RESUMO: Há, nos mais diversos entes públicos brasileiros, um arraigado costume de exonerar servidoras exercentes de cargos em comissão durante ou logo após o período gestacional, utilizando como justificativa o princípio da supremacia do interesse público e a precariedade do vínculo funcional. O presente artigo aborda essa problemática sob a ótica do direito social de proteção à maternidade, pontuando posicionamentos jurisprudenciais modernos sobre o tema.
PALAVRAS-CHAVE: Direito de Proteção à Maternidade. Estabilidade Provisória. Servidor Público. Cargo em Comissão.
INTRODUÇÃO
O aparecimento dos direitos sociais, enquanto direitos fundamentais de igualdade, é fruto histórico da transformação de um Estado Liberal para um Estado Social. Eles simbolizam um período em que os indivíduos, antes preocupados apenas com a abstenção do Estado em seus direitos mais íntimos, agora passam a exigir das variadas entidades governamentais uma intervenção direta no domínio econômico e a consequente distribuição de renda por meio da prestação de serviços públicos.
No Brasil, o marco normativo para os direitos sociais foi a Constituição de 1934. Nela já era possível encontrar diversos direitos de características prestacionais, ou seja, variados dispositivos obrigavam o Estado a atuar positivamente para praticar políticas públicas de caraterísticas sociais. Dentre os artigos constitucionais, haviam aqueles que notadamente protegiam a gestante, garantindo-lhe, inclusive, o descanso antes e após o parto2.
O tema foi repetido nas constituições brasileiras posteriores, culminando na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF). Contudo, tendo em vista o vínculo jurídico precário e transitório dos cargos em comissão, os múltiplos entes políticos, enquanto materializadores da Administração Pública, mantêm a conduta de exonerar as servidoras durante o período gravídico.
Nessa senda, inicia-se uma colisão entre o direito de proteção à gestante e à criança e o direito do gestor público a organizar a estrutura administrativa sob sua responsabilidade. Esse enfrentamento deverá ser analisado sob o prisma da jurisprudência mais moderna.
1 DIREITO DE PROTEÇÃO À MATERNIDADE
Consoante estabelece o art. 6º da CF, são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. O art. 7º, por sua vez, traz as normas aptas a criar um patamar mínimo de direitos, com vistas a melhoria da condição social dos trabalhadores urbanos e rurais. Dentre eles, uma vez mais, está prevista a proteção à maternidade.
Especificamente, no inc. XVIII do art. 7º, observou-se a necessidade de obediência pelo empregador da licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias. Já, nos termos do art. 10, inc. II, alínea b do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, inc. I, da CF, fica vedada a dispensa da empregada gestante desde a confirmação da gravidez até 5 (cinco) meses após o parto, independentemente do desconhecimento do estado gravídico pelo empregador. Assim, ainda que pendente de lei complementar dispondo sobre esse direito, a normativa constitucional garante a estabilidade provisória a empregada gestante.
Licença gestante (licença-maternidade por gestação) e estabilidade provisória gestacional são, contudo, direitos distintos. Isso porque o primeiro é conferido à gestante para que ela possa repousar durante os últimos dias de sua gestação, preparar-se para o parto, bem como amamentar o bebê recém-nascido. Entretanto, para gozar da garantia constitucional de licença, é necessário que a servidora possua um vínculo laboral em vigor, o que somente se concebe com estabilidade. Interessa-nos, portanto, o segundo.
Na concepção de Amauri Mascaro Nascimento (2009, p. 384), estabilidade é:
[...] o direito do trabalhador em permanecer no emprego, mesmo contra a vontade do empregador, não sendo permitida a rescisão do contrato de trabalho enquanto inexistir uma causa que justifique a dispensa indicada pela lei. Destina-se, portanto, a impedir a dispensa imotivada arbitrária, abusiva.
O direito à proteção à maternidade também está previsto na Convenção nº 103 da Organização Internacional do Trabalho, ratificado pelo Brasil em 19653. Seu art. 6º prevê que é ilegal a dispensa da gestante4.
2 A PROBLEMÁTICA DA SERVIDORA COMISSIONADA
O servidor é pessoa legalmente investida em cargo público, que, por seu turno, é o conjunto de atribuições e responsabilidades previstas na estrutura organizacional. Os cargos na Administração Pública podem ser classificados quanto ao ângulo de garantias e características em vitalícios, efetivos e em comissão. Importa-nos estes últimos.
Cargos em comissão são aqueles que se revestem de caráter de provisoriedade (ausência de estabilidade) e possuem destinação específica para atribuições de direção, chefia e assessoramento.
Seguindo essa linha de raciocínio, destaca-se que o provimento é o ato administrativo que traduzirá o preenchimento de um cargo público vago, concretizando o ingresso do servidor ao serviço público (DI PIETRO, 2007, p. 559). Em se tratando de cargo em comissão, a nomeação (forma de provimento originária) será ato discricionário do administrador. É exatamente o que normatizou o legislador constituinte no inc. II do art. 375.
