Em 18 de fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, no habeas corpus 126.292, proferiu uma decisão paradigmática para o processo penal brasileiro: a Corte máxima do país entende agora que, após a decisão de 2ª instância ratificadora de sentença condenatória, o réu pode ser recolhido para cumprir provisoriamente a pena aplicada, enquanto aguarda o trânsito em julgado. Em síntese, os recursos extraordinário e especial (para o STF e STJ, respectivamente) não mais impedem a prisão.
Os argumentos expedidos pelos ministros vencedores vão desde o necessário combate à morosidade da justiça e à sensação de impunidade, “além de prestigiar o trabalho de juízes de primeira e segunda instâncias, evitando que se tornem ‘tribunais de passagem’”. Buscam ainda impedir uma “enxurrada de recursos na Justiça na tentativa de protelar o início do cumprimento da prisão[i]”. O relator afirmou ainda que, “ressalvada a estreita via da revisão criminal, é no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame dos fatos e das provas, e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado”. Salientou-se, por fim, que “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte[ii]”.
À primeira vista, o julgado, de relatoria do ministro Teori Zavascki, parece caminhar ao encontro dos apelos populares, ansiosos por medidas de combate à impunidade. Nos fóruns e comentários acerca da notícia pela internet se ouve o sonoro aplauso à decisão pela população em geral. O Ministério Público, tanto federal como os estaduais, também comemora, divulgando notas na mídia[iii]. O MPF, em especial, antevê desdobramentos no processo da operação Lava Jato, cujo relator é – exatamente – o min. Zavascki.
A impressão positiva, todavia, não se restringiu ao público em geral, leigo no direito. Diversos juristas também revelam apoio à decisão, não somente em razão do descontentamento com impunidade e a “indústria de recursos” nos tribunais superiores, mas sustentados em questões técnicas, como o necessário sopesamento no conflito de princípios, já que não há hierarquia entre eles, para relativizar a influência da presunção de inocência, ante o princípio da razoabilidade, dentre outros, no processo penal.
O Supremo não inovou em 2016: já sustentava tal posicionamento até o fim de 2008. Entretanto, no julgamento do habeas corpus 84.078-7, em janeiro de 2009, o STF mudou o entendimento. O relator, ministro Eros Grau, votou contra a prisão decorrente de sentença/acórdão condenatório, alegando precipuamente a vedação (ou não previsão) legal deste tipo de encarceramento.
A decisão anterior lastreava-se em três diplomas legais diferentes. O Código de Processo Penal, de 1941, no art. 637, estabelece que “O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença”. Já a Lei de Execução Penal (LEP), de 1984, condicionou, no art. 105[iv], a execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória, mesmo caminho da pena restritiva de direitos (art. 147[v]). Citou ainda o art. 5º, LVII, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, para concluir que “os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no artigo 637 do CPP[vi]”.
Lembrou o ministro que a prisão anterior ao trânsito em julgado existe – chama-se cautelar – nos moldes das prisões em flagrante, temporária e preventiva, todas previstas em lei, sem conflito com o art. 5º, inciso LVII, conforme citado. Comentou ainda sobre os argumentos expedidos a favor do cumprimento antecipado da pena, não surpreendentemente iguais aos atuais vencedores no STF, alegando que
A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e recursos extraordinários, e subsequentes embargos e agravos, além do que “ninguém mais será preso”. Eis aí o que poderia ser apontado como incitação à “jurisprudência defensiva”, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento desta Corte não pode ser lograda a esse preço.
