Sujeito de fé, sujeito de direito.

Uma reflexão sobre dilemas identitários no reconhecimento e titulação do Quilombo do Carmo

12/05/2016 às 11:59
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A reflexão volta-se a um estudo de caso sobre o processo de reconhecimento visando à titulação de terras de comunidades de quilombo, no âmbito do prescrito pelo Art. 68 ADCT/CF-88.

Resumo

A reflexão volta-se a um estudo de caso sobre o processo de reconhecimento visando à titulação de terras de comunidades de quilombo, no âmbito do prescrito pelo Art. 68 ADCT/CF-88. Trata-se da possibilidade de acesso a direito coletivo, étnico e fundiário, que remete à construção identitária, na medida em que o preceito pressupõe a emergência da identidade quilombola, em que pese a ressemantização do conceito, para fins da aplicabilidade legal. O trabalho aborda a dinamicidade das identidades, por meio do acompanhamento de grupo etnicamente diferenciado frente ao novo horizonte de direitos, que demandam o enquadramento a categorias, passando ao que diz respeito à regulamentação jurídica da identidade. O campo de observação empírica é a Comunidade do Carmo, localizada no município de São Roque, SP, formada por descendentes de escravos da Província Carmelita Fluminense, auto designados filhos de Nossa Senhora do Carmo – “Filhos de uma reza só” – onde se desenrola o processo de transformação do grupo como sujeito de direitos, evidenciando a tensão entre identidade histórica e religiosa, jurídica e política.


Palavras-chaves: Comunidades Remanescentes de Quilombo; Identidade; Reconhecimento Territorial; Direitos Étnicos; Catolicismo Popular


Introdução


Decorridos 21 anos desde a publicação do Art. 68/ADCT, tem-se mostrado a necessidade de reflexão acerca dos impactos dos processos de reconhecimento sobre o cotidiano dos grupos beneficiados todos enquanto ‘remanescentes de quilombos’. As exigências da regulamentação, formalizadas na normatização interna dos órgãos responsáveis pela execução da política de identificação, reinterpretadas nas falas e práticas funcionais, estabelecem limites que se impõem às formas de organização, representação e decisão peculiares a esses grupos.

Este artigo é resultado da análise de dados etnográficos coletados por meio de observação direta, fontes documentais e depoimentos recolhidos em entrevistas, no curso do estudo antropológico realizado sobre o Bairro do Carmo, São Roque, SP, no âmbito de procedimento administrativo instaurado pelo Ministério Público Federal.

A Comunidade do Carmo formada por descendentes de escravos da Província Carmelita Fluminense evidencia o processo de transformação do grupo como sujeito de novo conjunto de direitos. A questão que se coloca é que a comunidade seria terra de preto enquanto origem, porém terra de santo enquanto construção cotidiana. Sua especificidade reside na origem comum da descendência da Santa e nas relações com as demais santidades, sendo que a religião permeia as relações entre famílias e entre espaços, delimitados por santos, no interior do todo.

Espera-se refletir como a identidade do grupo se reconstitui, em uma dinâmica múltipla, que recombina a faceta de devotos com a de cativos. Uma identidade baseada na devoção que reage a partir das novas categorias classificatórias, apropriada e ressignificada, posta à frente da situação de “Escravos de Nossa Senhora do Carmo”, em confluência a auto designação de “Filhos de Nossa Senhora do Carmo”.

A reflexão volta-se ao processo jurídico e político de titulação de comunidades enquanto remanescentes de quilombo sob o ângulo dos grupos alcançados pelo direito: categoria jurídica que garante acesso a direitos, a partir de uma classificação genérica que não abarca singularidades.

O caso observado junto à Comunidade do Carmo auxilia a discussão ora proposta, no que tange ao fato de a ocorrência de um critério político organizativo residir no fator étnico, engendrando relações que vão alem do registro de terras e de categorias jurídicas formais. Sendo assim, a dinamicidade das identidades pode ser pensada por meio do reconhecimento de um grupo etnicamente diferenciado frente ao novo horizonte de direitos, estes que demandam o enquadramento a 3 3 determinadas categorias jurídicas. Disso decorre um reordenamento na comunidade, tanto interna quanto externamente, enquanto ator político e social, passando assim ao que diz respeito à regulamentação jurídica das identidades.

