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Análise das possibilidades jurídicas de promover alterações no registro civil dos transexuais

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25/05/2004 às 00:00
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4 Aspectos médicos e psicológicos

O transexualismo, conforme já definido, é um sentimento que a pessoa tem de pertencer ao sexo oposto ao constante do seu Registro de Nascimento. Assim, no que tange aos fatores psicológicos, o seu corpo lhe parece incompatível e incongruente. Busca, incessantemente, a correção de tal incompatibilidade através de meios hormonais e cirúrgicos que modifiquem sua aparência e, posteriormente, requer a retificação de seu Registro Civil.

Conforme salienta Tereza Rodrigues Vieira [20], o transexualismo é uma perturbação de identidade, sendo que seu comportamento visa única e exclusivamente, a "obtenção de um status pessoal e social (o transexual masculino se sente mulher e quer ser considerado como tal).

O transexual é visto e tratado, por familiares e amigos, como pertencente ao sexo de nascimento. Este é uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo indivíduo transexual, pois sente-se excluído da sociedade, que não compreende seu problema, isto é, não imagina a dor que a pessoa sente de ter aparência física (caracteres sexuais) de um sexo, mas pertencer psicologicamente ao sexo oposto.

Outro fator que incomoda, sobremaneira, o transexual (na maioria das vezes o feminino) é o aparecimento de características sexuais secundárias, principalmente o surgimento de seios, durante o período da puberdade.

Além disso, os contatos sexuais são muito raros, pois o transexual sente vergonha, não gosta de ver, nem de ser tocado na sua genitália. Entretanto, o fato de alguns permitirem e aceitarem os contatos sexuais, não impede o diagnóstico do transexualismo.

Muitas vezes ocorre de o transexual sofrer de forte depressão, pelo fato de não se aceitar como é, e de não ser aceito pela sociedade, como pertencente ao sexo oposto ao biológico. Tal ocorre pelo fato de que a incompreensão causada pela sociedade, ainda preconceituosa, cria uma atmosfera de vergonha e de solidão, que, muitas vezes, pode se transformar em depressão.

A depressão pode ser tão forte que leve a tentativas de suicídio, visto que o indivíduo entende que não o conhecem, pois não conseguem ver sua verdadeira identidade, mascarada por um corpo que não é adequado a sua identidade sexual.

A ocorrência de não correspondência entre o sexo aparente e o psicológico gera problemas de diversas ordens. Além de um profundo conflito individual, repercussões surgem nas áreas médica e jurídica, pois o transexual tem a sensação de que a biologia se equivocou com ele. Mesmo que possua todos as características orgânicas, em seu corpo, de um dos sexos, sua mente e seu psicológico, pendem ao sexo oposto.

O transexual passa por situações de profundo constrangimento ao assumir sua aparência, pois em seus documentos consta como ele sendo do sexo oposto ao que aparenta. Assim, muitas vezes, ao fazer compras e precisar usar cheque ou mesmo quando exerce sua cidadania, ao votar, necessário se faz a apresentação da carteira de identidade para demonstrar sua condição de transexual, situações extremamente vexatórias e humilhantes.

O transexual busca apenas a felicidade de poder viver como indivíduo pertencente ao sexo de sua psique. Para tanto, usa de todos os artifícios possíveis: ingere hormônios, veste-se como o sexo oposto ao seu, e, por derradeiro, procura ajuda médica para realizar a cirurgia de adequação do sexo.

Existem alguns requisitos, que, segundo Oliveira [21] devem estar presentes para o diagnóstico do transexualismo:

a) presença persistente do desejo de ser do outros sexo, não por obter qualquer tipo de vantagem sociocultural, mas sim pelo desconforto e o sentimento de total inadequação com seu sexo genético/biológico/anatômico;

b) diagnóstico excludente de condição intersexual física, hermafroditismo;

c) comprometimentos significativos no tocante ao convívio e relacionamento sexual, podendo gerar forte angústia, depressão, automutilações e tentativas de suicídio decorrentes da não aceitação do sexo genético/biológico/anatômico.

