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Responsabilidade eleitoral: definição e problemática

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Seria admissível, a fim de restaurar a legitimidade do pleito, o sancionamento “pessoal” de candidato beneficiado (com multa e inelegibilidade), dispensando a comprovação/verificação da culpa e do nexo de causalidade entre o dano e o ato ou comportamento de terceiro?

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo levantar as premissas teóricas básicas a respeito da responsabilidade e seus efeitos jurídicos no âmbito do sistema eleitoral, em especial tocante aos pressupostos de fundamentação das sanções típicas e peculiares de tal seara do direito.

Para tanto, é necessário averiguar os pontos de contato e distanciamento da responsabilidade eleitoral em relação aos aspectos dogmáticos da teoria da responsabilidade civil.

O estudo da produção jurisprudencial do Tribunal Superior Eleitoral é fundamental para traçar os parâmetros a respeito da caracterização dos pressupostos básicos da responsabilização em casos de ilícitos eleitoral, em especial no que tange à consumação do dano e a verificação do nexo de causalidade.


1 A RESPONSABILIDADE COMO CATEGORIA GERAL DE DIREITO

A responsabilidade trata-se de categoria jurídica que apresenta ampla e variada repercussão nas vertentes do direito, de modo que se torna impossível generalizar seu conceito e conferir-lhe um tratamento uniforme.

É natural, portanto, encontrar diferentes funções e manifestações da responsabilidade em cada ramo do direito: civil, penal, administrativo, eleitoral, ambiental, entre outros.

Por outro lado, não se pode olvidar que a primazia do tratamento dogmático da responsabilidade pertence ao direito civil[1], dada as implicações do instituto nas relações privadas (em larga medida em razão de seu nítido caráter patrimonial), motivo pelo qual os principais conceitos da reponsabilidade civil serão inicialmente delineados e analisados a fim de assegurar a inserção na temática específica da responsabilização na seara eleitoral.     

1.1 A responsabilidade civil

Em linhas gerais, pode-se conceituar a responsabilidade civil como a obrigação de reparar o dano que uma pessoa causa a outra[2]. A ideia de responsabilidade relaciona-se ao objetivo de não causar prejuízo a outrem, tratando de recurso extremamente caro ao papel pacificador das relações sociais ao qual se propõe o direito.

A noção da responsabilidade pode ser haurida da própria origem da palavra, que vem do latim respondere, responder a alguma coisa, ou seja, a necessidade que existe de responsabilizar alguém pelos seus atos danosos. Essa imposição estabelecida pelo meio social regrado, através dos integrantes da sociedade humana, de impor a todos o dever de responder por seus atos, traduz a própria noção de justiça existente no grupo social estratificado. Revela-se, pois, como algo inarredável da natureza humana[3].

Nesse viés, a responsabilidade pode ser definida como um instrumento jurídico viabilizador de aplicação de medidas tendentes a obrigar alguém a reparar a outrem o dano decorrente de sua ação ou omissão, conforme ensina De Plácido e Silva, in verbis:

Dever jurídico, em que se coloca a pessoa, seja em virtude de contrato, seja em face de fato ou omissão, que lhe seja imputado, para satisfazer a prestação convencionada ou para suportar as sanções legais, que lhe são impostas. Onde quer, portanto, que haja obrigação de fazer, dar ou não fazer alguma coisa, de ressarcir danos, de suportar sanções legais ou penalidades, há a responsabilidade, em virtude da qual se exige a satisfação ou o cumprimento da obrigação ou da sanção[4].

Destarte, a concepção de responsabilidade civil está, necessariamente, vinculada à ideia de contraprestação, encargo e obrigação. Sérgio Cavalieri Filho ressalta a imprescindibilidade de distinção entre “obrigação” e “responsabilidade”. Para o jurista, “a obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo consequente à violação do primeiro”[5].

Nesse diapasão, a teoria da responsabilidade civil pretende determinar as condições e circunstâncias nas quais uma pessoa poderá ser considerada responsável pelo dano (à integridade física, à honra ou ao patrimônio) sofrido por outrem e em que medida está obrigada a repará-lo. Tal reparação é feita mediante “indenização” que, em regra, possui natureza pecuniária.