O Bairro do Carmo ou o Quilombo do Carmo?

A presente proposta é decorrente de pesquisas que resultaram no Laudo Antropológico de Reconhecimento da Comunidade do Carmo, no âmbito de Procedimento Administrativo da Procuradoria Geral da República no Estado de São Paulo, por meio da Perícia Antropológica do Ministério Público Federal. A reflexão ora apresentada tem origem, portanto, em um conjunto de ações orientadas pelo viés institucional, o mesmo que direcionou a inserção junto ao Carmo, com o objetivo de compreender, de maneira global e integrada, o processo de ocupação do bairro, de forma a reconstituir a origem e a formação da comunidade negra, por meio da descrição dos sucessivos movimentos que resultaram na perda de suas terras, de modo a retratar a dinâmica da construção e reconstruções dos limites da ocupação da área em diferentes períodos.

Foi no decorrer da realização deste trabalho que se atentou ao fato de a religião permear e perpassar os âmbitos da vida cotidiana do Carmo. O Bairro do Carmo localiza-se na Estância Turística de São Roque, a 70 quilômetros de São Paulo. Está a 25 quilômetros do centro do município, na zona rural, cercado por importantes agentes econômicos que fazem da região uma relevante área de especulação imobiliária. Tem cerca de 700 moradores, em 175 residências distribuídas por 11 ruas não pavimentadas.

A comunidade constitui-se por grupos familiares relacionados entre si por laços de consangüinidade e afinidade, e por obrigações recíprocas definidas por relações de compadrio, vizinhança e por obrigações com santidades. Através da vida religiosa ocorre a atualização que perpassa as relações, consangüíneas e afins, orientando a existência da vida no bairro e extrapolando a ocupação territorial. A vida social é regrada pelo calendário religioso, esfera de onde também provém a base da identidade do grupo, regido pelo movimento de santos que movimenta relações entre famílias e entre pessoas tomadas individualmente, estabelecendo integração entre as unidades constituintes da formação social comunitária.

Os moradores descendem de Escravos da Província Carmelitana Fluminense (PCF), proprietária de uma fazenda de 2.175 alqueires no local, oriunda parte por 4 4 doação de terra de sesmaria e parte por dote, no século XVIII. Não havia convento e os religiosos a administravam a partir de São Paulo, o que permitiu a relativa autonomia em que viviam os escravos, que desempenhavam atividades responsáveis pelo abastecimento dos demais conventos, estando a fazenda sob administração dos próprios cativos. As leis imperiais instituídas a partir da década de 1850 asfixiaram as ordens religiosas, impedindo o ingresso de novos frades.

A PCF foi submetida à autoridade de visitadores apostólicos e controlada por relatórios ministeriais, o que gerou redução no quadro administrativo, restando poucos religiosos para preservar vasto patrimônio. Os arrendamentos de propriedades e de escravos por longos períodos foram as alternativas encontradas para a administração dos bens (MOLINA, 2006).

Nesse contexto, os escravos da Fazenda do Carmo foram arrendados ao proprietário de terras do Bananal, no Vale do Paraíba, o Barão de Bela Vista, em contrato de 20 anos, a partir de 1866. Na memória dos moradores, a origem do grupo é narrada como a ida das famílias, juntamente com a Santa, ao Bananal para “pagar uma dívida da Nossa Senhora. Do Carmo”, não na condição de escravos e sim enquanto devotos. Ao retornar, puderam usufruir com liberdade das terras que já ocupavam, pertencentes à própria N. Sra. Do Carmo, e a preservariam por sua devoção, sem influência da Ordem, que se encontrava em processo de reestruturação, agora sob o Brasil Republicano.

