Em 29.03.2016 foi editada a MP 719, convertida posteriormente na Lei n. 13.313/2016, com o objetivo de possibilitar a utilização do FGTS (saldo da conta e a multa rescisória) como garantia de empréstimo consignado para os trabalhadores do setor privado. A ideia seria alavancar essas operações no setor privado, elevando no médio prazo o estoque atual do consignado.
Preliminar: MP 719/2016 viola a Lei Complementar 95/1998
Em principio, entendemos que a Medida Provisória 719/2016 é inconstitucional (art. 59, parágrafo único, CF/88) por evidente afronta à lei Complementar 95, art. 7º, inc. I e II, verbis:
Art. 7º... O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:
I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;
II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão;
Vale dizer que o art. 1º, Parágrafo único, traz a seguinte redação:
Parágrafo único. As disposições desta Lei Complementar aplicam-se, ainda, às medidas provisórias e demais atos normativos referidos no art. 59 da Constituição Federal, bem como, no que couber, aos decretos e aos demais atos de regulamentação expedidos por órgãos do Poder Executivo (negritamos).
Ora, ocorre que a Medida Provisória em comento possui três matérias completamente estranhas entre si. Confira-se:
- dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento;
- dispõe sobre o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por embarcações ou por sua carga;
- dispõe sobre dação em pagamento de bens imóveis como forma de extinção do crédito tributário inscrito em dívida ativa da União.
O correto é que a MP 719/2016 seja declarada inconstitucional.
Objeto da MP 719/2016
Em síntese, o trabalhador poderá, nas operações de crédito consignado, oferecer em garantia até 10% (dez por cento) do saldo da conta vinculada no FGTS e até 100% (cem por cento) do valor da multa paga pelo empregador, em caso de despedida sem justa causa ou de despedida por culpa recíproca ou força maior.
Vale lembrar que essa garantia só poderá ser acionada na ocorrência de despedida sem justa causa, inclusive a indireta ou de despedida por culpa recíproca ou força maior.
Como justificativa para o uso (garantia) do FGTS no consignado foram apontadas: a) melhoria do perfil de risco das operações; b) redução do risco de inadimplência; c) redução das taxas de juros; d) mitigação do entrave ao crescimento da operação, por conta da inadimplência mais elevada do empréstimo consignado com o setor privado (elevada rotatividade no mercado celetista).
Criticas à MP 719/2016. Desvio de finalidade.
Dentre as várias criticas à MP 719/2016, citamos: a elevação do endividamento das famílias brasileiras e o desvio de finalidade do FGTS que, criado pela Lei nº 5.107/1966, assumiu relevantes funções sociais e econômicas, em especial às relacionadas ao financiamento habitacional, ao saneamento básico e à infraestrutura urbana.
Posteriormente a Lei 11.491/2007 e a Lei 12.873/2013 permitiram a aplicação de parte dos recursos do FGTS em investimentos em empreendimentos dos setores de aeroportos, energia, rodovia, ferrovia, hidrovia, porto e saneamento, por meio do FI-FGTS.
Nenhum esforço especial é necessário para constatar que essas áreas de atuação do FGTS constituem-se em verdadeiras “virtuoses” da empregabilidade, movimentação e alavancamento da economia brasileira, todas precedidas pela construção civil. O financiamento habitacional, por exemplo, além de seu poderoso viés econômico (pois insere-se na cadeia produtiva da construção civil), assume importante função social em razão óbvia do tema.
Nesse sentido, segundo o DECONCIC/FIESP,
“A cadeia produtiva da construção figura como um dos setores mais importantes para o país, reunindo construtoras, fabricantes e comerciantes de materiais, máquinas e equipamentos, serviços técnicos especializados, serviços imobiliários e consultorias de projetos, engenharia e arquitetura. A atividade de construir movimenta, portanto, diversas áreas e gera impactos relevantes na economia brasileira.
