A pesquisa em seres humanos
O uso de seres humanos em pesquisa científica não é novidade no estudo do biodireito, como não o é nas relações da bioética, a ponto de merecer formulação de normativo internacional que organize esta área de atuação.
A declaração de Helsinque, documento promulgado pela Associação Médica Mundial (AMM ou WAM em inglês) foi elaborada em 1964 e permanece sendo um dos principais documentos internacional de ética em pesquisa envolvendo seres humanos.
Periodicamente revista, atualizada de acordo com os avanços científicos, o desenvolvimento de postulados éticos e jurídicos, a última revisão da Declaração de Helsinque se deu em 2013, na 64ª. Assembleia Geral da WAM ocorrida em Fortaleza – Brasil, e propõe me seu item 37 a seguinte recomendação:
37. No tratamento de um determinado paciente, onde intervenções comprovadas não existem ou outras intervenções conhecidas se mostraram inefetivas, o medido, depois de buscar conselho especializado, com consentimento informado do paciente ou de representante legalmente autorizado, pode usar uma intervenção não comprovada se em seu julgamento ela oferece a esperança de salvar a vida, restabelecer a saúde ou aliviar o sofrimento. Esta intervenção deve, em seguida, tornar-se objeto de pesquisa desenhada para avaliar sua segurança e eficácia, em todos os casos a nova informação deve ser registrada e, quando apropriado, tornada disponível publicamente.
Seria uma infantilidade acreditar que os avanços da ciência e da produção de fármacos pudessem se dar sem a pesquisa envolver, diretamente, seres humanos. Desde os estudos de Galeno e Paracelso a indústria de medicamentos se vale de experimentos em pessoas a fim de comprovar a sua eficácia. Isso pelo fato de que experimentos em animais (ratos, coelhos e primatas menores) nem sempre correspondem às reações do corpo humano.
Assim, a pesquisa médica envolvendo seres humanos, no que se reporta à produção de novas drogas e medicamentos, tem sido prática comum na evolução desta área da ciência.
Por óbvio muitas vidas foram perdidas em forma de contribuição para melhorar a qualidade de vida de outros, aprimorar medicamentos ou definir-lhes as proporções seguras de consumo.
As questões éticas, no entanto, que nos causam certo desconforto é quando se percebe a intenção científica de que determinadas substâncias possam ser usadas em seres humanos sem que se tenha dimensionado o alcance real de suas potencialidades curativas ou o paciente não tenha recebido a informação correta de que faz parte de um processo experimental, cujos efeitos não foram suficientemente esclarecidos e os resultados não podem ser dimensionados como milagrosos.
A ilusão da cura talvez seja o mais grave problema ético da Fosfoetanolamina.
Ainda restam evidentes em nosso meio os danos causados pelo uso da Talidomida, uma outra droga milagrosa difundida na segunda metade dos anos 1950, cujos efeitos colaterais não haviam sido totalmente mapeados e se mostraram os mais nefastos e que casou sérios danos diante da desinformação e da falta de controle no fornecimento do medicamento.
Torna-se claro que há necessidade evidente de se ter normas que disciplinem as pesquisas científicas e coíbam a prática abusiva de experimentações sem critérios ou a distribuição de medicamentos que se proponham, de maneira milagrosa, a curar determinadas enfermidades, sem alertar o paciente dos riscos potenciais, inclusive da ilusão da cura.
Torna-se ainda mais grave tal procedimento quando se tem por objeto da pesquisa um grupo extremamente fragilizado da população que, indiferente dos postulados éticos, avança sobre o desconhecido como última tábua de salvação, susceptíveis que são à propaganda enganosa.
Por certo, ao mesmo tempo em que a sociedade pode se tornar beneficiária dos resultados que advirem do experimento, torna-se temeroso e inseguro o uso em larga escala de um produto do qual ainda não se sabe a potencialidade nociva ou curativa.