Na década de 1900, a PCF passou a cobrar aluguel pelo uso das terras, passando os ex-escravos à condição de arrendatários. No contexto da imigração estrangeira e valorização das terras da cidade de São Roque, a Ordem, no intuito de vender a área, interpelara ações de Força Velha Espoliativa na Justiça Estadual a partir do ano de 19123, que tinham por objetivo despejar os ocupantes da fazenda. Em 1916, a PCF entrara na Justiça Federal com o pedido de Divisão e Demarcação da Fazenda do Carmo. Alguns dos moradores do Carmo constituíram advogado e alegaram que a terra lhes fora doadas verbalmente após o pagamento da dívida da Santa, e que, embora cada um dos declarantes exercesse posse cultivando um trato de terreno – o que mostra a lógica da propriedade segundo o trabalho empenhado na terra – eles possuíam campos de comunhão, que mostra a lógica da terra de uso comum.

Em 1919, a Ordem chamou em juízo os ex-escravos para propor acordo de compra. Algumas negociações foram firmadas, e esses ocupantes foram reduzidos à quarta parte da área que ocupavam; para muitos a causa seguiu a revelia. Foi então adquirido por compra um total de 384,5 alqueires de terra, e visto que isso equivale à quarta parte, a posse se dava então em 1.538 alqueires, desconsiderando a área ocupada por aqueles que não negociaram e foram condenados a entregar as terras. Os lotes dos negros foram determinados nas faixas marginais da Fazenda, após a obrigação de abandonar benfeitorias já estabelecidas, o que reestruturou a ocupação no interior das Terras da Santa. Os lotes foram demarcados judicialmente, e no âmbito da comunidade foram marcados pelas santidades, entregues à guarda do Santo da Família, pertencendo o território maior à própria Nossa Senhora do Carmo.

A PCF deixou o cenário após a divisão definitiva da fazenda em 1932. Da década de 1930 em diante houve sucessivo, contínuo e violento processo de expropriação das terras dos Pretos do Carmo, revelado pelas disputas judicializadas. Invasões, trocas – dadas as relações de patronagem e de compadrio que envolvem indivíduos em desequilíbrio de poder – e ainda expropriações, marcam as décadas que seguem, em transações formais e informais que reduziram drasticamente a área ocupada por aqueles descendentes de escravos. Os conflitos fundiários continuam até a década de 1970, quando se estabelecem interesses imobiliários motivados pela implantação de condomínios fechados de alto padrão na região.

A essa altura já restava apenas o pequeno quinhão da Santa, composto pela Capela rodeada pelas casas, resguardado até hoje desde 1932, que totaliza 6,6 alqueires. Novo ator insere-se, o condomínio “Patrimônio do Carmo”, que compra 400 alqueires, ao lado do bairro, hoje abriga residências de luxo e é a principal fonte de emprego dos negros do Carmo. O residencial consolida-se na década de 1980, em torno de relações conflituosas frente às terras da comunidade. Pressões dos proprietários do condomínio e o descaso da prefeitura fizeram do Carmo um lugar esquecido em meio aos luxuosos vizinhos, em área de forte especulação imobiliária. O quadro se completa com a recente venda da antiga Fazenda vizinha Icaraí, cujo proprietário empregara negros e abarcara suas terras no passado, a um grupo coreano que implantará no local o maior campo de golfe da América Latina.

Na década de 1990, surge um representante informando ao MPF a existência do quilombo, após conflito por terras no local. Este funda associação civil sem o respaldo 6 6 da comunidade. A ele foram atribuídos crimes, pelos quais respondeu com pena de reclusão. A notícia da existência de Comunidade Remanescente de Quilombo do Bairro do Carmo foi assim disseminada, em um contexto de conflitos fundiários, violência e representatividade discutível, já que os moradores do bairro desconheciam seu autodenominado representante, e tampouco sabiam acerca da categoria jurídica mencionada pelo Artigo 68 do ADCT/CF-88.

