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Autogestões: judicialização e aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor

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No momento em que emerge o debate sobre a situação dos planos de saúde operados por autogestão, aventando-se reabrir uma câmara técnica na Agência Nacional de Saúde, é pertinente o debate sobre essas instituições, peculiares por natureza.

No momento em que emerge o debate sobre a situação dos planos de saúde operados por autogestão, aventando-se reabrir uma câmara técnica na Agência Nacional de Saúde[1], é pertinente o debate sobre a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de planos de saúde operados pelas autogestões.

O Código de Defesa do Consumidor, fundamental inovação legislativa da década de 90, definiu amplos direitos do consumidor, estabeleceu diretrizes para uma política nacional de relações de consumo, regulamentou a qualidade de produtos e serviços, as práticas contratuais, estabeleceu sanções administrativas às infrações à Lei e dispôs sobre a defesa do consumidor, em juízo. Para o CDC, o conceito de fornecedor é amplo e engloba todos aqueles que participam da colocação de produto e/ou serviço no mercado de consumo. A Lei 9.656/98, marco regulatório no setor de saúde suplementar, prevê a aplicação subsidiária do CDC aos contratos de planos de saúde.

As autogestões são espécie de operadora de plano de saúde caraterizadas pela ausência de finalidade lucrativa, pelo vínculo associativista, de pertencimento. São, em essência, associações mutualistas, por meio das quais os associados organizam-se para ter acesso a planos de saúde diferenciados e, também, participam dos órgãos colegiados de administração. Hoje, o mercado de saúde suplementar atende em torno de 5 milhões de vidas e enfrenta desafios como a judicialização.                  

Para o STJ, como a aplicabilidade do CDC aos contratos de saúde não foi excepcionada legalmente, todas as operadoras estão a ele submetidas, sendo irrelevante a natureza jurídica da entidade que presta serviços de saúde. Mesmo em operadoras sem fins lucrativos, a relação de consumo caracteriza-se pelo objeto contratado, que é a cobertura médico-hospitalar. Não obstante essa interpretação, ante aos impactos da judicialização nas autogestões, por não se constituírem como uma modalidade comercial típica, cabe ponderar alguns aspectos, tais como:

  • A organização das autogestões é voltada para o alcance de um objetivo comum, verificado nos estatutos: a assistência em saúde. Não seria uma relação associativa, ao contrário de uma relação jurídica de consumo?

  • Os serviços a que têm acesso os beneficiários são, de fato, ofertados no mercado de consumo, ou destinam-se a um grupo específico de associados com preços e cobertura diferenciados dada a finalidade associativista, não lucrativa?

  • O associado a uma autogestão “consome” serviços ou usufrui serviços recebidos em um ambiente jurídico e econômico diverso daquele tipificado como de consumo?

  • Há assimetria e vulnerabilidade diante de uma relação paritária, originada do vínculo entre o associado e a autogestão, e que não se desenvolve em ambiente de mercado/consumo?

Ainda nesse sentido e traçando um paralelo, destaque-se a aprovação da Súmula STJ 563, que reconhece a inaplicabilidade do CDC às entidades fechadas de previdência complementar. Entre os julgados que lhe deram origem, vejamos aquele proferido pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas, em 2014: “O Código de Defesa do Consumidor não é aplicável à relação jurídica mantida entre a entidade fechada de previdência privada e seus participantes, porquanto o patrimônio da entidade e respectivos rendimentos revertem-se integralmente na concessão e manutenção do pagamento de benefícios, prevalecendo o associativismo e o mutualismo, o que afasta o intuito lucrativo. Desse modo, o fundo de pensão não se enquadra no conceito legal de fornecedor, devendo a Súmula nº 321/STJ ser aplicada somente às entidades abertas de previdência complementar.”[2].

A Lei 9.656, ao regulamentar o setor de saúde suplementar e criar uma agência reguladora, conformou um mercado de regulação típico, caracterizado pela intervenção do governo. Referida lei excepciona alguns dispositivos não aplicáveis às operadoras classificadas na modalidade de autogestão. Ademais, a Resolução Normativa nº 137 da ANS, editada em 2006, dispõe sobre as entidades de autogestão no âmbito do sistema de saúde suplementar, considerando suas particularidades.

No momento em que as autogestões são impactadas pela legislação, por medidas regulatórias e por entendimentos jurisprudenciais relacionados ao setor, composto majoritariamente por empresas lucrativas, em um cenário econômico adverso, ao qual interessa a higidez desse mercado, é salutar a abertura de câmara técnica para debater sobre essas entidades, peculiares por sua própria natureza.  Quiçá o debate legislativo sobre a Lei 9.656/98, inclusive sobre a aplicabilidade do CDC, é oportuno neste momento. Para instigar o debate, e como reflexão, evoque-se o Princípio da Isonomia: a verdadeira igualdade consiste em tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida exata de sua desigualdade.


Notas

[1] http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/SAUDE/510744-ANS-ANUNCIA-GRUPO-PARA-ESTUDAR-PLANOS-DE-SAUDE-DE-AUTOGESTAO.html

[2] Súmula Anotada 563, disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp#TIT1TEMA0

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Sobre a autora
Jaqueline Resende Candido Mello

especialista em Direito Processual Civil e pós-graduanda em Direito Previdenciário. Assessora no Banco do Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CANDIDO, Jaqueline Resende Mello. Autogestões: judicialização e aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4823, 14 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50805. Acesso em: 2 nov. 2024.

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