Em 2014, esse conjunto de atividades alcançou 12,2 milhões de trabalhadores, cerca de 13,2% da força de trabalho ocupada no país. Por sua vez, os investimentos em construção mais que dobraram nos últimos anos, partindo de R$ 233,5 bilhões em 2007 (8,6% do PIB nacional) para R$ 582,5 bilhões em 2014 (10,5% do PIB nacional).“.
Crise no setor habitacional – construção civil
Segundo o indicador divulgado em abril, pela Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias), em fevereiro de 2016 o estoque de imóveis no Brasil foi a 111,3 mil unidades.
No trimestre de dezembro a fevereiro, foi vendido o equivalente a 18% da oferta do período. De acordo com o índice que considera dados de 19 empresas, no ritmo recente, seriam necessários cerca de 16,6 meses para vender a oferta total.
Entre dezembro e fevereiro, os cancelamentos de vendas (distratos) chegaram a 11 mil unidades. Os lançamentos de imóveis entre dezembro e fevereiro chegaram a 16,8 mil unidades, recuo anual de 8,6%. No primeiro bimestre de 2016 as vendas caíram 18,9% e recuaram 17% no acumulado do ano.
O cenário é pessimista, pois os juros estão elevados e o poder de compra do brasileiro recuou face à desaceleração econômica. A consequência natural será a retração no lançamento de construtoras (leia-se: desemprego e retração na construção civil e em sua cadeia produtiva, com impacto negativo na economia brasileira).
Proposta de alteração da MP 719/2016. Uso do FGTS em consonância com sua finalidade. Estímulo consistente e sustentado para a melhoria da Economia e mitigação da crise na Construção Civil.
O princípio da dignidade humana, plasmado na Constituição Federal (art. 1º, III), foi erigido como um Principio Fundamental, por sua indiscutível relevância. Por sua vez, a moradia registrada como um direito constitucional (art. 6º, caput). Mais adiante o art. 174 estabelece que cabe ao Estado, dentre outras funções, o incentivo da atividade econômica.
Após esses recortes da Carta Magna e da leitura do exposto até então, podemos afirmar em apertada síntese que: a) o direito à moradia relaciona-se diretamente com o princípio da dignidade humana; b) que a construção civil passa por grave crise; c) que as pessoas estão sem renda para aquisição da casa própria; d) que há forte retração no mercado imobiliário e, por conta disso, desemprego em massa e retração na construção civil; e) por consequência, impacto negativo em toda a cadeia produtiva da construção civil; f) cabe ao estado o incentivo da atividade econômica.
Entretanto, apesar do cenário negativo, vislumbramos uma possibilidade de incentivo à atividade econômica por meio da alavancagem na construção civil, mediante a aplicação de recursos próprios dos trabalhadores: a possibilidade do uso do FGTS para aquisição de imóvel “na planta” (em construção), ou aquisição de imóveis que se encontram em estoque por falta de comprador.
É de sabença geral que o FGTS pode ser usado na aquisição de um imóvel já construído, com “habite-se”. Porém, não é possível o uso do FGTS para o pagamento das parcelas mensais (ou partes dessas) ou intermediárias, durante a fase de construção. Também é vedado o uso do FGTS para a aquisição de um segundo imóvel.
Tais impedimentos geram uma situação teratológica: exclui do direito á aquisição da moradia própria pessoas que não podem arcar com o pagamento da parcela mensal apenas porque estão comprometidas com pagamento de aluguel. Ou seja, embora tenham rendimentos, não há sobra que lhes permita investir num imóvel “na planta”. Entretanto essas mesmas pessoas têm saldo de FGTS, cumulando mês a mês, mas só poderão utilizá-lo para compra de um imóvel pronto – e assim, continuarão a pagar aluguéis e continuarão excluídas desse mercado.