1.2 Modelos de responsabilidade: subjetiva, objetiva, contratual e extracontratual

Em um primeiro plano, a doutrina classifica a responsabilidade civil em razão da culpa (subjetiva e objetiva) e quanto à natureza jurídica da norma violada (contratual e extracontratual).

A configuração da responsabilidade civil subjetiva demanda que o dano tenha sido ocasionado por uma conduta culposa lato sensu, o que abrange tanto a culpa stricto sensu (negligência, imprudência ou imperícia) quanto o dolo (vontade conscientemente dirigida à produção do resultado ilícito).

A responsabilidade subjetiva foi largamente utilizada nos ordenamentos jurídicos dos países ocidentais, estando umbilicalmente ligada à concepção liberal dos direitos, com forte viés de proteção à liberdade do indivíduo e, principalmente, de seu patrimônio, uma vez que, em última instância, são os bens que garantem o cumprimento da obrigação de indenizar.

Ocorre, contudo, que a evolução da complexidade das relações sociais e o desenvolvimento de abissais desproporções econômicas e políticas entre indivíduos, evidenciou que o modelo de responsabilidade baseado na culpa não era suficiente para solucionar todos os casos existentes.

A necessidade de maior proteção a vítima fez nascer a culpa presumida, de sorte a inverter o ônus da prova e solucionar a grande dificuldade daquele que sofreu um dano demonstrar a culpa do responsável pela ação ou omissão.

O próximo passo foi desconsiderar a culpa como elemento indispensável, nos casos expressos em lei, surgindo a responsabilidade objetiva, quando então não se indaga se o ato é culpável[6].

Com efeito, o “declínio” do modelo de responsabilidade subjetiva é verificado, principalmente, a partir da metade do século XIX, como resultado da consolidação da sociedade industrial e urbana e o consequente aumento dos riscos de acidente de trabalho[7].

Durante a Revolução Industrial ocorrida na Europa em meados do séc. XVIII, a responsabilidade objetiva começou a despontar em decorrência do desenvolvimento industrial, da substituição do ferro pelo aço. Grandes escalas de produção e a mecanização dos sistemas produtivos, aumentando a produtividade, a circulação de riquezas, ao tempo em que houve o crescimento das situações de acidentes nas fábricas. Surgiu então, a necessidade de reparar os danos sofridos pelos empregados.

Dentro desse contexto histórico, a responsabilidade civil objetiva tomou forma, quando o homem foi levado a uma situação de permanente risco com o seu trabalho, fruto do excessivo crescimento industrial, sujeitando-o aos riscos, sem que pudesse obter a reparação merecida, por não serem adequados os meios legais para se proteger.

[...]

O movimento revisionista iniciado na França, em que a tese da responsabilidade objetiva encontrou seu mais propício campo doutrinário de expansão e de consolidação, julgando o âmbito da culpa com o escopo de resolver o problema da responsabilidade, difundia a reparação do dano decorrente, exclusivamente, do fato ou do risco criado, garantindo às vítimas uma reparação independentemente de culpa do responsável[8].

Emerge em tal contexto, a noção de responsabilidade civil objetiva, que prescinde da existência de culpa. De acordo com Sérgio Cavalieri Filho, o fundamento de tal modelo de responsabilidade é a teoria do risco, na qual “todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou independente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de nexo de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa”[9].

Na mesma senda, Paulo Sérgio Gomes Alonso assevera que a responsabilidade civil objetiva, “que tem como princípio a ideia de que todo risco deve ser garantido, desvinculou a obrigação de reparação do dano sofrido da ideia de culpa, baseando-se no risco, ante a dificuldade de obtenção da sua prova, pelo lesado, para obter a reparação”[10].

Informa Caio Mário da Silva Pereira que diversas teorias foram elaboradas com o fim de garantir sustentação à responsabilidade objetiva, destacando-se a "teoria do risco", que se fundamenta no fato de uma pessoa jurídica ter assumido para si atividades de caráter público e, assim, a responsabilidade por eventuais danos decorrentes de suas ações[11].

Existem, ainda, situação tão graves, dada a periculosidade da atividade realizada por determinado agente, que a sua responsabilidade é baseada na "teoria do risco integral"[12], pela qual, mediante expressa previsão legal, seria responsabilizado por todo dano decorrente de tal atividade, mesmo diante de caso fortuito ou de força maior, como ocorre, v.g., nas atividades nucleares (art. 21, XXIII, "c", da Constituição Federal, e Lei nº 6.453/1977) e nos danos ambientais (Lei nº 6.938/1981).