Uma observação ainda em relação ao argumento nos termos do qual não se pode generalizar o entendimento de que só após o trânsito em julgado se pode executar a pena. Isso --- diz o argumento --- porque há casos específicos em que o réu recorre, em grau de recurso especial ou extraordinário, sem qualquer base legal, em questão de há muito preclusa, levantando nulidades inexistentes, sem indicar qualquer prejuízo. Vale dizer, pleiteia uma nulidade inventada, apenas para retardar o andamento da execução e alcançar a prescrição. Não há nada que justifique o RE, mas ele consegue evitar a execução. Situações como estas consubstanciariam um acinte e desrespeito ao Poder Judiciário. Ademais, a prevalecer o entendimento que só se pode executar a pena após o trânsito em julgado das decisões do RE e do Resp, consagrar-se-á, em definitivo, a impunidade. Isso --- eis o fecho de ouro do argumento --- porque os advogados usam e abusam de recursos e de reiterados habeas corpus, ora pedindo a liberdade, ora a nulidade da ação penal. Ora --- digo eu agora --- a prevalecerem essas razões contra o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete! Não recuso significação ao argumento, mas ele não será relevante, no plano normativo, anteriormente a uma possível reforma processual, evidentemente adequada ao que dispuser a Constituição. Antes disso, se prevalecer, melhor recuperarmos nossos porretes...
(STF – HC 84.078-7, Primeira Turma, Rel. min. Eros Grau, 5/2/2009).
Cabe lembrar que a mudança de entendimento do Supremo, drástica para o direito penal e processual penal, se deu casuisticamente, sem a ocorrência da alteração da Constituição ou, pelo menos, de leis sobre o tema. Isto é, foi uma revisão de entendimento, com prevalência em 2015 dos argumentos vencidos em 2009.
O ponto chave, a nosso ver, reside além da discussão acerca da necessidade de se combater a impunidade ou da possibilidade constitucional de se exigir o cumprimento de pena antes do trânsito em julgado. É certo, todos os poderes do Estado devem se empenhar para mitigar a morosidade da justiça, bem como aparelhá-la para torná-la mais eficiente. Da mesma forma, acreditamos ser em tese constitucional a prisão para cumprimento de pena antes do trânsito em julgado, visto que a reclusão cautelar coaduna-se perfeitamente com a presunção de inocência, como já revisado pela doutrina e jurisprudência.
Este último tópico, todavia, exige – como nas prisões cautelares – previsão legal. Aqui reside o cerne da questão. As únicas modalidades de prisão processual (ou seja, quando não há trânsito em julgado) previstas em lei são flagrante, temporária e preventiva. Todas elas possuem requisitos próprios, bem definidos em lei e delimitados pela jurisprudência. Não há previsão alguma para prisão cautelar/processual decorrente de sentença/acórdão condenatório. Da mesma forma, a LEP, que cuida do cumprimento da pena, autoriza a prisão somente com o trânsito em julgado da sentença, que valerá como título executivo judicial (art. 164, LEP).
Como se percebe, é o princípio da legalidade – e não o da presunção de inocência, exatamente – que impede a execução da pena antes do trânsito em julgado. Nosso país, modelo de civil law, não pode admitir uma Corte, mesmo a Suprema, legislar in malam partem, para criar novo tipo de prisão processual. Não houve declaração de inconstitucionalidade de lei ou elastecimento hermenêutico de dispositivo constitucional, mas sim inovação legislativa na seara processual penal, afetando diretamente direito fundamental – liberdade –, sem a devida observância à estrita legalidade, exigida para tal.
Os argumentos pró e contra este tipo de prisão permanecem os mesmos de 2009, e não houve produção legislativa que fomentasse alteração de entendimento. O acórdão de relatoria do ministro Eros grau corrigia prática ilegal no judiciário brasileiro. Hoje, o Supremo dá um passo atrás, priorizando argumentos populistas ao estudo da lei, criando um novo tipo de prisão, cuja alma (re)nasce maculada pela ilegalidade. Pior, não resolverá os problemas levantados, com toda certeza. Basta lembrar se, antes de 2009, a sensação de impunidade não existia, ou era menor. Cremos que não. A conclusão do Ministro não poderia ser mais atual: ora – digo eu agora – a prevalecerem essas razões contra o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos por aí, cada qual com o seu porrete.
[i]{C} http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/02/1740474-maioria-do-stf-vota-a-favor-de-prisao-apos-decisao-de-segunda-instancia.shtml.
[ii]{C} http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=310153.
[iii] A exemplo, http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/pgr-defendeu-novo-entendimento-sobre-execucao-da-pena-em-segunda-instancia.
[iv] Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.
[v] Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares.
[vi] HC 84.078-7, Rel. min. Eros Grau, 5 de fevereiro de 2009.