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O que se enfatiza é a trajetória conturbada de uma comunidade que se reconhece enquanto devota, em detrimento da condição escrava, para manutenção de terras que sequer lhes pertencem, antes são de Nossa Senhora do Carmo. Vê-se, com o direito reconhecido pelo Art. 68, uma série de questões fundiárias e de interesse político e econômico que impactam diretamente no modo pelo qual a comunidade se vê e nos seus meios de manutenção. Dessa maneira, o dispositivo passa a representar instrumento de luta política efetiva para o grupo que, embora sempre fizessem parte do cenário, a partir de agora pode combater em novas condições. São sujeitos, atores portadores de direitos diferenciados, o que pressupõe tanto o reconhecimento externo da condição de remanescente quanto essa percepção no âmbito interno do grupo.

Sujeito de Direito

A atribuição da identidade quilombola a determinado grupo e os direitos fundiários que decorrem levam ao redimensionamento do próprio conceito de quilombo, e também dos conceitos de identidade, etnicidade e territorialidade.

No momento em que o Estado reconhece um grupo como remanescente, fixa uma identidade política, administrativa e legal, e ainda uma identidade social, que remete a identificação étnica, enquanto veiculo de obtenção de direitos diferenciados.

Desse modo, o artigo 68 do ADCT/CF-88 institui um novo sujeito social e político, etnicamente diferenciado a partir dos direitos instituídos. Este novo sujeito é criado no contexto de lutas sociais que fazem da lei o seu instrumento, tendo a conversão simbólica do conceito de quilombo, que é metamorfoseado e ganha funções políticas. A categoria jurídica “remanescente de quilombo” é criada e institui a coletividade enquanto sujeito de direitos fundiários e culturais (ARRUTI, 2003).

Tal disposição do Estado em institucionalizar a categoria pode ser tomada na perspectiva de uma tentativa de reconhecimento formal de uma transformação social considerada como incompleta, o que revela distorções sociais de um processo de abolição da escravatura parcial e limitado (ALMEIDA, 1997).

Fora necessária a ressemantização do termo para aplicação do Artigo 68, na medida em que novas figuras legais penetram, pelo preceito, o direito positivo, “através dessas rachaduras hermenêuticas que são os direitos difusos” (ARRUTI, 1997: 01), e fez-se preciso discernir critérios de identificação das comunidades remanescentes, no plano conceitual e normativo; em universos distintos: o da análise científica e da intervenção jurídica. O conceito de quilombo deixa de ser unicamente categoria histórica, para abranger a variedade de situações de ocupação de terras por grupos negros, para além do binômio de fuga e resistência. Enquanto agentes coletivos na dinâmica social, os remanescentes de quilombo devem ser tomados em sua dimensão política, entre as quais perpassa a noção de identidade.

É, portanto, dispositivo constitucional que dá sentido de existência coletiva, sendo categoria temporal, visto que é situacional e contingencial (ALMEIDA & PEREIRA, 2003). Por partilharem origem, cosmologia e ancestralidade, ganham visibilidade política a partir de identidade genérica, passando a um universo jurídico, político e cognitivos partilhados (ARRUTI, 1997).

A aplicação do Artigo 68 gera demandas especificas frente à comunidade que dele fará uso – a complexidade então é pautada na oposição entre e generalidade da lei e a peculiaridade do caso – singularidade que envolve uma gama de abordagens, delicadas e dotadas da especificidade histórica que formara e fora responsável pela manutenção dessa comunidade até o presente, uma trajetória marcada por conflito e exclusão, e que, desde a Constituição de 1988, esse quadro pode ser revertido na possibilidade de acesso a direitos diferenciados.

Vê-se uma série de questões de interesse, político e econômico que impactam no modo pelo qual a comunidade se reconhece e se reproduz. Assiste-se internamente ao grupo uma reestruturação, numa relação em que a reivindicação e até mesmo a possibilidade de continuidade colocam-se no horizonte. Momento em que a lei ou a expedição do título de propriedade nem sempre podem abarcar.

O debate insere-se no âmbito da regulamentação jurídica da identidade, e a emergência dos remanescentes pode ser tomada no sentido dos rearranjos classificatórios, segundo a lógica da produção de unidades genéricas de intervenção e controle social, ao custo de uma redução da alteridade das populações submetidas à categorização (ARRUTI, 1997).