Após o diagnóstico do transexualismo, onde o paciente deve contar com mais de 21 anos, necessário se faz um período de tratamento de aproximadamente dois anos, com acompanhamento de uma equipe interdisciplinar formada por médico psiquiatra, cirurgião, psicólogo e assistente social, para que o transexual adapte-se às modificações da cirurgia. Além disso, é necessário que o transexual, neste período anterior a cirurgia, se vista e se comporte como o sexo oposto.

Presentes outros problemas que impeçam a realização da cirurgia, como por exemplo o alcoolismo, consumo de drogas,..., estes deverão ser solucionados, para posterior realização da intervenção cirúrgica.


5 Cirurgia para a pretendida adequação de sexo e os aspectos legais do transexualismo

Inicialmente cabe salientar que, apesar de defendido por muitos médicos, juristas e psicólogos, o tratamento do transexualismo, através de psicoterapia, onde se busca adequar o lado emocional do indivíduo ao seu sexo genético, não surte grandes efeitos. Na maioria das vezes, isto ocorre porque o próprio transexual não aceita o tratamento, sentindo que está preso a um corpo que não é seu, necessitando, dessa maneira, de uma cirurgia redesignadora para se adequar.

Nesse sentido a medicina está avançada, pois existe a possibilidade de realizar a chamada operação de transgenitalização ou cirurgia de adequação de sexo. Assim, presente um diagnóstico que conclua pelo transexualismo e características psicológicas do sexo oposto, a via cirúrgica é a melhor solução para o caso. A operação pode ser realizada em hospitais públicos ou particulares, independente da atividade de pesquisa, conforme Resolução n.º 1.652, de 6 de novembro de 2002, do Conselho Federal de Medicina.

Esta cirurgia não é modificadora do sexo, mas sim, uma operação de adequação do sexo biológico ao sexo psicológico, "reajustando o indivíduo ao meio, abrandando-se, desse modo, seu estado psico-social" [22]. Assim, não há como se considerar a cirurgia redesignadora como mutiladora, mas sim como reparadora.

Nesse sentido, Hilário Veiga de Carvalho [23], sabiamente se pronunciou, no conhecido caso Waldir Nogueira:

Ora, a função é que define o órgão; sem aquela, este órgão é inútil. Em Waldir Nogueira, os seus órgãos genitais externos eram inúteis. E, pior que inúteis, passaram a ser prejudiciais ao sentimento íntimo da personalidade de Waldir, desde que lhe apontaram um sexo que, psiquicamente, em todo o seu conjunto, só lhe causava repúdio, ao se sentir mulher, e ao sê-lo em diversos setores da sua morfologia e funcionalidade. Assim, Waldir Nogueira não foi castrado, em verdade, desde que não perdeu uma função que não possuía.

Requer, nesse momento, salientar que referida cirurgia não é condenada pelo Código de Ética Médica, que preceitua, em seu art. 51: "São lícitas as intervenções cirúrgicas com finalidade estética, desde que necessárias ou quando o defeito a ser removido ou atenuado seja fator de desajustamento psíquico".

E ainda, em seu art. 32, dispõe: "Não é permitido ao médico indicar ou executar terapêutica ou intervenção cirúrgica desnecessária ou proibida pela legislação do País".

Aqui, dois pontos hão de ser ressaltados: a) a necessidade da cirurgia redesignadora e, b) a existência de lei que proíba ou não tal intervenção.

Quanto à necessidade da cirurgia, esta existe, e muito, pelo fato de que a situação originária em muito afeta o psiquismo do transexual, causando-lhe sérios prejuízos morais. Além disso, conforme já explicitado, a operação de redesignação de sexo é a solução mais aconselhável, em vista que o próprio transexual nega qualquer tratamento psicoterápico, no sentido de adequar o sexo psicológico ao genético.

Referida necessidade se afirma no conceito atual de saúde, "que não cogita da caracterização de doenças, estas ou aquelas, mas, sim, do ‘bem-estar físico, psíquico e social’" [24] do cidadão.

Assim, o Estado deve proteger e proporcionar ao cidadão o seu bem-estar, pois previsto tanto no preâmbulo da Constituição Federal, que somente será alcançado, nos casos de transexualidade, se o indivíduo tiver ajustado seu sexo biológico ao psicológico, o que somente será possível, com a realização da cirurgia de adequação do sexo.