Tornar o ser humano cobaia de experimentos científicos, ainda que esteja em fase final da vida ou situação irreversível de doença, causa certo desconforto no homem médio, que criou padrões de ética que interfere na clareza de discernir até onde se pode dispor da vida de outrem.
O casuísmo da Lei Federal 13.269 de 13 de abril de 2016
Apresentado na Câmara Federal em 08 de março de 2016 o projeto de Lei 4.639/2016 fora subscrito por vinte e seis deputados, de doze estados brasileiros e dezesseis partidos com representação do Parlamento, de maneira a merecer, praticamente a aprovação homologatória da Casa Legislativa.
Em dois dias o projeto já se encontrava aprovado e remetido ao Senado Federal onde também tramitou em celeridade recorde, a ponto de vir a se tornar lei ordinária em pouco mais de um mês depois de sua apresentação em 13 de abril de 2016 (BRASIL, 2016). Como dizia um jargão televisivo, foi aprovado em um vapt-vupt.
Dito desta forma, tem-se, à primeira vista, a preocupação dos senhores parlamentares com a saúde do brasileiro pela atenção singular que deram ao tema, a ponto de aprovar a norma em pouco mais de um mês, ou pelo fato de já haver na Casa outras proposições legislativas de conteúdo semelhante, em especial o PL 3.454/2015 de autoria do Deputado Mineiro Wellington Prado (PT/MG) que tramitava desde outubro de 2015 (BRASIL, 2016) e com discussão já avançada.
Por outro lado, percebe-se que o momento histórico da aprovação e sanção do tema se dá exatamente no centro de uma discussão nevrálgica de uma crise política sem precedentes, em sendo a matéria uma resposta à uma sociedade ávida por notícias menos beligerantes. Soma-se a isso os fantasmas da saúde pública negligenciada, assoladas por ondas de zika-virus, chikungunya, dengue e gripe H1N1 para as quais as respostas governamentais ainda são tímidas.
Conjecturas e ilações à parte, temos que o assunto não fora debatido no Parlamento com a profundidade e transparência que requer, mormente pela complexidade que apresenta já que reúne em si não apenas o sim ou não da deliberação governamental, mas comporta discussão de natureza ética, jurídica e científica que não foram suficientemente resolvidas.
No dia seguinte à sanção da norma, a página oficial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na internet externava a preocupação do órgão acerca da fabricação e distribuição da substância, quase que como um alerta à população quanto à suposta irresponsabilidade governamental:
A Anvisa reitera sua profunda preocupação em relação à Lei nº 13.269, que libera a produção e comercialização da substância Fosfoetanolamina, mesmo sem esse produto ter realizado os estudos clínicos capazes de comprovar sua eficácia e segurança e de não ter sido registrado na Agência, como todos os medicamentos em uso no País precisam ser. Essa exceção, concedida pela Lei nº 13.269, abre perigoso precedente porque afronta o sistema regulatório em vigor, que foi estabelecido pelo próprio Congresso Nacional, e pode trazer riscos sanitários importantes para nossa população (ANVISA, 2016).
Do alto de sua competência específica em assuntos que se refere a fabricação, produção e distribuição de medicamentos, a ANVISA emite alerta de graves riscos à população, apresentando questões que deveriam ter sido respondidas nos debates parlamentares e que não estão suficiente claras à comunidade científica, médica e sobretudo ao usuário. No mesmo endereço eletrônico, em 14 de abril de 2016 a Agência questiona:
[...] quem assegurará ao consumidor que a substância que está adquirindo não é uma inescrupulosa falsificação? Quem garantirá que a quantidade da substância informada na embalagem é efetivamente a que existe no interior de cada cápsula? Como ter certeza que no interior de cada cápsula existe apenas a Fosfoetanolamina, e não outras substâncias que poderão ser ingeridas sem que o consumidor saiba de sua existência? Na embalagem haverá data de fabricação e de validade e as informações que permitem identificar o lote produzido, em caso de ocorrerem eventos adversos? Haverá bula e nela poderá ser indicado que o paciente não deverá realizar o tratamento convencional contra o câncer? Na bula ou na embalagem poderá ser anunciado que a substância cura todos os tipos de câncer, mesmo sem haver qualquer comprovação científica para essa alegação? Se um paciente de câncer tomar a Fosfoetanolamina e não tiver seu câncer curado, a quem ele poderá responsabilizar?
