurídico.

 

Diante das lições acima referenciadas, importante esclarecer que neste trabalho não irá se questionar a constitucionalidade, ou não, da criminalização de condutas que oferecem apenas um perigo em abstrato (sem desmerecer a importância do assunto). Irá, sim, analisar, mediante uma interpretação constitucional, se os crimes permanentes de perigo abstrato possuem o condão de autorizar a relativização – e momentânea revogação - da inviolabilidade domiciliar.

2.2 CRIMES DE PERIGO ABSTRATO

                       

                        Na obra do já referenciado autor Luiz Régis Prado[11], o conceito de crime de perigo pode assim ser definido:

 

basta a exigência de uma situação de perigo – lesão potencial. Dividem-se em: delito de perigo concreto: o perigo integra o tipo como elemento normativo, de modo que o delito só de (sic) consuma com a sua real ocorrência para o bem jurídico, isto é, o perigo deve ser efetivamente comprovado. Trata-se de espécie de delito de resultado, em que o bem jurídico sofre um perigo real de lesão (ex.: arts. 130 – perigo de contágio venéreo, 134 – exposição ou abandono de recém-nascido, CP); e delito de perigo abstrato: o perigo constitui unicamente a ratio legis, o motivo que dá lugar à vedação legal de determinada conduta. Apreciável ex ante, o perigo é inerente à ação ou omissão, não necessitando de comprovação (ex.: arts. 135 – omissão de socorro, 253 – fabrico, fornecimento, aquisição, posse ou transporte de explosivo ou gás tóxico, ou asfixiante, 288- quadrilha ou bando, CP .

              

 

                        Nessa linha, em suma, o crime de perigo abstrato advém de uma presunção de perigo da conduta do agente. O Legislador federal, previamente, criminaliza determinada conduta, pois dela poderá advir algum perigo concreto ou uma lesão a um determinado bem jurídico.

 

2.3 CRIMES PERMANENTES

                       

Em sua célebre obra, Cézar Roberto Bintencourt[12] distingue crime instantâneo de crime permanente, referenciando que:

 

crime instantâneo é o que se esgota com a ocorrência do resultado. Segundo Damásio, é o que se completa num determinado instante, sem continuidade temporal (lesão corporal). Instantâneo não significa praticado rapidamente, mas significa que uma vez realizados os seus elementos nada mais e poderá fazer para impedir a sua ocorrência. Ademais, o fato de o agente continuar beneficiando-se com o resultado, como no furto, não altera a sua qualidade de instantâneo. Permanente é aquele crime cuja consumação se alonga no tempo, dependente da atividade do agente que poderá cessar quando este quiser (cárcere privado, sequestro). Crime permanente não pode ser confundido com crime instantâneo de efeitos permanentes (homicídio, furto), cuja permanência não depende da continuidade da ação do agente.

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Nessa mesma linha, Capez[13] referencia que, no crime permanente, o “momento consumativo se protrai no tempo, e o bem jurídico é continuamente agredido. A sua característica reside em que a cessação da situação ilícita depende apenas da vontade do agente, por exemplo, o sequestro”.

 

2.4 DO DIREITO PENAL MÍNIMO

 

Paralelamente à análise dos crimes permanentes e de perigo abstrato, urge delinear a respeito da teoria dogmática do Direito Penal Mínimo que ganha mais vazão em um cenário de Direito Penal moderno. Nessa senda, cumpre colacionar trecho da obra do renomado doutrinador, “pai do garantismo penal”, Luigi Ferrajoli[14] (fls. 102):

 

Está claro que o direito penal mínimo, quer dizer, condicionado e limitado ao máximo, corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza. Com isso resulta excluída de fato a responsabilidade penal todas as vezes em que sejam incertos ou indeterminados seus pressupostos.

 

Resta claro que Ferrajoli, ao estabelecer a sua corrente garantista, visa à proteção do acusado perante um julgamento processual penal, conferindo maior proteção ao direito republicano democrático da liberdade. Todavia, acredita-se que este ideal de certeza deve ser aplicado quando o Direito Penal se depara com outros direitos ou garantias que podem vir a serem cerceados pelo Estado, como, in casu, a inviolabilidade domiciliar.