Diversas são as concepções agasalhadas na teoria do risco, destacando-se a do risco-proveito e a do risco-criado.

Pela primeira, quem recolhe os bônus da atividade que desenvolve há também de suportar os danos que ela venha a acarretar à esfera jurídica de outrem. Destarte, os bônus e os ônus da atividade devem ser suportados pelo seu beneficiário: ubi emolumentum, ibis onus, reza o brocardo.

Já pela concepção do risco-criado, ou simplesmente do risco, quem se lança na realização de uma atividade gera o risco ou crua o perigo de cometer danos à esfera jurídica alheia, devendo, consequentemente, assumi-los, responsabilizando-se pelos prejuízos porventura advindos.

Como forma radical da teoria do risco, surgiu a concepção do risco-integral, pela qual nem mesmo a culpa exclusiva da vítima, o fato de terceiro, o caso fortuito ou de força maior seriam hábeis a suprimir a responsabilidade. A obrigação de indenizar é justificada pela só ocorrência do dano, apenas sendo relevante que a relação de causalidade esteja estabelecida. Nessa categoria, incluem-se os danos decorrentes de atividades nucleares, os causados ao meio ambiente e o acidente de trabalho.[13]

A evolução da adoção dos modelos de responsabilidade subjetiva e objetiva é facilmente percebida no ordenamento brasileiro. O Código Civil de 1916 era, essencialmente, subjetivista. A seu turno, o diploma civilista de 2002, a despeito de ter mantido a responsabilidade subjetiva como regra do sistema, adequou-se às noções modernas do instituto, estabelecendo em seu art. 927 os pressupostos nos quais se admite a responsabilidade objetiva:

Art. 927. Haverá obrigação de reparar o dano, independente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

A seu turno, a partir do advento da Constituição da República promulgada em 1988, que consagrou a adoção do modelo de responsabilidade objetiva na atividade administrativa (art. 37, §6º), não é difícil encontrar na legislação infraconstitucional exemplos de aplicação da teoria do risco, a saber: a responsabilidade do fabricante e fornecedor, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos do produto e relativos à prestação dos serviços (arts. 12 e 14 da Lei nº 8.078/1990).

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Por fim, quanto à classificação da responsabilidade civil de acordo com a natureza do dever jurídico violado pelo causador do dano, aponta-se duas modalidades: a contratual e a extracontratual.

Quando a responsabilidade se relaciona a um dano decorrente da violação de uma regra estabelecida em um negócio jurídico (inter partes), estar-se-á diante da modalidade de responsabilidade contratual. Com efeito, nesse caso, o dever de reparação da parte causadora do dano é estabelecido pelas partes em uma relação negocial.

Noutra via, a responsabilidade extracontratual, tradicionalmente conhecida como “aquiliana”, decorre diretamente do ordenamento jurídico, seja de forma expressa ou implícita. O dever jurídico violado não se encontra previsto em contrato e independe de qualquer relação jurídica anterior entre o causador do dano e a vítima.

De todo modo, a obrigação de reparar o dano é consequência jurídica comum tanto na responsabilidade contratual como na extracontratual.

1.3. Os pressupostos básicos da responsabilidade civil no direito brasileiro

Nos termos do art. 927 do Código Civil, para o surgimento da obrigação de reparação do dano é imprescindível a ocorrência de "ato ilícito", cujo conceito é extraído do art. 186 do mesmo diploma legal: os atos ilícitos são aqueles que contrariam o ordenamento jurídico lesando o direito subjetivo de alguém.

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

A partir de tais dispositivos é possível depreender os pressupostos básicos da responsabilidade civil no direito brasileiro: a) a conduta do agente; b) o nexo causal; c) o dano; d) a culpa.