O sujeito do direito é o grupo, tomado como a somatória de vários indivíduos dentro do todo, como bloco categorizado em “remanescente de quilombo”, ideal e abstratamente uno. Indivíduos que compartilham espaços e crenças, mas não necessariamente compartilham modos unívocos de pensar: representam uma tendência, mas não são unanimidade. O processo de nomeação de um grupo como remanescente é conflituoso, produzindo mudanças em suas relações externas, e entre seus membros, com acomodações, disputas, conflitos, alteração de significados, reelaboração da memória e modificação do status de seus pares.

Paralelamente, assiste-se ao processo de descoberta de novos direitos por parte da comunidade, e assim as fronteiras – porosas – e as situações – conflituosas – engendram mudança de consistência. É, portanto, uma situação de reinvenção cultural, em sentido positivo, que contribui para conferir importância normativa, afetiva e valorativa às identidades, criando condições de possibilidade para o surgimento ou intensificação de sentimento de unidade e de pertencimento.

A identificação e o reconhecimento oficial são partes de um processo mais amplo de produção de nova rede de relações, de novos sujeitos políticos, de revisão histórica e sociológica, somando-se ainda a ampliação da hermenêutica jurídica (ARRUTI, 2003). A comunidade enquanto sujeito de direito coletivo institui-se como categoria específica, engendrando novos tipos de relações sociais. A condição de remanescente abarca elementos de identidade e sentimento de pertença a um grupo e a terras determinadas, assim entram no debate considerações acerca da etnicidade e territorialidade.

Etnicidade tomada no sentido de forma de organização social pautada na atribuição categorial classificatória de indivíduos em função de sua origem suposta, esta que se valida na interação social pela ativação de signos culturais socialmente diferenciadores (POUTIGNAT & STREIFF-FENART, 1997).

A noção de territorialidade converge para a delimitação de território étnico determinado, cognominado terras de preto e terras de santo, que significam territórios específicos e extrapolam a expressão e as classificações atribuídas pelo Estado; englobam singularidades e dimensão simbólica, contendo modos particulares de utilização de recursos naturais e grades de acesso à terra.

Um dos campos de referência para a discussão é representado por Alfredo Wagner Berno de Almeida (1989), em sua análise sobre terras de uso comum, submetida a variações locais com denominações específicas, conforme a auto representação e auto nominação de cada grupo, enfatizando a condição de coletividade, baseada no compartilhamento do território e da identidade.

As Terras de Preto, de origem variada, são tidas como domínios doados, entregues ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, por famílias de escravos. Já no caso das Terras de Santo, o que se vê são responsabilidades simbólicas entre os membros do grupo com divindades, em relações travadas diretamente e de caráter contratual. As divindades são as verdadeiras proprietárias do espaço, enquanto os devotos as servem e garantem a manutenção das terras, de formas diversas (ALMEIDA, 1995).

Nessa perspectiva, o Carmo seria terra de preto enquanto origem e ascendência escrava, porém é terra de santo enquanto construção da identidade pelo grupo. A especificidade reside na origem comum da descendência da Santa e nas relações com as demais santidades, ou seja, a religião permeia relações entre famílias e entre espaços, delimitados por santos, no interior do todo. Com a redução territorial, a terra Dela foi mantida e a dos pretos e dos santos foi perdida, agregando-se todos ao redor da capela da autoridade maior. Hoje a área é 300 vezes menor do que a efetivamente ocupada até o início do século XX e 58 vezes menor do que a titulada em 1919 em nome dos descendentes de escravos. A perda territorial representa um montante de 2.169 alqueires, essas eram as Terras dos Pretos; a Terra da Santa, 6,6 alqueires, é a parte que foi mantida pelos seus filhos, que pautaram sua identidade nessa devoção. Essas relações vão, portanto, além do registro de terras, além do preceito constitucional.