Nessa linha, tem-se, pois, ser necessária uma certeza por parte dos agentes de segurança pública ao ingressar no domicílio de um indivíduo a fim de efetuar a prisão em flagrante no cometimento de um crime.

Ademais, no que respeita à violação a direitos fundamentais, referencia-se as sábias palavras do já referenciado, mestre do garantismo, Ferrajoli[15]:

 

para que as lesões aos direitos fundamentais sejam liberais ou sociais, sejam sancionados e removidos, é necessário que tais direitos sejam adjudicáveis, ou seja, sejam acionados em juízo em relação aos sujeitos responsáveis, por comissão ou omissão, por sua respectiva violação.

 

Nesse panorama de Direito Penal mínimo, em que o Estado para lesionar/violar uma garantia fundamental do cidadão há de fazê-lo nos estritos moldes da Lei, apenas em casos cuja excepcionalidade autorize tal intervenção, será analisada a prisão em flagrante de acordo com a vigente ordem constitucional.

3 PRISÃO EM FLAGRANTE

3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A prisão em flagrante pode ser entendida como uma espécie do gênero prisão provisória. A doutrina majoritária a insere como uma prisão de natureza cautelar, que independe de ordem escrita e fundamentada da autoridade competente, pelo menos até a homologação judicial, desde que a pessoa se encontre em determinadas circunstâncias expressamente previstas em lei[16].

O Código de Processo Penal, alterado pelas Leis nº 11.113/2005 e 12.403/2011, regula a prisão em flagrante nos artigos 301 e seguintes. O autor Paulo Rangel[17] apresenta o fundamento da prisão em flagrante, aduzindo que a mesma somente:

se justifica com o objetivo de se restabelecer a ordem jurídica que foi violada com o comportamento nocivo do autor do fato. Trata-se de um mal necessário, que tem como escopo atender ao interesse público de manutenção da paz e da ordem. Sacrifica-se um bem menor (a liberdade de locomoção) em detrimento de um bem maior (a paz social)”.

(....)

a prisão em flagrante tem como fundamentos: evitar a fuga do autor do fato; resguardar a sociedade, dando-lhe confiança na lei; servir de exemplo para aqueles que desafiem a ordem jurídica e acautelar as provas que, eventualmente, serão colhidas no curso do inquérito policial ou na instrução criminal, quer quanto à materialidade, quer quanto à autoria.

 

Porém, com a máxima vênia ao autor referido, no que tange à prisão em flagrante, imperioso destacar a natureza jurídica deste instituto na lição de Aury Lopes Jr.[18]:

com esse sistema, o legislador consagrou o caráter pré-cautelar da prisão em flagrante. Como explica Banaloche Palao, o flagrante – ou la detencion imputativa – não é uma medida cautelar de caráter pessoal, mas sim pré-cautelar, no sentido de que não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas destina-se a colocar o detido à disposição do juiz para que adote ou não uma verdadeira medida cautelar. Por isso o autor afirma que é uma medida independente, frisando o caráter instrumental e ao memso tempo autônomo do flagrante”.

(...)

a prisão em flagrante está justificada nos casos excepcionais, de necessidade e urgência, indicados taxativamente no art. 302 do CPP e constitui uma forma de medida pré-cautelar pessoal que se disntigue pela sua absoluta precariedade.

 

 

É exatamente sob esta óptica, de pré-cautelaridade, excepcionalidade, necessidade e urgência, que iremos analisar a prisão em flagrante quando relativizada a inviolabilidade domiciliar em crimes permanentes e de perigo abstrato.

 

Importante referenciar a mudança legislativa em razão da Lei 12.403/2011, principalmente no que toca aos artigos 306 e 310 do Código de Processo Penal. Nesse contexto, criou-se a impossibilidade de alguém se manter preso em razão da prisão em flagrante, além das 24 horas, sem uma decisão judicial fundamentada que decrete a prisão preventiva.

