Resumo: Em abril de 2016, em meio a um turbilhão de eventos político-econômicos e afundados em uma onda de surtos de dengue, zika, chikungunya e H1N1 o Governo Federal, em tramitação recorde discute, aprova nas duas casas legislativas e sanciona uma lei que permite o uso da substância fostoetanolamina, droga milagrosa que mereceu da mídia a alcunha de “pílula do câncer”. Dirigida a um público extremamente fragilizado pela perversidade de uma doença cuja possibilidade de cura é rarefeita, abre-se um mercado promissor para comércio de um fármaco que carece de estudos conclusivos de eficácia e mapeamento seguro de seus efeitos colaterais e ignora a função e competência da agência reguladora do setor, a ANVISA.
Palavras-chave: Pílula do Câncer; Fosfoetanolamina; Lei 13.269/2016
Introdução:
O presente trabalho discute as incertezas que pairam acerca dos efeitos realmente curativos da fosfoetanolamina na cura das neoplasias malignas, a ponto de ter merecido da mídia a alcunha de “pílula do câncer”.
Pretende-se abordar a ausência de estudos conclusivos acerca da eficácia da substância, que diante do apelo dramático do paciente que busca a cura de uma patologia que se sabe de cura difícil, e da enganosa propaganda que se constrói sobre seus efeitos curativos, acaba por expor o paciente aos efeitos desconhecidos da droga (benefícios e malefícios não mapeados) ou à insegurança dos médicos quanto ao ponto de se prescrevê-la em grande escala.
No mesmo diapasão discute-se a responsabilidade das Casas Legislativas Federais em fazer sobrepor a decisão política aos conhecimentos técnicos científicos da ANVISA e das entidades médicas e oncológicas que desacreditam (ou alimentam incerteza) quanto ao poder curativo da substância.
A mídia, na ânsia de informar, acaba por construir um universo de esperanças sobre uma pesquisa científica inconclusa e fomenta um mercado gigantesco de medidas judiciais, que por sua vez acaba por oferecer à pesquisa dezenas de milhares de cobaias humanas que de bom grado se submeterão ao uso do fármaco diante da promessa (ou esperança) da cura.
Por outro lado, a lei, recentemente aprovada sem o aprofundamento da discussão, contribui para abertura de um mercado extremamente promissor de royalties sobre a substância patenteada, embora desconheçam seus reais efeitos clínicos e curativos.
Enquanto há vida há esperança
Para os profissionais que trabalham com pacientes portadores de doenças terminais, são facilmente identificáveis e conhecidos os cinco estágios da doença, descritos pela psiquiatra suíça Elizabeth Kübler-Ross (1969).
Segundo a pesquisadora, em seus estudos de tanatologia apresentados na obra “Sobre a Morte e o Morrer” (1969), a descoberta de uma doença incurável leva o paciente a cinco estágios emocionais: a negação; a raiva; a negociação; a depressão e, por fim, a aceitação.
Tais estágios do epílogo da vida foram discutidos de maneira crítica pelo cinema na obra Antes de Partir (The Bucket List) do cineasta Rob Reiner (2007), onde os personagens centrais da trama Carter Chambers (Morgan Freeman) e Edward Cole (Jack Nicholson), compartilham os períodos finais de tratamento de doenças terminais.
Apesar de sua seriedade, o tema é abordado de maneira bem humorada, com dois personagens em conflito: um pobre, negro e sábio (Freeman) e um rico, branco e fútil (Nicholson) que convivem com a certeza da morte próxima e discutem valores da vida em sua fase final. Cientes que as incertezas do final da vida afeta a todos indistintamente, ambos elaboram uma “lista de desejos” e resolvem realizá-la antes da partida.
Longe das ribaltas da arte, porém, a angústia que se abate sobre portadores de doenças denominadas terminais ou incuráveis vai além do Modelo de Küber-Ross, levando o paciente e sua família a enveredar por caminhos da esperança (ou do desespero) em busca da cura ou alívio ou mecanismo de enganar o espírito e antecipar o estágio de aceitação da morte iminente.
Neste estágio, do dogmatismo ingênuo ou da última esperança, não descrito pela Doutora Kübler-Ross, o paciente acredita em qualquer coisa e tomará qualquer atitude para alivio dos sofrimentos e busca da cura que se sabe incerta. O prolongamento da vida ou a eliminação dos incômodos da doença expõe ao enfermo e à sua família a uma situação de fragilidade emocional, susceptível a qualquer promessa de alívio. Diante da certeza da morte vale à pena investir em qualquer fagulha de esperança, uma vez que nada se tem a perder.
Um mercado promissor
Ao contrário do paciente, no entanto, que nada tem a perder, laboratórios que fabricam medicamentos muito tem a ganhar. E aí que reside a discussão ética que se propõe neste ensaio.