A identidade é construída em correlação ao território, e dessa relação se cria e se informa o direito à terra. Em que pese a realidade do Carmo e das comunidades descendentes de quilombo de um modo geral, as reflexões acerca da configuração fundiária, dos critérios de acesso e legitimação da propriedade devem estar presentes ao longo do processo de reconhecimento, protegendo-se do movimento de homogeneização imposto pelo ordenamento jurídico, de modo a aproximar o olhar sobre a singularidade da situação. As orientações relacionadas às construções identitárias estão inscritas nos agentes e nos territórios, e são evidenciadas por meio da memória, da ação e da prática, permeadas pelo universo simbólico dos agentes, categorias e regras mediantes as quais pensam e representam sua existência (PIETRAFESA DE GODOI, 1999).

Portanto, o território socialmente ocupado tem sentido vital para o grupo e indica relações travadas por seus membros, que envolvem a solidariedade, parentesco, religiosidade, ritualidade festiva e expectativas que são projetadas sobre ele (CHAGAS, 2001). A religião interrelaciona-se com o território, carregado de símbolos, significados e imagens: é instrumento de reprodução de agentes sociais, e passa a ser compreendido em sua flexibilidade, elasticidade formal e de conteúdo, expressas nas relações que desenvolvem com noções de tempo e espaço, onde a característica fundamental não é pautada em qualquer rigidez, visto que são relações marcadas por modificações, junções e fragmentações (SOUZA FILHO, 2001).

Religião é aspecto central na análise do fomento identitário, categoria analítica de entendimento da lógica social do grupo. A terra e o terreiro não significam apenas uma dimensão física: “Mas antes de tudo é um espaço comum, ancestral de todos que tem o registro na história, da experiência pessoal e coletiva de seu povo, enfim, uma instância do trabalho concreto e das vivencias do passado e do presente” (ANJOS, 2006: 49). Sendo assim, a territorialidade configura-se enquanto espaço de relações sociais – e sagradas – palco de uma cultura própria e organização social específica. Parentesco e território constituem identidade, de forma estrutural – o parentesco – e de forma fluida, considerando a flexibilidade dos grupos e que identidades não são fixas (BARTH, 1976).

O território religioso é dotado de estruturas específicas e favorece o exercício da fé e da identidade religiosa, que ocorre no tempo e no espaço. Sistemas religiosos formam territorialidades que extrapolam limites institucionalmente demarcados. E no que tange ao parentesco, a genealogia pode transcender as relações de consangüinidade, por relações que não mantém laços reais. Há métodos de coesão social que ultrapassam redes de parentesco, em lógicas diversas nem sempre visíveis, daí a relevância do uso da história oral e técnicas de entrevista voltadas às narrativas. O conceito de memória e a tradição oral fazem-se necessários na interpretação dos processos identitários da comunidade em questão, esta que constrói uma imagem de si, é enraizada em dado território e mantêm formas de sociabilidade específica. “O trabalho da memória e o filtro por ela escolhido – a historia da ocupação das terras – para desembocar na discussão sobre identidade. Nessa discussão, o território assume dimensões socio-políticas e quase cosmológicas importantes na construção da identidade distintiva do grupo – a memória mundo (...) inscrita no solo do lugar” (PIETRAFESA DE GODOI, 1999: 17).

O que se tem é uma vasta rede de relações que se estruturam enquanto afinidades afetivas, pelo parentesco ou pelo compadrio, ou ainda em relações ritualizadas. E designam territorialidades especificas, no contexto da construção histórica do espaço pelo tempo, em uma rede de significações simbólicas, onde a descendência – o passado – e a resistência – o presente – comprovam a ancianidade e dão existência concreta à história. Toma-se o conceito de grupo étnico, que se associa à idéia de identidade quilombola, sintetizada pela noção de auto-atribuição, e vai-se a critérios organizativos que apontam às tendências de identificação, reconhecimento e inclusão, fazendo disso instrumento político para reivindicações. Assume-se a teorização de Barth (1967), enquanto foca aspectos generativos e processuais de grupos étnicos, passa a tomá-los não mais como concretos, e sim como modos de organização pautados na consignação e auto-atribuição dos indivíduos a determinadas categorias de etnicidade; esta que abrange ainda a interação com o modo de relação que o grupo mantém com o meio, e a noção de territorialidade vem à tona, convergindo para território determinados etnicamente, contendo modo particular de uso de recursos, com a idéia de uso comum.