 

Ademais, ressalta-se que não irá se adentrar nas exceções constitucionais e legais relativas às pessoas que, em razão do cargo, não podem ser presas em flagrantes, pois não é objeto do presente artigo, eis que, justamente, está a se analisar a constitucionalidade da prisão em flagrante de pessoas que não estão abarcadas por qualquer imunidade.

3.2 ESPÉCIES DE PRISÃO EM FLAGRANTE

 

No que respeita à sua obrigatoriedade, há duas espécies de prisão em flagrante: a prisão em flagrante facultativa, quando se trata de qualquer pessoa do povo, e a prisão em flagrante coercitiva, quando se referir às autoridades policiais e seus agentes. A natureza jurídica do flagrante facultativo é um exercício regular de direito, já que a qualquer um do povo é lícito prender quem quer que seja, desde que  o agente a ser preso se encontre nas situações previstas no art. 302 do CPP. Porém, quanto à natureza jurídica do flagrante coercitivo, passa-se a ser um estrito cumprimento do dever legal, já que é dever dos agentes de segurança pública prender um agente que está em flagrante delito[19].

Quanto às demais referências às espécies de prisão em flagrante, faz-se referência, ipsis litteris, à lição de Guilherme de Souza Nucci[20] ao descrever aos diversos tipos de flagrantes, vejamos:

 

•        Flagrante próprio ou perfeito (inciso I): ocorre quando o agente está em pleno desenvolvimento dos atos execucionais da infração penal. Nessa situação, normalmente havendo a intervenção de alguém, impedindo, pois, o prosseguimento da execução, pode redundar em tentativa. Mas, não é raro, que, no caso de crime permanente, cuja consumação se prolonga no tempo, a efetivação da prisão ocorra para impedir, apenas, o prosseguimento do delito já consumado.

•        Flagrante próprio ou perfeito (inciso II)= ocorre quando o agente terminou de concluir a prática da infração penal, em situação de ficar  evidente a prática do crime e da autoria. Embora consumado o delito, não se desligou o agente da cena do crime, podendo, por isso, ser preso. A esta hipótese não se subsume o autor que consegue afastar-se da vítima e do lugar do delito, sem que tenha sido deito.

•        Flagrante impróprio ou imperfeito (inciso III)= ocorre quando o agente conclui a infração penal – ou é interrompido pela chegada de terceiros – mas sem ser preso no local do delito, pois conseguiu fugir, fazendo com que haja perseguição por parte da polícia, da vítima ou de qualquer pessoa do povo”. (...). A hipótese é denominada pela doutrina de quase flagrante.

•        Flagrante presumido ou ficto (inciso IV)= não deixa de ser igualmente impróprio ou imperfeito. Constitui-se na situação do agente que, logo depois da prática do crime, embora não tenha sido perseguido, é encontrado portando instrumentos, armas, objetos ou papeis que demonstrem, por presunção, ser ele o autor da infração penal.

•        Flagrante preparado ou provocado= trata-se de um arremedo de flagrante, ocorrendo quando um agente provocador induz ou instiga alguém a cometer uma infração penal, somente para assim poder prendê-la. Trata-se de crime impossível (art. 17, CP), pois inviável a sua consumação. Ao mesmo tempo em que o provocador leva o provocado ao cometimento do delito, guarda em sentido oposto para evitar o resultado.

•        Flagrante forjado= trata-se de um flagrante totalmente artificial, pois integralmente composto por terceiros. É fato atípico, tendo em vista que a pessoa jamais pensou ou agiu para compor qualquer trecho da infração penal.

•        Flagrante esperado= essa é uma hipótese viável de autorizar a prisão em flagrante e a constituição válida do crime. Não há agente provocador, mas simplesmente chega à polícia a notícia de que um crime será, em breve, cometido. Deslocando-se os agentes para o local, aguarda-se a sua ocorrência, que pode ou não se dar da forma como a notícia foi transmitida. Logo é viável a sua consumação, pois a polícia não detém a certeza absoluta quanto ao local nem tampouco controla a ação do agente criminoso.