A Carta Constitucional previu, também, em seus art. 6.º, caput, o direito à saúde como um dos direitos sociais assegurados e o art. 196, caput dispõe que é dever do Estado o direito à saúde, que deve ser proporcionado a todos.

Com isso, o tratamento de adequação do transexual ao meio social é um direito à saúde, pois há um desajuste psicológico, onde a felicidade, interliga de forma harmônica o físico, o emocional, o comportamental, o sexual, o econômico, na busca de um todo maior que é o bem-estar do cidadão, uma vez que o transexual busca, na verdade, é a completude e a integridade de sua pessoa.

Quanto ao fato de existir ou não lei que proíba a intervenção cirúrgica no transexual, já foi dito que o Conselho Regional de Medicina permite, pois é para o bem do indivíduo. No entanto, com a entrada em vigor do atual Código Civil há que se discutir se, em seu art. 13, o legislador quis proibir a cirurgia transexual.

Nesse sentido, Sílvio Rodrigues [25], ensina:

O problema que se poderia propor no campo específico do Direito Civil, seria o da liceidade de tais operações em face da regra do artigo 13 do Projeto, que condiciona tal liceidade ao fato de não importarem em diminuição permanente da integridade física ou contrariarem os bons costumes. Entretanto, parece-me que só quem tem legitimidade para valer-se da ação de reparação de dano será o próprio paciente que dispôs do próprio corpo e, parece evidente que na hipótese da operação ser satisfatória, a vítima da intervenção jamais ingressará no pretório.

Aqui cabe ressaltar que o paciente é, ou pelo menos deve ser, advertido dos riscos da cirurgia, inclusive, da sua irreversibilidade, para evitar posterior arrependimento. Parece, no entanto, difícil que algum indivíduo transexual, que esteja convicto de sua vontade de adequação de sexo, possa vir a se arrepender da cirurgia, mesmo quando o resultado não seja o realmente esperado.

A Constituição Federal não veda a orientação sexual dos indivíduos, em seu art. 5.º, dispondo, no art. 199, § 4.º, que: "A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos ou substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento,.. ." Assim, mesmo com a vigência do art. 13 do Código Civil, a cirurgia não está proibida, pois assegurada pela Carta Magna, no artigo antes mencionado, visto que necessária ao tratamento do transexual.

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O permanente conflito a que se submete o transexual, ao viver em um corpo que julga ter sido um erro biológico, submete-o a uma condição marginal, um martírio diário. Essa situação não atende ao princípio maior da Constituição Federal, o da dignidade da pessoa humana, que é o objetivo do Estado, promover o bem-estar e felicidade de todos.

Para tanto, o Judiciário precisa colaborar, concedendo ao transexual o ajuste de sua identidade, para impedir que a infelicidade e a angústia promovam a indignidade que o indivíduo vivia antes da cirurgia de adequação do sexo.


6 A alteração do prenome e do sexo no Registro Civil

A cirurgia de redesignação do sexo não resolve todos os problemas do transexual, pois o Estado, mesmo após a adequação do sexo, muitas vezes nega o pedido de alteração do prenome e do sexo nos documentos do indivíduo.

Como ensina Luiz Alberto David Araujo [26]:

Ora, como poderia alguém passar por um processo cirúrgico, em busca da sua melhor adaptação, tentando a junção do sexo psicológico com o biológico e, ao mesmo tempo, ser considerado pelo Estado como do sexo originário?

Há incoerência evidente. Se a Medicina, a Psicologia e a Psiquiatria entendem que a cirurgia é necessária, como forma de eliminação da angústia, para o direito o indivíduo ainda viverá a mesma angústia.

O descompasso entre a identidade física e a jurídica espanta a todos e prejudica o transexual, que sofre constantes situações humilhantes, por portar documentos que o identifiquem como do sexo oposto ao aparente. Esta situação se resolveria com a concessão da retificação do registro civil do transexual, se fazendo a alteração do seu prenome e do seu sexo.

Entretanto, a lei brasileira ainda não prevê, expressamente esta possibilidade, protegendo o nome do cidadão como um elemento inerente ao direito personalidade, permitindo-se a modificação, conforme a Lei de Registros Públicos nos casos de erro de grafia ou quando o prenome expor seu portador ao ridículo (art. 55 e art. 58).

