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Reserva do possível e reserva de consistência:

natureza jurídica e ônus probatório

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A invocação da simples escassez de meios não deve contentar a função jurisdicional como uma espécie de proteção ao governante desidioso.

1. Introdução

 Ao Direito, por meio de normas, não é dado prescrever condutas impossíveis, resultados inatingíveis, meios física e materialmente indisponíveis, fins inalcançáveis. Não se pode, por conduto da norma, tutelar ou conferir bens e direitos cuja obtenção ou realização prática exceda as forças da sua regular e máxima oferta, decorrente da natureza ou da indústria.

Não é conforme ao Direito instituírem-se obrigações prestacionais públicas desapegadas, descomprometidas e indiferentes à escassez de recursos mínimos a fazer face aos custos irremissíveis para a sua factível disponibilização. Não é, enfim, conforme ao Direito, que a norma proíba o inevitável, obrigue ao irrealizável ou regule o necessário.

O impossível e o inevitável nulificam as prescrições normativas que se estabeleçam em seu desprezo, e essa invalidação dá-se independentemente da sua positivação expressa, uma vez que se trata de uma sanção sistêmica que irrompe o mundo do ser e perpassa o mundo do dever-ser jurídico[1]/[2].

 A inexorabilidade de ditas categorias não pode ser menoscabada pelo Direito ou seu intérprete e aplicador, uma vez que somente pode ser transposta, contornada ou evitada na linguagem cultural, imaginária e fantástica em que o impossível e o inevitável descategorizam-se, desmaterializam-se, mas não no sistema nomoempírico e prescritivo, em que consiste e se estrutura o Direito.


2. O Direito e a categoria das coisas impossíveis.

O Direito Positivo reconhece e trabalha com as categorias fáticas do impossível e inevitável, tanto assim que confere expressamente eficácia normativa e jurídica, geralmente desconstitutiva, a institutos tais como o do caso fortuito e da força maior.

Veja-se que, mesmo na relação inter privatus, em que prevalecente o interesse e a voluntas particular, que se notabiliza pela marca da comutatividade e bilateralidade, no sentido da mútua interdependência de obrigações e direitos (sinalagma), o impossível e o inevitável operam efeitos desoneradores em favor da parte obrigada a adimplir determinada prestação, à exceção de quando ditos eventos não restringem o âmbito material do suporte fático da norma responsabilizadora.

Ocorre que não se há de confundir – na seara do complexo normativo estatuidor de direitos fundamentais, inclusive sociais – a teoria da “reserva do possível”, que também poderia ser designada de impossibilidade fática, com a impossibilidade natural que implica a carência de sentido normativo, acarretando a total inapetência deôntica da norma e, de conseguinte, a impertinência ao ordenamento jurídico.

Há de se compreender, por certo e induvidoso, que a possibilidade fática realmente compõe e integra a notação de suficiência do suporte fático normativo, de modo que, em sua completa ausência, real e juridicamente justificada, não se deflagrarão as conseqüências eficaciais normativas, jurídicas e fáticas prescritas na norma[3], isto é, não nascerá direito subjetivo, sem prejuízo da persistência da obrigação estatal. 


3. O argumento da “reserva do possível” e ônus probatório.

No sentido que vimos de ver, parece ser a compreensão de Alexy quando afirma que “la propiedad de derecho vinculante prima facie significa que la cláusula restrictiva de este derecho, la ‘reserva de lo posible en el sentido de aquello que el individuo puede razonablemente exigir de la sociedad’, no tiene como consecuencia la ineficácia del derecho. Esta cláusula expresa simplemente la necesidad de ponderación de este derecho”.[4]

Mas a responsabilidade pela demonstração da sua inconfiguração (da possibilidade fática) eventual é do Estado devedor.

Entretanto, se se confirma, processualmente, a não configuração legítima e justificada daquele elemento positivo integrante do descritor normativo, dita circunstância apenas representará um momento estático da relação obrigacional e impedirá a responsabilização dos agentes públicos investidos do múnus de prover o direito, mas a norma, em si, não sofre qualquer ruptura com o ordenamento jurídico, permanecendo apta a produzir seus efeitos tanto que se configure o pressuposto normativo.

Em suma: mantida a eficácia da norma constitucional, mantida está, também, íntegra, a relação a ela subjacente, mercê da sua sucessibilidade.