•        Flagrante diferido ou retardado= é a possibilidade de que a polícia possui de retardar a realização da prisão em flagrante para obter maiores dados e informações a respeito do funcionamento, componentes e atuação de uma organização criminosa (...).

(grifos nossos)

 

Vale acrescentar, quanto ao flagrante preparado, a incidência da súmula  145 do STF[21]. Ademais, frisa-se que não irá se questionar a ilegalidade da prisão resultante dos flagrantes preparado e forjado, tendo em vista que o objeto deste estudo são os flagrantes delitos que se tornam questionáveis não em razão da atuação policial, mas da própria natureza do delito.

3.3 DA PRISÃO EM FLAGRANTE ORIUNDA DE CRIMES PERMANENTES E DE PERIGO ABSTRATO

 

No que respeita à prisão em flagrante nos crimes permanentes, colaciona-se a doutrina de Aury Lopes Jr. que, seguindo a doutrina e jurisprudência tradicionais, assim refere[22]:

é importante recordar que o crime permanente estabelece uma relação com a questão da prisão em flagrante e, por consequência, com a própria busca domiciliar, anteriormente tratada. Isso porque, como já explicamos, enquanto o delito estiver ocorrendo (manter em depósito, guardar, ocultar, etc.) poderá a autoridade policiar proceder à busca, a qualquer hora do dia ou da noite, independente de existência de mandado judicial.”

 

Todavia, imperioso avaliar as causas, já referenciadas, da relativização prevista no artigo 5º, inciso XI, da CRFB/88. Primeiramente, temos que partir da premissa de que qualquer relativização a um princípio/garantia fundamental jamais poderá ter uma interpretação ampliativa. O que se pode fazer, sim, é interpretar restritivamente dando um garantia maior ao indivíduo, considerando o telos do referido dispositivo constitucional.

 

Conforme delineado anteriormente, temos, no Direito Penal, quanto à extensão temporal do resultado do delito, a divisão em crimes permanentes e instantâneos. Ainda, quanto ao perigo resultante da ação do agente, temos que os crimes podem ser de perigo (que podem ser abstrato ou concreto) ou de dano. No que se refere aos crimes permanentes e de perigo abstrato - especialmente os delitos de posse e porte de armas (de uso restrito ou não), bem como o crime de tráfico de drogas e seus delitos adjacentes (como nas modalidades de “ter em depósito” e “guardar”), previstos nas Leis nº 10.826/2003 e 11.343/2006[23], respectivamente – tratam-se de crimes em que, a priori, não se está ocasionando a violação a nenhum bem jurídico concretamente.

 

Assim, interpretando o artigo 5º, inciso XI, da CRFB/88, depreende-se, por uma interpretação restritiva e teleológica, que as causas constitucionais autorizativas à violação domiciliar, alheias àquela oriunda de determinação judicial, são extremas: o “desastre”, a “prestação de socorro” e o “flagrante delito”. No que respeita ao último caso, objeto de estudo deste trabalho, temos que analisá-lo à luz das demais causas autorizativas. Nesse caso, sustenta-se que a Carta Magna relativiza a inviolabilidade domiciliar nos estritos casos em que um bem jurídico está a sofrer – ou na sua iminência – uma lesão concreta e real. Para embasar tal argumento, Ferrajoli[24] leciona, com brilhantismo irretocável, que “podemos ter um processo penal perfeito, mas ele será sempre uma pobre realidade se o monopólio judiciário do uso da força contra os cidadãos não for absoluto e exista uma força pública que aja sem vínculos legais”.

 

3.4 PROCEDIMENTO LEGAL A SER ADOTADO DIANTE DA CIÊNCIA DE CRIME PERMANENTE E DE PERIGO ABSTRATO EM DOMICÍLIO

 

Conforme exposto neste presente artigo, tem-se que os crimes permanentes e de perigo abstrato não são suficientes para autorizar a relativização da garantia fundamental da inviolabilidade domiciliar. Todavia, urge ressaltar que é necessário que o Estado, por criminalizar tais condutas, aja no intuito de restabelecer a paz social.