Nesse sentido, ensina Fernando Noronha que o surgimento da obrigação de indenizar está condicionado aos seguintes pressupostos:

1. que haja um fato (uma ação ou omissão humana, ou um fato humano, mas independente da vontade, ou ainda um fato da natureza), que seja antijurídico, isto é, que não seja permitido pelo direito, em si mesmo ou nas suas consequências;

2. que o fato possa ser imputado a alguém, seja por dever a atuação culposa da pessoa, seja por simplesmente ter acontecido no decurso de uma atividade realizada no interesse dela;

3. que tenham sido produzidos danos;

4. que tais danos possam ser juridicamente considerados como causados pelo ato ou fato praticado, embora em casos excepcionais seja suficiente que o dano constitua risco próprio da atividade do responsável, sem propriamente ter sido causado por esta.[14]

Entende-se por nexo de causalidade a relação de causa e efeito entre a conduta praticada e o resultado. Logo, para a caracterização da obrigação de reparar, além da conduta ilícita e da ocorrência do dano, é necessário que exista uma relação de causalidade entre o ato praticado pelo agente e a violação do patrimônio moral ou material da vítima.

Por conseguinte, afirma-se que o nexo de causalidade é requisito essencial para qualquer espécie de responsabilidade, ao contrário do que acontece com a culpa, relevada nos casos de responsabilidade objetiva.

1.4. O tratamento jurídico do dano: outras teorias de responsabilidade

Outro ponto que merece destaque especial e que evidencia a diferenciação de regime da responsabilidade no direito civil para outros ramos, como o direito penal, é a questão da consumação real e efetiva do dano.

Consoante Rui Stoco, "o dano é, pois, elemento essencial e indispensável à responsabilização do agente, seja essa obrigação originada de ato ilícito ou de inadimplemento contratual, independente, ainda, de se tratar de responsabilidade objetiva ou subjetiva"[15].

De fato, tal constatação é de extrema importância para se afastar a aplicação integral da teoria geral da responsabilidade civil nas demais vertentes do direito - como o direito penal, o administrativo e o eleitoral - cuja tutela não está voltada, como no direito civil, para a proteção de direitos subjetivos, de cunho nitidamente patrimonial.

Materialização clara de tal diferença é percebida no direito penal, porquanto há a responsabilização do agente por crimes sem a ocorrência de um resultado material, como nos chamados “crimes de mera conduta”, “crimes formais” ou, ainda, “crimes de perigo abstrato”. Em tais casos, o bem jurídico tutelado, em regra, é a segurança pública e a paz social e o resultado material é considerando “mero exaurimento” do tipo penal. Ou seja, nessas situações, a responsabilidade penal do agente exsurge com a conduta e a ocorrência de um “resultado normativo”, sendo a consumação do crime indiferente para o direito penal.

2. O crime de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido é de mera conduta e de perigo abstrato, ou seja, consuma-se independentemente da ocorrência de efetivo prejuízo para a sociedade, e a probabilidade de vir a ocorrer algum dano é presumida pelo tipo penal. Além disso, o objeto jurídico tutelado não é a incolumidade física, mas a segurança pública e a paz social, sendo irrelevante o fato de estar a arma de fogo municiada ou não. Precedentes.[16] [grifou-se]

Como se verá no tópico a seguir, o mesmo se dá na seara do direito eleitoral, uma vez que a configuração de alguns dos pressupostos da responsabilidade, como o nexo de causalidade e o dano, ocorre de maneira diversa do observado na teoria da responsabilidade civil.

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Sobre o autor
Victor Aguiar Jardim de Amorim

Doutorando em Constituição, Direito e Estado pela UnB. Mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Coordenador do Curso de Pós-graduação em Licitações e Contratos Administrativos do IGD. Professor de pós-graduação do ILB, IDP, IGD, CERS e Polis Civitas. Por mais de 13 anos, atuou como Pregoeiro no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (2007-2010) e no Senado Federal (2013-2020). Foi Assessor Técnico da Comissão Especial de Modernização da Lei de Licitações, constituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 19/2013, responsável pela elaboração do PLS nº 559/2013 (2013-2016). Membro da Comissão Permanente de Minutas-Padrão de Editais de Licitação do Senado Federal (desde 2015). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). Advogado e Consultor Jurídico. Autor das obras "Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência" (Editora do Senado Federal) e "Pregão Eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019" (Editora Fórum). Site: www.victoramorim.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Victor Aguiar Jardim. Responsabilidade eleitoral: definição e problemática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6234, 26 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47434. Acesso em: 20 abr. 2024.

Mais informações

Artigo originalmente publicado da Revista Estudos Eleitorais (ISSN 1414-5146), vol.10, n° 3, setembro/dezembro 2015.

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