Os princípios da auto-identificação por parte dos grupos são regulamentados pelos Artigos 1 e 2 da Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, aprovada pela Organização Internacional do Trabalho em 1989. Ve então que o ato cabe ao grupo, fato este que mostra que não há classificador da sociedade que possa se impor; os direitos das minorias, em especial minorias étnicas, têm particularidade de aplicação, tendo em vista que nesses casos o princípio democrático da maioria não pode prevalecer, pois não cabe a esta maioria determinar quais direitos assistem à minoria (ALMEIDA & PEREIRA, 2003).

Os critérios de pertença na interação social, em relação com a questão da identidade coletiva e, por conseguinte, a questão específica da etnicidade, voltam-se à problemática da fixação de símbolos identitários que estruturam a crença em uma origem comum (CUNHA, 1986). Nesse sentido, Poutignat e Striff-Fenart (1997) argumentam que o diferencial da identidade étnica frente às outras formas de identidade coletiva é a orientação ao passado, no qual se representa a memória coletiva, uma história mística, com significações que dão, por sua vez, sentido à organização e interações sociais. A posse das terras é então tomada como repertório de expressões peculiares que se distinguem das disposições jurídicas formais de propriedade e titulação, evidenciando territorialidades carregadas de especificidades que fogem à estrutura agrária.

Territórios específicos, de preto ou de santo, se interpenetram simbolicamente, sendo construídos historicamente e legitimados por um sistema de relações sociais intrínseco a cada comunidade, o que extrapola o reconhecimento oficial, escapa à judicialização e resiste à homogeneização posta por procedimentos administrativos do Estado. Aqui, os remanescentes de escravos são antes remanescentes da Santa, que se faz presente no espaço, no discurso, nas relações cotidianas, nos nomes de família, e nas relações sociais estabelecidas, no âmbito interno do grupo e deste com o mundo a sua volta.

Considerações Finais

As manifestações religiosas expressas pela Comunidade do Carmo mostram-se como evidências do Catolicismo Popular. Dado o relativo isolamento em relação aos círculos oficiais da religião e a fé que sempre orientara sua condição, determinadas características de sua religiosidade puderam ser mantidas no tempo e se apresentam como singularidades no campo do estudo da religião. São, ainda hoje, os próprios leigos os agentes promotores de sua fé, de suas festas e demais práticas. A Festa de N. Sra. Do Carmo representa a identidade exposta, a fé que adquire forma em seu espaço e evidencia relações comunitárias. O calendário religioso reitera a situação social perpassada pela religião, consolidando o processo fluido de construção identitária. As relações, estruturadas pelo parentesco e pela fé, se manifestam e mutuamente se reforçam em um arcabouço de referências simbólicas. E, visto que tem abrangência coletiva, integra a totalidade do grupo e tem, portanto, papel central em sua formação. O processo de construção identitária desses remanescentes de quilombo parece ter-se constituído em torno da devoção aos santos, frente aos quais se colocam em relações horizontais, contrariando as relações verticais da escravidão.

A identidade quilombola não é, até recentemente, parte do cotidiano do grupo que, a partir de dado momento, o “pós laudo de reconhecimento” do Ministério Público Federal, passa a ser oficialmente reconhecido como beneficiário de direito constitucionalmente assegurado. O emprego do termo “quilombola” ganha expressão e força política, em contextos diversos e mediante circunstâncias diversificadas, em locuções realizadas entre novos sujeitos sociais e seus interlocutores. Um novo horizonte se abre com o ‘redescobrimento’ de sua história e com a emergência de novos direitos. Até então, seus privilégios emanavam da Santa, compreendiam o direito de permanecer em suas terras, e somavam os deveres de viver de maneira devota. Um conjunto de direitos e deveres compartilhados e integrados ao cotidiano de devoção foi sobreposto a uma nova gama de direitos formais apresentada pelo processo de reconhecimento jurídico da comunidade como remanescente de quilombo.