Por outro lado, pessoas que já têm um imóvel não podem adquirir outro imóvel com o FGTS. Entretanto, quando aposentarem, poderão sacar todo o FGTS – e certamente o farão -, sendo que esses recursos poderiam ser canalizados para a aquisição de imóveis, incrementando a construção civil – portanto, toda a cadeia produtiva.
Feitas essas colocações, apresentamos propostas alternativas às previstas na MP 719/2016, não excludentes entre si. Essas propostas têm o condão de incrementar a atividade econômica no segmento da construção civil, alavancando a economia em toda a cadeia produtiva, preservando e/ou gerando empregos e, tão importante quanto, efetivando a justiça social (direito à moradia) e preservando uma das principais áreas de atuação do FGTS: incentivo à construção habitacional.
Primeira proposta – pagamento das parcelas mensais de imóveis “na planta”
A ideia é permitir que os adquirentes de imóveis em construção possam utilizar os recursos existentes em suas contas vinculadas do FGTS para o pagamento das parcelas mensais/semestrais, ou partes dessas, durante a fase de construção. No caso de desistência do adquirente, os recursos retornam à conta vinculada. A garantia do retorno desses recursos dispendidos é o próprio imóvel. Dependendo do estágio da obra, ou das garantias já consolidadas, possibilidade de usar o FGTS para pagamento do sinal, ou parte deste.
Segunda proposta – uso do FGTS para aquisição do segundo imóvel
Evidente que a ideia, no caso da aquisição de um segundo imóvel, não é conferir uma “carta branca” a tal ponto que os recursos do FGTS venham a se exaurir. Mas, face o princípio da razoabilidade, porque não possibilitar o uso do FGTS para a aquisição do segundo imóvel – desde que em construção, pois a ideia é fomentar a atividade econômica – para pessoas que estão prestes a se aposentar? A razão é simples. Como dito antes, ao se aposentarem, essas pessoas terão direito ao saque total da conta vinculada, sendo esses recursos destinados, em boa medida, ao consumo de bens móveis e serviços, que não geram uma riqueza sustentada.
A proposta é possibilitar que pessoas que tenham um imóvel possam adquirir outro – exclusivamente em construção -, desde que se aposentem em determinado período de tempo. Por exemplo, apenas para o debate, poderão adquirir um segundo imóvel (em construção) com recursos do FGTS, pessoas que poderão se aposentar a partir de dois (ou três ou quatro) anos da data de assinatura do contrato.
Terceira proposta – uso do FGTS para pagamento do sinal - segundo imóvel
Essa proposta alcançaria as pessoas que já têm um imóvel (mas não estão prestes a se aposentarem). A essas pessoas seria permitido usar o FGTS para pagamento (apenas) do sinal, ou parte deste, para aquisição de imóvel em construção. Essa possibilidade atenderá as pessoas que têm condições de arcar com as parcelas mensais do imóvel em construção, mas não têm recursos em disponibilidade para pagamento do sinal. No caso de desistência (distrato), o recurso retorna à conta vinculada.
Quarta proposta – uso do FGTS para aquisição do segundo imóvel em outra localidade diversa daquela onde situa-se o primeiro imóvel
Aqui a ideia é possibilitar a aquisição de um segundo imóvel residencial, desde que em construção, para aquelas pessoas que, apesar de serem proprietárias de imóvel, foram transferidas (por necessidade de serviço) para outra localidade (município). Nessa hipótese poderia haver condição no sentido de que a transferência deve ser para outro Estado.
Conclusão
A possibilidade do uso do FGTS para pagamento das parcelas mensais ou intermediárias de imóveis em construção (“na planta”), ou de um segundo imóvel (também em construção) por parte de pessoas que estão prestes a atingir a data de aposentadoria, pode se constituir em poderoso instrumento para mitigar a crise no setor imobiliário/construção civil, sendo efetiva medida de apoio à economia brasileira.
Além disso, viabiliza o sonho da casa própria de pessoas que têm seus rendimentos comprometidos com o pagamento de aluguéis, embora sejam detentores de FGTS em contas vinculadas.