Alimentando a esperança de dezena de milhares e pacientes cancerígenos o Brasil, por meio da Lei Federal 13.269/2016, liberou o consumo da substância fosfoetanolamina, supostamente uma droga sintética capaz de curar o câncer.
Concebida no calor de uma discussão ética-jurídica-científica ainda não conclusa, a aprovação da norma resulta em um típico casuísmo emocional, no qual sucumbiu o Congresso Nacional, ao arrepio dos instrumentos que orientam a liberação do comércio de drogas e medicamentos e, até mesmo, desautorizando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), cuja competência legal encontra-se expressa no artigo 8º da lei 9.782/1999:
Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública.
§ 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência:
I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias;
Não é, no entanto, a primeira vez que o Congresso Nacional enfrenta a ANVISA e contraria suas decisões técnicas. Em setembro de 2014, por meio do Decreto Legislativo 273 foi liberada a fabricação, a prescrição e venda do inibidor de apetite sibutramina, considerado pela ANVISA uma substância nociva à saúde desde 2011 (Resolução RDC 52 da ANVISA).
O milagroso caso da fosfoetanolamina
A fosfoetanolamina é um composto orgânico, presente nos organismos de mamíferos e que participam da composição estrutural das células. Os primeiros estudos dessa substância foram iniciados em 1936 pelo cientista Edgar Laurence Outhouse, do Departamento de Pesquisas Médicas do Instituto Banting da Universidade de Toronto, Canadá.
A versão sintética da substância começou a ser estudada nos anos 1970. No entanto o seu uso como droga de enfrentamento ao câncer vem sendo estudado no Brasil pelos Professores Gilberto Orivaldo Chierice, Salvador Claro Neto, Antônio José Reimer, Sandra Vasconcellos Al-Asfour, Renato Meneguelo e Marcos Vinicius de Almeida, que estudaram, sintetizaram, registraram e testaram um novo composto de fosfoetanolamina capaz de marcar células tumorais, permitindo ao organismo humano detectar e combater estes tumores.
A partir de resultados preliminares considerados animadores em alguns modelos experimentais em linhagens celulares de câncer e em animais, os pesquisadores decidiram “testar” a substância em seres humanos, quanto teve início o uso em alguns pacientes portadores de neoplasias na região da cidade de São Carlos-SP.
A fórmula dos cientistas brasileiros está protegida pela lei de patentes e, desde o final da década de 1980, por atuação do professor Orivaldo Chierice, vinha sendo fabricada e distribuída pelo Instituto de Química de São Carlos, unidade da USP a pacientes cancerosos, mesmo ante a ausência de laudos conclusivos sobre a eficácia do fármaco.
Diante da ausência de autorização de produção e distribuição do medicamento e da falta de laudos conclusivos quanto à sua eficácia no tratamento do câncer, a USP suspendeu a fabricação e a distribuição do produto em seus laboratórios.
A partir de então, cresceu exponencialmente o número de ações judiciais contra a USP e dezenas de liminares foram obtidas por pacientes portadores de neoplasias que obtiveram tutela judicial para continuar a consumir a substância ou a ela ter acesso.
O assunto mereceu grande destaque no mundo jurídico quando, em 08 de outubro de 2015, o Ministro Edson Fachin, do STF, deferiu medida liminar que garantiu a uma paciente o acesso ao produto e obrigou o fornecimento da substância à USP– São Carlos.
Na decisão o Ministro Edson Fachin, suspendeu decisão anterior e contrária do Tribunal de Justiça de São Paulo que negava a distribuição da pílula contra o câncer fornecida pela Universidade de São Paulo (Campus de São Carlos) e, no entendimento do preceito constitucional de que a vida, a saúde e a dignidade da pessoa humana são bens indisponíveis, obrigou a Universidade a produzir e distribuir a substância.
Na ação principal o TJSP havia entendido que a ausência de certificação do produto pela ANVISA não lhe garantia a eficácia desejada e poderia por em risco a saúde do paciente. Não obstante, no entendimento do ministro, proferido na Petição (PET) 5828, o tema relativo ao fornecimento de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) aguarda pronunciamento da Corte em processo com repercussão geral reconhecida – Recurso Extraordinário (RE) 657718 e diante do fundamento invocado pelo TJSP que referia-se apenas à ausência de registro na ANVISA da substância, entendeu que não havia lesão à ordem pública e determinou o fornecimento do suposto medicamento.
Pesou na decisão do ministro o fato, mais emocional do que jurídico, de a paciente informar ser portadora de moléstia grave, em fase terminal, e ter-lhe sido indicada, por laudo médico o consumo da substância, ante a ineficácia de todos os procedimentos médicos recomendados. Medida extrema e derradeira, portanto, que não comportaria outras discussões científicas ou doutrinárias.