No entanto, nestes casos não há vedação expressa de nenhuma lei brasileira, restando em clara omissão legal, onde o juiz Vladimir Abreu da Silva [27], de Campo Grande, MG, citado por Maria Berenice Dias, muito bem ressalta:

Se a legislação não autoriza expressamente a mudança de sexo, perante o registro civil, em decorrência da transformação plástico-reconstrutiva da genitália externa, também não veda tal possibilidade, ou seja, a legislação é omissa a respeito da matéria. Em tais casos deve o juiz se valer dos princípios gerais de direito, notadamente aqueles insculpidos na Carta Magna.

Assim, o direito à identidade está constante na Constituição Federal, dentro do princípio da dignidade da pessoa humana.

Existem decisões favoráveis à concessão da retificação, como veremos:

E preciso, inicialmente, dizer que homem e mulher pertencem a raça humana. Ninguém é superior. Sexo é uma contingência. Discriminar um homem é tão abominável como odiar um negro, um judeu, um palestino, um alemão ou um homossexual. As opções de cada pessoa, principalmente no campo sexual, hão de ser respeitadas, desde que não façam mal a terceiros. O direito à identidade pessoal e um dos direitos fundamentais da pessoa humana. A identidade pessoal é a maneira de ser, como a pessoa se realiza em sociedade, com seus atributos e defeitos, com suas características e aspirações, com sua bagagem cultural e ideológica, é o direito que tem todo o sujeito de ser ele mesmo. A identidade sexual, considerada como um dos aspectos mais importantes e complexos compreendidos dentro da identidade pessoal, forma-se em estreita conexão com uma pluralidade de direitos, como são aqueles atinentes ao livre desenvolvimento da personalidade etc. Para dizer assim, ao final, se bem que não é ampla nem rica a doutrina jurídica sobre o particular, é possível comprovar que a temática não tem sido alienada para o direito vivo, quer dizer para a jurisprudência comparada. Com efeito em direito vivo tem sido buscado e correspondido e atendido pelos juizes na falta de disposições legais e expressa. No brasil, ai esta o art-4 da lei de introdução ao Código Civil a permitir a eqüidade e a busca da justiça. Por esses motivos é de ser deferido o pedido de retificação do registro civil para alteração de nome e de sexo. (resumo) caso Rafaela [28]

Portanto, diante de inúmeras decisões contraditórias e omissões na Lei, cabe ao julgador aplicar os princípios morais, da equidade e justiça, conforme afirma o desembargador Moacir Adiers [29]:

Com efeito, o direito vivo tem sido buscado e correspondido e atendido pelos Juízes, na falta de disposições legais e expressas. No Brasil, aí está o art. 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil a permitir a equidade e a busca da justiça.

Há, também, decisões contra a concessão da retificação, que baseiam-se no art. 348 do Código Civil, pelo qual não se pode requerer estado contrário àquele contido no registro de nascimento, salvo por prova de erro ou falsidade do registro. Aqui, cabe colacionar jurisprudência citada por Fabiana Marion Spengler [30], ao tratar sobre o tema:

REGISTRO PÚBLICO. ALTERAÇÃO DO REGISTRO DE NASCIMENTO. NOME E SEXO. TRANSEXUALISMO. SENTENÇA INDEFERITÓRIA DO PEDIDO. Embora para mudança de suas características sexuais, com a extirpação dos órgãos genitais masculinos, biológicos e somaticamente continua sendo do sexo masculino. Inviabilidade da alteração, face a inexistência de qualquer erro ou falsidade no registro e porque não se pode cogitar dessa retificação para solucionar eventual conflito psíquico com o somático. Apelação não-provida. Voto vencido.. .

Desta forma, apesar das contradições existentes na doutrina, ante a questão da permissão ou não da retificação do registro civil do transexual, o juiz deve atentar para a aplicação das melhores soluções aos casos concretos, evitando-se a marginalização do ser humano, com a aplicação cega da lei.

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Sobre a autora
Maitê Damé Teixeira

acadêmica do curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC,

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Maitê Damé. Análise das possibilidades jurídicas de promover alterações no registro civil dos transexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 322, 25 mai. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5176. Acesso em: 28 dez. 2024.

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