Entretanto, para que tenham efetivo acesso aos direitos, devem agregar novas óticas, mudar viés, adotar novas práticas, sendo confrontados com limites dados pela generalidade da lei, em novo jogo reinterpretativo que se articula, soma, conflita ou complementa ao que fora compartilhado e construído no decorrer do tempo. O processo de construção identitária é espelhado diante da nova moldura formal à qual se ajusta. A identidade do grupo se reconstitui, em uma dinâmica múltipla, que recombina a faceta de devotos com a de cativos. Apesar do conflito, retratado por sucessivos atos de expropriações e perseguições, a comunidade se mantivera unida ao redor da capela, ao redor da Santa.

A fé fixa-se na base do grupo, que precisará se recompor e reorganizar quando lançados frente à categoria jurídica “remanescente de quilombo”. Uma identidade baseada na devoção reage a partir das novas categorias classificatórias, que são apropriadas e ressignificadas, à frente da situação de “Escravos de Nossa Senhora do Carmo”, em detrimento de “Filhos de Nossa Senhora do Carmo”. As abordagens se entrecruzam: uma diz respeito à complexidade do processo de reconhecimento de comunidades enquanto remanescente de quilombo, outra se refere à construção da identidade em um bairro negro a partir da religião: terras de preto como origem legal, terras de santo como construção cotidiana.

As bases de formação da identidade pautada na fé podem ser vistas por meio das práticas religiosas, que explicitam a devoção, bem como os aspectos da identidade a ela associada em falas cotidianas. A partir dessa reflexão, pode-se pensar acerca do processo jurídico e político de titulação de comunidades enquanto remanescentes de quilombo sob o ângulo dos grupos alcançados pelo direito: categoria jurídica que garante acesso a direitos, mas não abarca singularidades. Tal é o caso da comunidade do Carmo: embora membros sejam descendentes de escravos, não é esse o aspecto mais vivo de sua identidade. Ainda que mencionem “o tempo dos escravos”, esse passado não está fixado na memória.

A memória atualizada cotidianamente é a da devoção e a Santa ocupa posição relevante para os moradores, como constituidora daqueles enquanto grupo diferenciado, como grupo étnico. No processo de reconhecimento, entretanto, a apropriação de um passado escravo passa a ser uma das fontes irradiadoras de direitos. A construção identitária opera por meio da religião, mas a ênfase recai em colocar a questão em face da regulamentação jurídica da identidade, a partir do reconhecimento oficial realizado pelo Estado com base no Artigo 68 do ADCT/CF-88.

A Comunidade do Carmo passa da devoção à escravidão, enquanto construção; elementos de sua identidade prestes a ganhar novos pesos. A partir da reflexão sobre construção identitária e o reconhecimento, que cria novos sujeitos sociais, vê-se o modo pelo qual os moradores do Carmo respondem às novas imposições, formalidades e distinções dadas pela lei genérica, e modo como o processo impacta no peculiar cotidiano social e religioso do grupo. O direito prescrito pelo artigo 68 do ADCT insere-se na confluência entre direitos para igualdade racial, direitos coletivos e sociais, direitos fundiários e étnicos. Sendo o sujeito de direito a coletividade, opõem-se a rigidez do artigo com as singularidades da comunidade, e a categoria jurídica faz-se distante da realidade. A posse da terra é repertório de expressões peculiares que se distinguem das disposições jurídico-formais de propriedade e titulação, evidenciando territorialidades carregadas de especificidades que fogem à estrutura agrária de organização fundiária. Ainda que as terras ocupadas tenham sofrido redução de 99,72% em um século, os negros do Carmo mantêm-se unidos em torno da fé na Terra da Santa.

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Sobre a autora
Rebeca Campos Ferreira

Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Graduanda em Direito, Bacharel em Ciências Sociais (USP), Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (USP), Professora voluntária da UNEAFRO Brasil e Perita em Antropologia do Ministério Público Federal (MPF).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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