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O agir comunicativo e a democracia deliberativa:

contribuições às políticas públicas educacionais no Brasil

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05/08/2016 às 13:32
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5 A DEMOCRACIA DELIBERATIVA DE HABERMAS E SUA APLICAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS

A concepção de democracia em Habermas recebe o caráter de deliberação como categoria de legitimidade democrática, que se assenta nas exigências de ampliação da participação dos indivíduos nos processos de deliberação e no fomento de uma cultura política democrática.

A democracia deliberativa é uma proposta que visa criar uma opção entre as concepções liberal e republicana de democracia, que tem entre si como diferença o papel atribuído ao processo democrático.

Na concepção liberal o Estado age como aparato de Administração pública e a sociedade como sistema estruturado em torno de uma economia mercadológica, de maneira que a vontade política dos cidadãos consubstancia-se na imposição de interesses privados e o Estado deve agir para garantir os interesses coletivos.

No modelo republicano, o processo democrático considera uma opinião social que represente a vontade dos atores sociais. Nessa perspectiva, a política não obedece aos procedimentos do mercado, mas às estruturas de comunicação pública orientada pelo entendimento mútuo, configuradas em um espaço público. A concepção republicana tem a vantagem de adotar uma postura de democracia radical, no sentido de auto-organização da sociedade pelos cidadãos que se comunicam entre si e não por arranjos entre interesses privados conflitantes. Contudo, tem a desvantagem do excesso de idealismo, pois fica presa a ideia de cidadãos que se orientam para o bem comum (HABERMAS, 1997).

O modelo deliberativo, por sua vez, acolhe elementos de ambos os lados e os integra de uma maneira nova e distinta concebendo a construção democrática apoiada em condições de comunicabilidade nas quais o processo político possa ter a pretensão de alcançar resultados racionalmente justificados, já que, nessas condições, o “[...] modo e o estilo da política deliberativa realizam-se em toda a sua plenitude [...]” (HABERMAS, 1997, p. 45). Dessa forma:

Se convertermos o modelo procedimental de política deliberativa no núcleo normativo de uma teoria da democracia produzem-se diferenças tanto com respeito à concepção republicana do Estado como uma comunidade ética quanto com respeito à concepção liberal do Estado como protetor de uma sociedade centrada na economia.

Nesse sentido, a teoria discursiva se utiliza de elementos de ambas as concepções (liberal e republicana) e os integra em um processo de tomada de decisões políticas democráticas por meio de discursos de autocompreensão, fundados no pressuposto de atingir resultados racionais e equitativos na vida coletiva, pois:

Conforme essa concepção a razão prática se afastaria dos direitos universais do homem (liberalismo) ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade (comunitarismo) para se situar naquelas normas de discurso e de formas de argumentação que retiram seu conteúdo normativo do fundamento de validade da ação orientada para o entendimento, e, em última instância, portanto, da própria estrutura da comunicação linguística. (HABERMAS, 1997, p. 46).

Destaca-se nesta concepção democrática o papel da autocompreensão como forma de esclarecimento e entendimento entre os sujeitos enquanto membros de um determinado contexto social. Este entendimento é fundamental para o relacionamento mútuo na vida coletiva em meio ao pluralismo cultural e social da atualidade:

[...] por trás das metas politicamente relevantes muitas vezes escondem-se interesses e orientações valorativas que de modo algum podem-se considerar constitutivos da identidade da comunidade em seu conjunto, isto é, de uma inteira forma de vida compartilhada intersubjetivamente. (HABERMAS, 1997, p. 44).

As negociações entre os sujeitos pressupõem a disponibilidade para a cooperação para que se possa chegar a acordos aceitos por todas as partes, ainda que por razões distintas. Assim, a política deliberativa precisa levar em consideração a pluralidade nas formas de comunicação e nas especificidades dos sujeitos conduzindo à formação de uma vontade que leve em consideração o equilíbrio dos interesses e compromissos que surjam de escolhas racionais. (HABERMAS, 1997).

Para Habermas (1997) a democracia deliberativa se constitui a partir de conjuntos de procedimentos e de atos, que tenham por base o discurso e a deliberação racional. O que determina a legitimidade é o processo de tomada de decisões políticas, frutos de discussão pública ampla e igualitária em que os participantes possam debater afim de que as decisões obtidas sejam assumidas por todos como suficientemente corretas e frutos de consensos em vista de interesses comuns à existência coletiva.