Nesses termos, é dever da autoridade policial representar ao juiz competente no âmago da expedição de mandado de busca e apreensão. Por sua vez, o Código de Processo Penal regula a busca e apreensão nos artigos 240 e seguintes. O referido Código regulamenta que os agentes-executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, durante o dia (artigo 245[25]).

Ademais, há previsão, no Código de Processo Penal, para o cumprimento do mandado de busca e apreensão à noite, havendo a resistência do domiciliando. Nesse viés, como há a vedação constitucional para tanto, regulamenta-se, em seu artigo 293[26], que caberá ao agente-executor, depois de devidamente intimar o morador, guardar todas as saídas, para, quando amanhecer, arrombar as portas e efetuar a prisão quando necessária e preenchidos os seus requisitos legais.

 

4 ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA ATUAL

 

Necessário examinar como a jurisprudência sedimenta o seu entendimento sobre a prisão em flagrante nos crimes permanentes e de perigo abstrato. Nesse aspecto, analisou-se a jurisprudência preponderante e prevalecente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

No que se refere à jurisprudência do Tribunal de Justiça gaúcho, impera o entendimento de que nos crimes permanentes (a grande maioria dos casos é o delito previsto no artigo 33 da Lei 11.343/2006 na modalidade “ter em depósito” ou “guardar”), por sua natureza, a flagrância se prolonga no tempo, sendo desnecessária a determinação judicial - mandado de busca e apreensão - para a relativização da garantia da inviolabilidade domiciliar. Nesse sentido, são os julgados recentes do Primeiro e Segundo Grupo de Câmaras Criminais[27].

 

Todavia, no referido Egrégio Tribunal, há julgados, utilizando princípios existentes no garantismo penal, aplicando um Direito Penal mínimo que demandam uma certeza prévia da existência do delito para possibilitar o ingresso do agente de segurança polícia no domicílio. Assim vale referenciar trechos dos aludidos julgados:

 

APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. INTERROGATÓRIO NO INÍCIO DA INSTRUÇÃO. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO. NULIDADES RECONHECIDAS E SUPERADAS. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO.

(...)

Inviolabilidade do domicílio. Não res delito apta a excepcionar a proteção conferida por força do artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal. Havendo suspeita da prática de delito em algum domicílio/residência é indispensável a prévia obtenção de mandado judicial de busca e apreensão. A lei não permite atalhos, nesse caso e, somente no caso de haver certeza da prática de ilícito penal é que fica autorizada a exceção do inciso XI do art. 5º da Constituição. E, para ter certeza, o policial deve ter tido condições de visualizar a prática do ilícito, ou de ouvir ruídos ou vozes nesse sentido. Noutras situações, impõe-se a obtenção do prévio mandado judicial. Teoria dos limites/restrições dos direitos fundamentais e limites dos limites. Se os direitos fundamentais não são absolutos, existem direitos que não se sujeitam a reservas legais, outros que se sujeitam a reservas legais simples e outros, ainda, que se sujeitam a reservas legais qualificadas. De qualquer modo, havendo restrições diretas ou indiretas, o princípio regente é o da reserva de lei restritiva e, sobretudo, o princípio da interpretação restritiva. O direito consignado no inciso XI do art. 5º da Constituição, portanto, não pode receber interpretação ampliativa de modo a viabilizar violações do domicílio, do asilo, sem base constitucional. Nulidade reconhecida e superada.

(...)

(Apelação Crime Nº 70059416081, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 04/09/2014)

 