Tais questionamentos, efetuados por quem tem a missão legal de regular o setor de produção e distribuição de medicamentos no país é dirigido às autoridades que, a nosso sentir, usurparam funções técnicas e num casuísmo perigoso atenderam a um clamor popular, sem o devido cuidado no estudo da matéria.
Como já observado neste estudo, o fato não é novidade na Casa Legislativa, desde que o Parlamento resolveu enfrentar a ANVISA e liberar os inibidores de apetite compostos de sibutramina, que a agência havia retirado de comercialização por razões técnicas.
A gravidade do tema é tão evidente que mal a lei fora publicada no Diário Oficial da União, a Associação Médica Brasileira (AMB) ajuizou no Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5501), contra a Lei 13.269/2016, motivada pelo fato de amplo desconhecimento acerca da eficácia e dos efeitos colaterais da substância em seres humanos.
Argumentou a entidade que a liberação do fármaco é incompatível com direitos constitucionais fundamentais como o direito à saúde (artigos 6° e 196 da CF), o direito à segurança e à vida (artigo 5°, caput), e o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, inciso III).
A Ação Direta de Inconstitucionalidade foi distribuída à relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello e ainda estava sem deliberação quando da elaboração desse estudo (BRASIL, 2016).
A Lei 13.269 e seu alcance prático:
Após decisão do STF que determinou a suspensão da distribuição da substância em abril de 2016 a USP, enquanto unidade de ensino, fechou o seu Instituto de química no Campus de São Carlos, onde fabricava a fosfoetanolamina sintética. Notadamente após ter sido, aquela unidade de prática educacional, transformada em um centro produtor da substância, requisitada às mancheias por liminares judiciais perdera a função pedagógica.
O advento da Lei 13.269/2016, no entanto, abre espaço para a produção em série da substância, que se diga, patenteada em nome dos seus pesquisadores brasileiros, com oportunidade de comércio em larga escala, ao largo dos olhos da ANVISA.
A Lei 13.269/2016 tem apenas cinco artigos, a carecer de farta regulamentação até a sua eficácia legislativa plena. Não obstante a maior gravidade, a nosso sentir, resume-se ao disposto no artigo 4º, quando permite a fabricação e consumo da substância, independente de pronunciamento e controle da ANVISA.
Art. 1o Esta Lei autoriza o uso da substância fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna.
Art. 2º Poderão fazer uso da fosfoetanolamina sintética, por livre escolha, pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, desde que observados os seguintes condicionantes:
I - laudo médico que comprove o diagnóstico;
II - assinatura de termo de consentimento e responsabilidade pelo paciente ou seu representante legal.
Parágrafo único. A opção pelo uso voluntário da fosfoetanolamina sintética não exclui o direito de acesso a outras modalidades terapêuticas.
Art. 3º Fica definido como de relevância pública o uso da fosfoetanolamina sintética nos termos desta Lei.
Art. 4º Ficam permitidos a produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da fosfoetanolamina sintética, direcionados aos usos de que trata esta Lei, independentemente de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância.
Parágrafo único. A produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição e dispensação da fosfoetanolamina sintética somente são permitidas para agentes regularmente autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente.
Como visto, a lei não prevê que seja necessária a prescrição da fosfoetanolaimina para que o paciente possa usá-la (art. 2º) , causa certa incerteza o ato de não haver prescrição médica, mas o simples laudo médico que comprove a patologia. A opção, que fica a cargo do paciente, poderá conflitar com outros procedimentos médicos em curso, expor o paciente a superdosagem de medicamentos ou, até mesmo, induzi-lo a abandonar tratamentos convencionais diante do potencial “milagroso” da pílula do câncer.