De todo modo, isso (a contingente impossibilidade fática) não impede que se fixe prazo certo e razoável para que a função executiva do poder político se desincumba satisfatoriamente da sua prestação relacional.

Isso é assim porque o Estado não é obrigado apenas a cumprir a prescrição da norma de direito fundamental desde quê e quando configurados todos os elementos integrantes do suporte fático, neles incluído, como dito, a possibilidade fática, mas também o Estado é obrigado normativamente a perseguir a realização deste específico elemento, sendo certo que essa obrigação decorre da Constituição, em especial da norma que expressa os objetivos fundamentais da República Federal do Brasil (CF/88, art. 3.º).

A mera edição (e desde então) de ditas normas estabelece uma relação jurídica marcada pelo traço constante e insuprimível da realizabilidade, irrenunciabilidade, inesgotabilidade (inexauribilidade) e irresolutividade, nisso consistindo a programaticidade daquele modelo normativo.

Por isso, o Estado nunca deixa de ser devedor: poderá estar em mora, relativa ou absoluta, parcial ou total, ou poderá estar em estágio de solvência freqüentativa da obrigação, sem que isto possa, para boa parte daqueles direitos, implicar satisfação resolutória da obrigação, dada a auto-renovabilidade que distingue o Direito Fundamental Social, e, com ela, advém a regenerabilidade do débito (e. g.: segurança pública, saúde etc.).

Na relação jurídica obrigacional creditícia, nascida do fato jurídico decorrente da eficácia da lei instituidora de direito fundamental social, o credor (povo, para a maioria daqueles direitos, hipossuficiente) não necessita provar haver cumprido qualquer específica e correspondente prestação para só então exigir o adimplemento da prestação pelo sujeito relacional a si contraposto (Estado), justamente por não ser ela comutativa e bilateral, no sentido privatístico (abstraindo-se a receita tributária compulsória): cumpre-lhe apenas expor a falta administrativa (que pode, inclusive, ser notória), uma vez que “si el supuesto de hecho es satisfecho y la cláusula restritiva no está satisfecha, el titular tiene um derecho definitivo”.[5]

Assim, por força da proeminência estrutural desse tipo de direito, que respeita ao postulado maior, legitimador, justificador e fundamentador do ente Estado, que se traduz pela realização do bem comum, na medida da promoção e preservação da dignidade da pessoa humana, de cada um e de todos, a mera invocação pelo Estado deficitário, moroso, do contra-argumento da “reserva do possível” não pode nem deve ser o bastante do ponto de vista do devido processo legal.

Destarte, é obrigatório que o Estado se desincumba materialmente da sua demonstração, em rigorosa fase instrutória, e porque o ônus probatório, na seara dos direitos fundamentais, inclusive os sociais, há de ser aplicado sob dupla perspectiva e dimensão, uma formal, na vertente de que é encargo do Estado deficitário e não da parte alegante (inversão do ônus probatório); e outra, substancial, no sentido da sua pertinência e suficiência.

Isso se exige do Estado em virtude da primariedade do interesse público, em seu grau mais elevado, de que são revestidos os direitos fundamentais.

Destarte, em meio processual, no que concerne ao contra-argumento da “reserva do possível”, não deve contentar a função jurisdicional, no exercício do dever de institucionalizar o controle popular dos atos afeitos à função executiva do poder político, a invocação pura e simples da escassez de meios, como uma espécie de tegumento protetivo anteposto ao governante desidioso.

O lugar-comum, o manejo encontradiço, renitente e recalcitrante desse argumento denuncia às escâncaras o quanto tem ele de mero subterfúgio, em incontáveis vezes, mas o certo é que, em matéria de relevante e suntuosa dignidade constitucional a invocação de dito fundamento fático-jurídico tem a dizer como mero ponto de partida da investigação, ao qual somente se pode emprestar relevo jurídico se restar efetivamente demonstrado o acerto de tal ou qual opção e que os melhores e maiores esforços foram e estão sendo empreendidos pelo mandatário, pautados constantemente pelo crivo da razoabilidade[6], da proporcionalidade e da eficiência.

Ou seja, o argumento precisa ter fundamento na realidade confrontada com os ditames constitucionais e não se revestir de panacéia abstrata para justificar a irresponsabilidade do agente político e sujeito co-obrigado (§6.º, art. 37, CF/88) seja pela desatenção e o desatendimento desabridos daqueles direitos seja pelas conseqüências advindas do seu desamparo.