EMBARGOS INFRINGENTES. TRÁFICO DE DROGAS. VOTO CONDUTOR DA MAIORIA QUE MANTEVE A CONDENAÇÃO. VOTO VENCIDO QUE RECONHECIA A VIOLAÇÃO DO DOMICÍLIO. A inviolabilidade do domicílio é a regra (CF, art. 5°, inc. XI); excepcionalmente, diante de "fundadas razões" (fatos indiciados e delimitados temporalmente), nos termos do § 1º do art. 240 do CPP, o juiz, previamente, determinará a busca domiciliar, que deve ser feita de dia; ainda mais excepcionalmente, diante do perigo na demora, agente estatal no exercício do poder de polícia, à noite, poderá ingressar na casa de alguém, quando se depare com flagrante delito. O mínimo que se exige, pena de esvaziar a garantia, é que a situação de flagrante seja percebida ex ante pelo agente que vai operar a ingerência constitucionalmente autorizada. Dizer que nos crimes de natureza permanente, tal qual o tráfico de drogas, o estado de flagrante se mantém, o que é dogmaticamente correto, não significa dizer que vaga suspeita de prática de crime de tráfico de entorpecentes coloca o suspeito em estado de flagrância e, assim, afasta o direito à inviolabilidade do domicílio. No caso concreto, as circunstâncias da abordagem, na forma admitida pelas próprias declarações dos policiais, não evidenciam situação de flagrância a autorizar o ingresso na residência do réu, durante a noite, sem permissão e sem mandado de busca a apreensão. A entrada em casa alheia, nesta situação, torna-se, ipso facto, carente de fundamento racional apriorístico e, portanto, desborda das regras do jogo. E não pode, o aleatório subsequente (eventual apreensão de drogas, ou de armas, por exemplo), determinar a licitude de provas produzidas durante intervenção que, à partida, não se amparava em permissivo constitucional. Viciadas tais provas, derivadas da ilicitude do ingresso, resta impositiva a absolvição do réu. EMBARGOS ACOLHIDOS. POR MAIORIA. (Embargos Infringentes e de Nulidade Nº 70055534044, Segundo Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jayme Weingartner Neto, Julgado em 08/11/2013)

(grifos nossos)

 

Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça sedimenta o seu entendimento no sentido de que prescinde de mandado de busca e apreensão o ingresso domiciliar quando se trata de flagrância em crimes permanentes. Nesse sentido, segue o julgado:

PENAL E PROCESSUAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. POSSE DE ACESSÓRIO DE USO RESTRITO. CRIME PERMANENTE. CARACTERIZAÇÃO DE ESTADO DE FLAGRÂNCIA. PERÍCIA. DESNECESSIDADE. CRIME DE MERA CONDUTA. FLAGRANTE OCORRIDO APÓS O PERÍODO DE VACATIO LEGIS INDIRETA. TIPICIDADE DA CONDUTA.  REEXAME DE CONTEÚDO FÁTICO-PROBATÓRIO. VIA ELEITA INADEQUADA.  CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO.

(...)

2. Consoante entendimento desta Corte, em se tratando de crimes permanentes, é despicienda a expedição de mandado de busca e apreensão, sendo permitido à autoridade policial ingressar no  interior de domicílio em decorrência do estado de flagrância, não restando caracterizada a ilicitude da prova obtida.

(...)

(STJ, HC 214493/SP, Min. Rel. Gurgel de Faria, Quinta Turma, d.j. 03/03/2015)

 

Outrossim, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça compartilha o mesmo entendimento (RHC 35255/SP). Seguindo a mesma linha, o Supremo Tribunal Federal julgou o tema:

Ementa: Constitucional e penal. Recurso ordinário em habeas corpus. Posse de arma de fogo de uso permitido e tráfico de entorpecentes – arts. 12 da Lei n. 10.826/2003 e 33 da Lei n. 11.343/2006. Condenação em segundo grau. Trânsito em julgado. Ilicitude da prova, tendo em conta a inviolabilidade de domicílio (art. 5º, inc. XI, da Constituição Federal). Relativização da tutela constitucional em caso de flagrante, para prestar socorro ou por determinação judicial. Ocorrência, in casu, de flagrante. Não cabimento do writ como sucedâneo de revisão criminal, ressalvados os casos de flagrante constrangimento ilegal. Inocorrência, in casu. 1. A norma que tutela a inviolabilidade de domicílio, inserta no inciso XI do art. 5º da Constituição Federal, não é absoluta, cedendo “... em caso de flagrante delito ou desastre ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” ( HC74127, Rel. Min. Carlos Velloso, 2ª Turma, DJ de 13/06/1997, e RHC 86082, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJe de 22/08/2008). 2. In casu, consta na denúncia que “No dezessete de outubro, do ano de dois mil e oito, cerca das vinte e uma horas e trinta minutos, o denunciado foi preso em estado de flagrância [GRIFEI] por policiais militares lotados no 25º BPM, porque, com vontade livre e consciente, direcionada à prática do injusto, tinha em depósito e guardada, na sua residência, localizada na Rua da Capivaras, Travessa 07, nº 13 – Unamar, nesta cidade, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para entregar a consumo ou fornecer, ainda que gratuitamente, aos usuários, certa quantidade de drogas capazes de determinar dependência física ou psíquica, denominadas Cannabis Sativa L, vulgarmente conhecida por maconha, e ainda, Cloridrato de Cocaína, popularmente conhecida como cocaína, destinadas ao efetivo exercício do nefando comércio das drogas da morte, além do Revólver, sem marca, calibre 38, com numeração raspada, regularmente municiado e em condições de ser utilizado na prática de ilícito penal, conforme noticiam o auto de apresentação e apreensão à fl. 04 e laudos toxicológico à fl. 06 e pericial de potencialidade ofensiva da arma, que será juntado oportunamente, cujas peças técnicas evidenciam a materialidade delitiva”. Por esses fatos, o paciente foi condenado, em 04/08/2010, pelo Tribunal de Justiça, à pena de 6 (seis) anos, 9 (nove) meses e (20) vinte dias como incurso nos arts. 12 da Lei n. 10.826/03 e 33 da Lei n. 11.343/06 (posse irregular de arma de fogo de uso permitido e tráfico de entorpecentes)”. 3. Destarte, o acesso de policiais à residência do paciente, em decorrência do flagrante delito, não tem a aptidão de eivar de ilicitude as provas ali colhidas, in casu, maconha, cocaína e arma de fogo municiada, sobrevindo acórdão que o condenou à pena de 6 (seis) anos, 9 (nove) meses e (20) vinte dias pelos crimes tipificados nos arts. 12 da Lei n. 10.826/03 e 33 da Lei n. 11.343/06 (posse irregular de arma de fogo de uso permitido e tráfico de entorpecentes).

(...)

(RHC 117159/RJ, Min. Rel. Luiz Fux, Primeira Turma, d.j. 05/11/2013)

(grifos nossos)

 

Aliás, o Tribunal Pleno do STF, em momento anterior, já havia proferido entendimento nesse mesmo sentido (Inq 2424/RJ, Min. Rel. Cezar Peluso, d.j. 26/11/2008).

 

Percebe-se, pela análise da jurisprudência contemporânea, que a regra em vigor, no que toca à relativização da inviolabilidade domiciliar, é que existindo crime de natureza permanente, mesmo possuindo a natureza de crime de perigo abstrato, os Tribunais autorizam a intervenção do agente de segurança pública, ingressando no domicílio à força, relativizando a garantia constitucional em comento.

 

Contudo, conforme longamente explicitado ao longo deste trabalho, interpretando a CRFB/88, entende-se que nos crimes permanentes e de perigo abstrato só deverá haver a intervenção do Estado mediante uma autorização/determinação judicial, sob pena de ilicitude das provas colhidas, nos termos do §1º do artigo 157 do Código de Processo Penal[28], que inseriu a teoria dos frutos da árvore envenenada no referido diploma processual, onde todos os demais atos serão “contaminados” pela prova ilícita original.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Diante da pesquisa doutrinária e jurisprudencial realizada no trabalho, infere-se que a doutrina e jurisprudência, de forma sedimentada, entendem que os crimes permanentes, em razão da permanência do estado de flagrância, admitem, sem restrições quanto à espécie do delito, a intervenção dos agentes de segurança pública no domicílio do cidadão-flagrado para realizar a prisão constitucional. Importante salientar que, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, há o entendimento, perfilado pelo Segundo Grupo de Câmaras Criminais e pela Terceira Câmara Criminal, de que necessita o agente do Estado ter a certeza da ocorrência do delito para que se possibilite a relativização da inviolabilidade do domicílio.