A democracia deliberativa se fundamenta racionalmente e isso significa a utilização da deliberação por parte dos cidadãos como participação política. Portanto, a participação discursiva dos interessados que são direta e indiretamente afetados pelas decisões que venham a ser tomadas garante a legitimidade destas. E isso necessariamente amplia a ideia de soberania popular, pois a construção de acordos mediados pelo uso da linguagem permite aos indivíduos que se reconheçam nas decisões tomadas, ampliando com o isso a prática da democracia.

Nesse sentido, a democracia deliberativa carrega consigo um potencial de fortalecimento do mundo da vida, uma vez que amplia as possibilidades de interferência participativa e faz com que os cidadãos se identifiquem com as decisões tomadas.  (HABERMAS, 1997).

A participação dos indivíduos nas questões de interesse comum auxilia a transformação da realidade e os educa politicamente para a ação política e social. Tem-se, pois, a ampliação das possibilidades de participação e construção coletiva, que torna a democracia deliberativa uma alternativa para o contexto atual do mundo, tendo em vista que “A democracia pressupõe essencialmente a liberdade de expressão e opinião pública, a divisão de poderes, a participação política, assim como formas diretas ou indiretas de participação política.” (RECK; THIER; MORAES, 2011, p. 70).

Nessa perspectiva a democracia realiza-se a partir da possibilidade de deliberação dos sujeitos envolvidos em determinado contexto social. Esta concepção não parte de uma visão utópica de sociedade justa, apenas possibilita que os concernidos sejam decididos mediante processos comunicativos a respeito de sua vida social concreta, livres de qualquer forma de coerção, o que caracteriza a emancipação.  A ideia de emancipação está associada a  criação de um processo comunicativo permanente entre os sujeitos que fazem acordos a respeito de questões que lhes são comuns.

Assim, a democracia deliberativa transfere o eixo da decisão para o processo de constituição da vontade pública, não ligada apenas a interesses de grupos que estejam eventualmente no exercício do poder político. Nesse contexto, a esfera pública ganha importância como espaço de formação da vontade popular livre dos imperativos institucionalizados uma vez que desenvolve os conteúdos nascidos das demandas do contexto social como um todo. Ela funciona como um fórum permanentemente aberto às discussões dos concernidos e permite a seleção do argumento a ser apresentado às esferas de poder político para, mediante pressão dos grupos sociais, exigir respostas às demandas  (HABERMAS, 1997).

A democracia deliberativa se baseia no respeito mútuo entre os indivíduos numa perspectiva igualitária, isto é, caracteriza-se por ser uma forma de governo em que cidadãos livres e iguais justificam suas decisões políticas mediante um processo em que as razões são aceitáveis e acessíveis a todos os concernidos. Para a real legitimidade democrática, é insuficiente pensar que uma cúpula da Administração Pública foi escolhida por representantes legitimados nas urnas, pois a eleição é somente um dos momentos democráticos e consubstancia somente um instrumento de escolha de governantes entre as opções políticas apresentadas.

Nesse sentido, de nada adianta a representação política se não houver a participação ativa dos cidadãos e sua ampla deliberação pública sobre os posicionamentos e políticas a serem adotados por eles. Como ressalta Young (2006, p. 155) “[...] a participação está estritamente ligada ao processo de harmonização da legitimidade representativa e, por isso, deve haver uma participação intensa dos cidadãos.”

A fim de viabilizar esta participação ativa dos cidadãos alguns instrumentos foram criados, como os conselhos gestores de políticas públicas, que são órgãos públicos de composição paritária entre representantes da sociedade e do Estado, que assumem atribuições consultivas, deliberativas e de controle social. Cada conselho se diferencia por sua paridade, que é a correlação de forças e alianças que devem ser estabelecidas para consolidar um determinado projeto ou política pública (PAULA, 2006).

Os conselhos gestores de políticas públicas são canais participativos, propiciadores de um novo padrão de relações entre o Estado e a sociedade, principalmente em nível municipal, já que, em tese:

(i) viabilizam a participação dos diferentes segmentos sociais na formulação das políticas sociais; (ii) possibilitam à população o acesso aos espaços onde são realizadas decisões políticas; (iii) criam condições para um mecanismo de vigilância sobre as gestões públicas, implicando em maior efetividade na prestação de contas do Poder Executivo.(GOHN, 2006, p. 9).