Segundo consulta efetuada na página oficial do Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde não vai fornecer a fosfoetanolamina, porquanto não seja a substância um “medicamento”. Desta forma, quem quiser fazer uso da substância terá de pagar por ela (BRASIL, 2016). Isso não impede, todavia, aos juízes de continuarem a concedendo medidas liminares obrigando os sistemas públicos de saúde a oferecerem o produto aos pacientes, fundados no princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à saúde, etc..
Em nota o Ministério da Saúde divulgou informação de que "está sendo sugerida a prescrição médica em talonário numerado que permita o rastreamento do paciente (com justificativa para o uso)" (BRASIL, 2016), ficando ao alvedrio do paciente optar ou não por utilizar o produto. Como se diante do desespero da doença terminal houve ponderação e escolha consciente acerca de riscos e benefícios.
Uma grande lacuna que se abre no ordenamento jurídico brasileiro, prometendo ser uma porta de esperança: para o paciente que busca a cura ou para a receita dos royalties e dos laboratórios que contam com público cativo e ampla divulgação midiática com forte apelo emocional, afinal, estamos diante de uma substância que promete ser capaz de curar uma das mais temidas enfermidades do ser humano.
Considerações Finais:
Há uma onda de descrédito para com a classe política que varre o país de norte a sul e tal ojeriza torna as decisões políticas algo desprezível.
No fundo, todos nós gostaríamos de acreditar que, realmente, houve a descoberta de uma pílula capaz de enfrentar e combater o câncer, evolvendo aos pacientes a vida digna, reduzindo os sofrimentos atrozes e semeando a esperança de dias melhores. Quem dera pudéssemos soltar rojões felicitando tal descoberta. Continuaremos orando para que tal aconteça.
Não obstante a ciência é cética. E o ceticismo científico nos requer provas inquestionáveis da eficácia da substância. Até que nos venham dados concretos e confiáveis de pesquisar sérias com resultados satisfatórios, a fosfoetanolamina não passa de um engodo, uma promessa vã que ao ser alçada a condição de “pílula milagrosa” pela mídia e legitimada pela lei, transformou-se em um toque de Midas ao detentor da patente, haja vista o público certo e a avidez pelo consumo. Um insulto ao ser humano que se vê no ocaso da vida.
Referências:
BRASIL, 2016. Agência Nacional de Vigilância Sanitária - <http://portal.anvisa.gov.br/wps/wmc/connect/dd9170048acfddab5b2b7e2d0c98834/RDC_52_2011_10_de_outubro_de_2011.pdf?MOD=AJPERES>
BRASIL, 2016. Senado Federal.<http://www25.senado.leg.be/web/atividade/materiais/-/material/122114>
BRASIL, 2016. Supremo Tribunal Federal <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4862001>
BRASIL, 2016. Ministério da Ciência e Tecnologia. <http://www.mcti.gov.br/fosfoetanolamina>
BRASIL, 2013. Declaração de Helsinque, 2013. <http://www.amb.org.br/_arquivos/_downloads/491535001395167888_DoHBrazilianPortugueseVersionRev.pdf>
BRASIL, 2016. Ministério da Saúde. <www.saude.gov.br/sisnep>
BRASIL, 2016. Associação Médica do Brasil. <http://www.amb.org.br/_arquivos/_downloads/491535001395167888_DoHBrazilianPortugueseVersionRev.pdf>
BRASIL, 2016. Lei 13.269. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Lei/L13269.htm>
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a Morte e o Morrer. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1969.
REINER, Rob. Antes de Partir. <http://wwws.br.warnerbros.com/bucketlist/>
SOUSA, Maria Sharmila A., FRANCO, Mirian A. G. ,MASSUD FILHO, João. A nova declaração de Helsinque e o uso de placebo em estudos clínicos no Brasil: a polêmica continua. Rev Med (São Paulo). 2012 jul.-set.;91(3):178-88. Disponível em < www.revistas.usp.br/revistadc/article/download/58980/61966>