 

Para este especializando, entende-se, com a devida vênia aos nobres órgãos julgadores e doutrinadores, que deve ser feita uma interpretação restritiva e teleológica do artigo 5º, inciso XI, da CRFB/88. Há de se ter em vista que as restrições à garantia fundamental da inviolabilidade domiciliar são taxativas, permitindo-se a sua violação somente nos casos em que há a necessidade da intervenção urgente e imediata por parte do agente de segurança pública, ou de qualquer outro cidadão, no intuito de preservar um bem jurídico que está sofrendo, ou na sua iminência, um perigo concreto de lesão ou de perecimento.

 

Nesse viés, os crimes permanentes e de perigo em abstrato – exemplificando os crimes previstos no artigo 12 da Lei 10.826/2003 e artigo 33 da Lei 11.343/2006 – tratam-se de delitos que, pela sua essência, o acusado estará sempre em situação de flagrância, já que a sua conduta se prolonga no tempo. Todavia, não se pode olvidar que são delitos em que não há uma lesão imediata no mundo dos fatos. Há apenas uma presunção do Legislador federal de que dessa conduta poderá surgir um perigo a determinado bem jurídico.

 

Assevera-se que não se está sustentando a inércia dos agentes de segurança pública quando houver a notitia criminis dos delitos referenciados. Nesses termos, conforme expressa o Código de Processo Penal, a autoridade acusatória competente deve, incialmente, postular um mandado de busca e apreensão para, durante o dia, efetuar as diligências cabíveis e, se presente os seus estritos requisitos legais, efetuar a prisão do flagrado.

 

Diante dos argumentos expostos, infere-se que os crimes permanentes e de perigo abstrato não seriam capazes, interpretando restritiva e teleologicamente a CRFB/88, de ensejar a relativização da garantia da inviolabilidade domiciliar.

 

REFERÊNCIAS

 

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 214493/SP, Ministro Relator Gurgel de Faria, Quinta Turma, julgado em 03/03/2015. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp>. Acesso em: 14 abr. 2015.

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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito Policial nº 2424/RJ, Ministro  Relator Cezar Peluso, julgado em 26/11/2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp>. Acesso em: 14 abr. 2015.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 145. Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=145.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas>. Acesso em: 08 de mar. De 2015.

 

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. Vol. 1.8ª ed. ver. Ampl: Editora Saraiva, São Paulo, 2005.

 

FEITOSA, Denilson. Direito Processual Penal. Teoria. Crítica e Práxis. 5ª ed. ver. Ampl. E atual. Editora Impetus: Niteróis, 2008.

 

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 2ª ed. revis. e ampl. Tradutores Ana Paula ZOmer Sica e outros. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2006.

 

JAKOBS, Günter; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2005

 

JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 9ª ed. revist. E atual. Saraiva: São Paulo, 2012.

 

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NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6ª edição. Revist. Atual. E ampl. Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2007.

 

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RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Embargos Infringentes e de Nulidade Nº 70061018438, Primeiro Grupo de Câmaras Criminais, Relator: Rosane Ramos de Oliveira Michels, Julgado em 06/03/2015. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 14 abr. 2015.

 

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Embargos Infringentes e de Nulidade Nº 70062937172, Segundo Grupo de Câmaras Criminais, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 13/02/2015. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 14 abr. 2015.

 

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Crime Nº 70062937172, 70059416081, Terceira Câmara Criminal, Relator: Diogenes Vicente Hassan Ribeiro, Julgado em 04/09/2014. Disponível em: <http://www1.tjrs.jus.br/busca/?tb=proc>. Acesso em: 14 abr. 2015.

 

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33ªed. Revist. E atual. Editora Malheiros: São Paulo, 2010.

 

 

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Sobre o autor
Régis Schneider da Silva

Atualmente, Assessor Jurídico - Especialista em Saúde - da Secretaria Estadual de Saúde do RS. Antigo analista processual da DPE/RS e analista de previdência e saúde do Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul - IPERGS. Especialista em Direito Penal e Processo Penal

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