A decisão do Ministro Teori Zavascki (STF) sobre o afastamento do Deputado Eduardo Cunha do exercício do mandato, embora possa ter resultado, na prática, em algo momentaneamente necessário para a credibilidade institucional do país, jamais poderá ser tomada como tecnicamente correta. Sob esse prisma analítico, a liminar concedida a pedido da Procuradoria-Geral da República não é apenas inédita e histórica, como estampado nos principais jornais do dia seguinte ao julgamento, ela é errada, fruto de inequívoco procedimento de exceção.
O art. 102 da Constituição Republicana confere ao Supremo Tribunal Federal a condição precípua de guardião dela própria, ou seja, a ele compete aplicar as normas da Carta Magna e zelar para que não sejam infringidas.
“Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:”
Ocorre que essa mesma Constituição não tem qualquer dispositivo que autorize o afastamento de um parlamentar do exercício do mandato por ser alvo de ação no STF, e isso está expressamente reconhecido pelo próprio Relator em sua decisão, ratificada à unanimidade pelos demais Ministros daquela Corte.
O julgamento, assim, não tem como fugir à condição de casuísta, isto é, criou-se um tratamento jurídico sem lastro constitucional, para ser resolvida uma questão específica, inclusive, sob expressa ressalva de que o entendimento não se aplica a outros casos iguais. Não só isso, a palavra mais repetida durante o julgamento foi “excepcional”, para caracterizar que aquele caso não era como todos os outros e, por isso, merecia um tratamento diferenciado.
O grande problema é que a excepcionalidade não autoriza a quebra de um dos pilares fundamentais da Constituição: o princípio de que "todos são iguais perante a Lei", não podendo se compelir ninguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em razão dela:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
[Destaques da transcrição]
Se não há dispositivo legal que autorize, em regra, o afastamento de um parlamentar do exercício do mandato, como pode haver um tratamento diferenciado para o caso de Eduardo Cunha? Não poderia.
É fato que a decisão, destrinchada em mais de 70 laudas, transparece judicioso trabalho do Relator para fundamentar o reconhecidamente excepcional afastamento do parlamentar. Contudo, faz isso através de exercícios de interpretação análoga e extensiva, bem marcados na sessão de julgamento pela declaração de voto do Ministro Celso de Melo, remetendo ao impedimento de que o Presidente da República continue no exercício do cargo após o recebimento de denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal:
“Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;”
De fato, em superficial análise, poder-se-ia concluir que, se o Presidente da República não pode permanecer no cargo se tiver contra si denúncia ou queixa-crime recebida pelo STF, o mesmo entendimento deveria se aplicar aos seus substitutos eventuais, exatamente o caso do Presidente da Câmara dos Deputados. No entanto, o raciocínio esbarra em duas questões cruciais.
A primeira consiste no fato de que a previsão constitucional é expressamente dirigida ao Presidente da República, nada dispondo sobre seus substitutos, sequer o primeiro deles – o Vice-Presidente. A aplicação da mesma regra, portanto, presume a extensão da norma presidencial para a restrição de direitos a quem a lei não a previu.
Ainda que se admita a interpretação extensiva no campo do Direito Penal, essa possibilidade está adstrita aos aspectos processuais, porquanto autorizada expressamente pelo art. 3º do CPP. A restrição de direitos, contudo, é norma punitiva de cunho estritamente material, seara na qual a interpretação análoga em prejuízo do réu – in malam partem - é vedada, inclusive por força das disposições da própria Constituição Federal, ainda no art. 5º:
“Art. 5º .............
(...)
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”
São as exatas mesmas disposições do artigo que inaugura o Código Penal, tornando expressa a vedação à aplicação de qualquer pena sem que haja lei a autorizando. Logo, à luz do texto constitucional, à míngua de previsão legal, jamais poderia ser aplicada ao réu qualquer penalidade por analogia de norma incidente a outro sujeito passivo, por mais excepcional que seja o caso.
O segundo óbice resulta da confusão conceitual deflagrada pela decisão. Se o fundamento da liminar foi aplicar ao substituto do titular da Presidência da República os mesmos impedimentos a este aplicáveis, qual a razão de suspender o exercício, não só da função de Presidente da Casa Legislativa, mas também do próprio mandato?
Não sendo presidente da Câmara dos Deputados, o réu despe-se da condição de substituto eventual da Presidente, o que evidencia que a pena cautelar que lhe foi imposta transcende o mínimo necessário para evitar o dano tutelado. Aplicou-se, assim, pena mais gravosa do que a exigida, e, ainda assim, por analogia.
Caso se considere a necessidade de afastamento para preservar o resultado do processo de cassação do deputado, em curso na própria Câmara, surgirá um terceiro obstáculo: a impossibilidade de interferência entre os Poderes Republicanos.
Cassar o mandado de um deputado é prerrogativa da Casa Legislativa que ele integra, a quem cabe a exclusiva condução do procedimento (CF/88, arts. 54 e 55). Se o Supremo Tribunal interfere diretamente nesse processo, ainda que sob o pretexto de salvaguarda-lo, exsurgirá violado o preceito magno fundamental da independência dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário:
“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
Sob a ótica constitucional técnica, portanto, o que ocorreu no Supremo foi um julgamento de exceção, em que se aplicou uma construção normativa inédita e não respaldada em qualquer dos preceitos constitucionais vigentes. Entretanto, por mais excepcional que seja a hipótese, não se pode renunciar ao manto estabilizador da segurança jurídica, verdadeiro dogma para a consolidação do Estado Democrático de Direito. E decisões por exceção são o exato retrato de total insegurança.
Há de se gizar, por fim, não se questionar a culpabilidade ou inocência do Deputado Eduardo Cunha, muito menos o efeito prático de seu afastamento. Este, aliás, pelo que se colhe a respeito do substrato fático que lastreia o pedido de cassação do mandato e o procedimento investigativo já autorizado pelo STF, pode mesmo ser proveitoso para a credibilidade dos próprios Poderes nacionais.
No entanto, por melhor que seja a intenção do julgado, sem respaldo na Constituição que deveria guardar, o STF se investiu de inegável orientação maquiavélica[1]. Afinal, para referendar o afastamento de Eduardo Cunha, só admitindo que os fins justificam os meios.
Nota
[1] Referência ao pensador italiano Nicolau Maquiavel, a quem é atribuída a síntese de pensamento de que os fins justificariam os meios, embora a passagem não conste de qualquer de seus textos.