Com base na democracia deliberativa, os conselhos gestores de políticas públicas podem se consolidar como espaços de participação ativa dos cidadãos, garantindo transparência e ampla publicidade de todos os atos estatais a serem levados à apreciação dos conselhos e igualdade de condições de todos os participantes, o que inclui amparo de conhecimento teórico e político dos conselheiros e ampla capacidade inclusiva.

Assim, os conselhos gestores de políticas públicas funcionarão como órgãos públicos que se põem como redes de deliberação, contestação e argumentação e um espaço de produção coletiva com a participação dos potencialmente afetados pela decisão e  configurar-se-ão como órgãos que se prezam pelo esclarecimento recíproco e pela plena formação da opinião pública (HABERMAS, 2006).


6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerar a teoria do agir comunicativo como elemento essencial a ser considerado na formulação de políticas públicas educacionais no Brasil por meio de um modelo democrático deliberativo contribui para a construção de uma sociedade mais igualitária e menos hierarquizada.

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Nesse sentido, as proposições de agir comunicativo e democracia deliberativa de Habermas podem contribuir para uma mudança na maneira de conceber as políticas públicas de educação, tendo em vista que a educação é direito social e serviço público que impõe a garantia de que seja oferecida a todos, não se tratando apenas de igualdade de oportunidades, mas de inclusão social, de maneira que as políticas desenvolvidas neste contexto possam reduzir as distâncias existentes entre as diferentes posições sociais.

A teoria do agir comunicativo pauta-se em uma relação dialógica entre as partes que se relacionam, de maneira que os enunciados devem ser reconhecidos em um processo de cooperação. Dessa forma, os cidadãos somente podem prosseguir com seus objetivos em cooperação com os demais, ocasionando menos burocratização e maior eficiência dos serviços públicos prestados pela Administração.

A linha de raciocínio de Habermas  aponta  para o entendimento de oferecer soluções que não considerem o convívio social fruto de imposições institucionais e sistêmicas, mas que ofereça possibilidades de transformações sociais que se abram para o que emana do mundo da vida, ou seja, para que as organizações da sociedade civil tenham capacidade de intervenção política. Entende-se que as teorias da ação comunicativa e da democracia deliberativa fornecem, não só uma fundamentação para a existência de conselhos com participação popular, que intervêm na fixação de diretrizes de políticas públicas, mas mostram também que a consolidação destes espaços públicos autônomos, onde atuam os diversos grupos da sociedade civil, é condição básica para a solução de uma série de problemas que envolvem a educação no Brasil, em especial o ensino superior e os dilemas relacionados à inclusão social neste âmbito.

À luz da análise habermasiana, pode-se afirmar que a hipótese formulada neste estudo foi confirmada, pois as contribuições do agir comunicativo e da democracia deliberativa referem-se à possibilidade de maior participação dos sujeitos destinatários das políticas públicas em sua formulação e implementação. A existência dos conselhos gestores de políticas públicas são um caminho viável para promover contribuições significativas no que tange às políticas públicas educacionais, uma vez que pautam-se na razão comunicativa dirigida por processos de busca do entendimento e não por meios auto-regulados. Estes processos evidenciam que no âmbito das políticas públicas faz-se necessário promover mudanças que considerem os mecanismos de decisão que levem em conta a participação de lodos aqueles que sofrerão os efeitos desta ação.

É necessário, portanto, aprofundar os estudos e desenvolver mecanismos que reduzam a tendência centralizadora do sistema institucional de tomada de decisão. No âmbito das políticas públicas educacionais, especificamente no ensino superior, a consideração do agir comunicativo e da democracia deliberativa podem trazer profundas melhorias ao possibilitar, não somente maior participação dos sujeitos, como também a própria emancipação social a partir da reflexão crítica sobre o mundo da vida e sua inserção ativa neste contexto.

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Sobre o autor
João Deusdete de Carvalho

Advogado e Economista, Procurador Público, Professor Assistente da URCA/CE, Estudou pós-graduação em Direito Processual Civil pela UFPI e, Pós-graduação em Planejamento pela FAO, Estudou Mestrado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, João Deusdete. O agir comunicativo e a democracia deliberativa:: contribuições às políticas públicas educacionais no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4783, 5 ago. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51158. Acesso em: 25 nov. 2024.

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