Nesse sentido é a precisa advertência de Abramovich e Courtis quando asseveram que “um Estado solo puede atribuir el no cumplimiento de las obligaciones mínimas a la falta de recursos disponibles, si logra demonstrar que ha realizado todo esfuerzo a su alcance para utilizar la totalidad de los recursos que están a su disposición en pos de satisfacer, com carácter prioritario, esas obligaciones mínimas”.[7]


4. O argumento da “reserva de consistência”.

Também não deve obnubilar a perspectiva do controle popular por intermédio da função jurisdiconal a crítica de que não está aparelhada e capacitada para empreender juízos elaborativos de complexas políticas públicas.

Não há dúvidas desse constrangimento, afinal de contas, como observa Sérgio Fernando Moro[8], “faltaria ao Judiciário, por exemplo, capacidade para a elaboração de política habitacional ou de política pública que vise à efetivação do objetivo previsto no inciso VIII do art. 170 da CEF (‘busca do pleno emprego’ como um dos princípios da ordem econômica)”.

No mesmo sentido é a advertência de Andreas Joachin Krell[9] ao asseverar que, na seara dos fatores econômicos, somente se admite a intervenção do Judiciário desde que “haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional”.

Porém, ambos ressaltam a possibilidade do controle.

Sérgio Fernando Moro, inobstante reconheça dita reserva, salienta que, “a extensão desse impedimento dependerá da prática judiciária. A criatividade do juiz poderá contribuir para o alargamento do controle judicial, na medida em que ele encontrar caminhos para a elaboração de políticas públicas, mesmo complexas...”.

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E Andréas J. Krell[10], discorrendo sobre a teoria do “mínimo existencial”, anota que a Corte Constitucional Alemã “deixou claro que esse ‘padrão mínimo indispensável’ não poderia ser desenvolvido pelo Judiciário como ‘sistema acabado de solução’, mas através de uma ‘casuística gradual e cautelosa’”. 


5. Conclusão.

Nesse contexto, é que se insere a participação qualificada dos múltiplos organismos da sociedade civil organizada, tais como as associações de moradores, os sindicatos ou confederações de categorias específicas, a exemplo da saúde, da educação etc., que podem, porque, além de conhecedores teóricos do problema, o vivenciam diretamente na prática diuturna, deduzir a pretensão jurisdicional, instruindo-a com o cabedal heterônomo necessário a não só identificar e caracterizar a ausência, ou a insuficiência ou a impertinência da atuação governativa, como também na propositura da política pública ajustada à espécie.

A par disso, poderia ainda o julgador valer-se da opinião abalizada dos experts.

O fato é que se avança da contenção de eventual ingerência assuntiva da especificidade de titularidade da outra vertente do poder para se alcançar também a recondução da desviante ao prumo da estrita observância e, de conseguinte, da efetividade dos postulados constitucionais, máxime no que respeita à satisfação dos direitos fundamentais. Somente assim têm a sua razão de ser justificada perante os legislados, administrados e jurisdicionados.

Aliás, a inflexão submissiva que se depreende da carga semântica destas terminologias supra destacadas, quando observada pelo prisma da prática política nacional, sugere um resquício absolutista, dado que o poder tem sido, por vezes, exercido segundo o arbítrio e a conveniência do seu eventual detentor.

Aqui, mais uma vez, destacasse a figura do governante, cuja (im)postura nem sempre se ajusta aos desígnios do Estado de Direito Democrático e Constitucional.


Referências bibliográficas

ABRAMOVICH, VÍTOR, CHRISTIAN COURTIS, Los derechos sociales como derechos exigibles – Madrid: Editorial Trotta, 2004.

ALEXY, ROBERT, Teoria de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997.

KRELL, ANDRÉAS JOACHIN, Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha – Os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002.

MORO, SÉRGIO FERNANDO, Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: RT, 2004.

NEVES, MARCELO, A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994.

NEVES, MARCELO, Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Noeses, 2005.

SARLET, INGO WOLFGANG, A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

VILANOVA, LOURIVAL, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, Prefácio.

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Sobre o autor
Adriano Luís de Almeida Silva

Especialista e mestre em direito. Assessor Jurídico e Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Adriano Luís Almeida. Reserva do possível e reserva de consistência:: natureza jurídica e ônus probatório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4633, 8 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46980. Acesso em: 23 abr. 2024.

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