Diante da repercussão da distribuição de fosfoetanolamina para fins terapêuticos no tratamento do câncer pelo Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP) e da grande cobertura midiática que mereceu o feito, a partir de então o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e o Ministério da Saúde, de forma articulada, vêm promovendo a realização de estudos para verificar a segurança e eficácia da substância, sem ter chegado, ainda, a uma conclusão definitiva sobre a sua eficácia em seres humanos (BRASIL, 2016).
Nos documentos da Associação Médica Brasileira há notícia de que a fosfoetanolamina sintética teria sido testada unicamente em camundongos, com reação positiva no combate do melanoma (câncer de pele) neste animal. Devido à expectativa gerada pela substância, apresentada como capaz de “tratar todos os tipos de câncer”, milhares de ações judiciais foram apresentadas até a decisão do STF suspendendo sua distribuição.
Em abril de 2016, atendendo a apelo da USP, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, reviu a decisão exarada pelo ministro Edson Fachin e determinou que a distribuição da fosfoetanolamina pela Universidade deveria se dar somente enquanto remanescer o estoque do composto e promoveu o trancamento de todas as ações que objetivavam ter acesso ao produto.
Depois disso, o fornecimento foi suspenso tendo como justificativa a ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a falta de estudos publicados sobre os benefícios de sua utilização na cura do câncer, a falta de estudos que atestem sua segurança e o desvio de finalidade da instituição de ensino (BRASIL, 2016).
Pacientes terminais e cobaias humanas
O uso de medicamentos experimentais por pacientes cancerígenos não é novidade no biodireito brasileiro. É conhecido o caso da substância rituximabe utilizado pela Presidente Dilma Rousseff para cura de um câncer no sistema linfático em 2009, apesar da comunidade cientifica divergir sobre sua eficácia.
Na esteira do procedimento adotado para cura da então ministra Dilma Rousseff vários médicos sentiram-se à vontade para prescrever o produto e a justiça se viu em condições de determinar o seu fornecimento àqueles que demandavam pelo tratamento.
Procedimento curativo experimental ou cobaias humanas? É uma indagação sem resposta.
A administração em seres humanos de substâncias cuja eficácia curativa ainda não comprovada se, de início, pode nos convencer acerca de um tratamento curativo extremo, diante da ausência de resultados de todos os outros procedimentos médicos recomendados, por outro lado outro pode ser, perfeitamente uma estratégia cruel de utilização de cobaias humanas para testes e estudos, ao arrepio das normas éticas de pesquisa envolvendo seres humanos.
Não é novidade que o comércio de drogas medicamentosas (ou não) constitui um segmento econômico que movimenta cifras incalculáveis. No mesmo viés é de amplo conhecimento que a solução para doenças incuráveis ou rarefeitas, e o câncer é uma delas, poderá resultar ao seu pesquisador não apenas status científico de alta linhagem (ou até indicação ao Prêmio Nobel), como também o registro de patentes altamente promissoras, cujo valor de mercado poderá enriquecer o denodado estudioso. E isso, à custa de experimentos que, à sombra da dor alheia, pode se comparar aos feitos dos médicos nazistas: o uso indiscriminado de cobaias humanas.
A discussão sobre o uso de cobaias não humanas em pesquisa científica é tema recorrente. Um episódio que movimentou a comunidade acadêmica aconteceu em outubro de 2012 quando um grupo de militantes dos direitos dos animais invadiu a sede do Instituto Royal, em São Roque, no estado de São Paulo.
Naquela empreitada fora denunciado o uso de cães da raça beagle que seriam cobaias para testes de medicamentos e cosméticos. A libertação dos animaizinhos vítimas da “perversidade humana” em nome da ciência foi comemorada pelas redes sociais e mereceu destaque nos principais revistas e jornais do país.
A questão da fosfoetanolamina, no entanto, assim como a dos cãezinhos beagle, envolve nosso lado emotivo. O que vemos, na verdade, não são cobaias humanas submetidas a testes de produtos químicos, mas pessoas em fase terminal, cujas esperanças mínguam na medida em que a doença progride e que buscam nessa experiência científica a última fagulha de esperança.
Fogem à nossa compreensão imediata os efeitos colaterais da droga, a propaganda enganosa com a ilusão da cura que ainda não fora certificada ou, até mesmo, a potencialização de sofrimentos que poderão advir da administração da substância em conjunto com outras que fazem parte do tratamento do paciente.
Do mesmo modo escapam da nossa percepção os valores econômicos envolvidos em eventual pesquisa científica que usa indiscriminadamente seres humanos para desenvolvimento de remédios que, patenteados, poderão render aos seus pesquisadores cifras imensuráveis.
Sem duvida uma discussão mais ética que científica.