Não obstante a servidora encontrar-se em período gestacional, inúmeros gestores públicos as dispensam com base no princípio da supremacia do interesse público. A livre exoneração para cargos comissionados, ocasionaria a prescindibilidade de motivar o ato de desligamento. Bem por isso, há nítida colisão entre os interesses do administrador e da gestante. Fato resolvido pela evolução das decisões no âmbito dos tribunais superiores brasileiros.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) possuía um entendimento, fixado em súmula de jurisprudência n.º 244, inc. III, que a empregada com vínculo trabalhista temporário não teria direito à estabilidade provisória prevista no ADCT. Terminado o contrato no prazo previamente determinado pelas partes, mesmo grávida, a empregada perderia o direito manter seu laço laboral. Entretanto, em sessão realizada no dia 14 de setembro de 2012, o TST modificou radicalmente esse entendimento, passando a prever para tais situações que “a empregada gestante tem direito à estabilidade provisória prevista no art. 10, inciso II, alínea “b”, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, mesmo na hipótese de admissão mediante contrato por tempo determinado”.
Tal guinada jurisprudencial tem por azo a harmonização com o entendimento fixado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que, por sua vez, afastou a incompatibilidade da estabilidade provisória da gestante contrata a título precário, ou contrato com prazo certo de encerramento. Vejamos os precedentes, a redação da ementa do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 634093:
As gestantes – quer se trate de servidoras públicas, quer se cuide de trabalhadoras, qualquer que seja o regime jurídico a elas aplicável, não importando se de caráter administrativo ou de natureza contratual (CLT), mesmo aquelas ocupantes de cargo em comissão ou exercentes de função de confiança ou, ainda, as contratadas por prazo determinado, inclusive na hipótese prevista no inciso IX do art. 37 da Constituição, ou admitidas a título precário – têm direito público subjetivo à estabilidade provisória, desde a confirmação do estado fisiológico de gravidez até cinco (5) meses após o parto (ADCT, art. 10, II, “b”), e, também, à licença-maternidade de 120 dias (CF, art. 7º, XVIII, c/c o art. 39, § 3º), sendo-lhes preservada, em consequência, nesse período, a integridade do vínculo jurídico que as une à Administração Pública ou ao empregador, sem prejuízo da integral percepção do estipêndio funcional ou da remuneração laboral.6
Especificamente quanto às servidoras públicas detentoras de cargo em comissão, colacionamos jurisprudência pacificada do STF, ratificando a compatibilidade entre estabilidade provisória da gestante e servidoras contratadas a título precário:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. CARGO EM COMISSÃO. SERVIDORA GESTANTE. EXONERAÇÃO. DIREITO À INDENIZAÇÃO. 1. As servidoras públicas e empregadas gestantes, inclusive as contratadas a título precário, independentemente do regime jurídico de trabalho, têm direito à licença-maternidade de cento e vinte dias e à estabilidade provisória desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Precedentes: RE n. 579.989-AgR, Primeira Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, Dje de 29.03.2011, RE n. 600.057-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Eros Grau, Dje de 23.10.2009 e RMS n. 24.263, Segunda Turma, Relator o Ministro Carlos Velloso, DJ de 9.5.03. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF. 1ª Turma. AI-AgR 804574. Relator Ministro Luiz Fux. Julgado em 30/08/11).
Agravo regimental no recurso extraordinário. Servidora gestante. Cargo em comissão. Exoneração. Licença-maternidade. Estabilidade provisória. Indenização. Possibilidade. 1. As servidoras públicas, em estado gestacional, ainda que detentoras apenas de cargo em comissão, têm direto à licença- maternidade e à estabilidade provisória, nos termos do art. 7, inciso XVIII, c/c o art. 39, §3, da Constituição Federal, e art. 10, inciso II, alínea b, do ADCT. 2. Agravo regimental não provido. (STF. 1ª Turma. RE-AgR 420839. Relator Ministro Dias Toffoli. Julgado em 20/03/2012) (grifo nosso)
Conquanto existam críticas pontuais na doutrina7, nota-se a prevalência do direito social de proteção à maternidade em detrimento dos interesses da Administração Pública (princípio da supremacia do interesse público). Ao passo em que haveria um completo desamparo à servidora e sua prole, reduzindo bruscamente sua remuneração, o Poder Judiciário busca sabiamente evitar o prejuízo irreversível à gestação e aos primeiros momentos de vida da criança. Privilegia-se, por conseguinte, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.
Mesmo diante da resistência de alguns gestores, esse posicionamento deve ser seguido pelo Estado em todos os âmbitos de poder.
Quanto a apresentação do atestado médico após o suposto término do vínculo temporário, deverá ser reconhecido o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade. É o que diz a parte final da ementa do já mencionado Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 634093:
Se sobrevier, no entanto, em referido período, dispensa arbitrária ou sem justa causa de que resulte a extinção do vínculo jurídico- -administrativo ou da relação contratual da gestante (servidora pública ou trabalhadora), assistir-lhe-á o direito a uma indenização correspondente aos valores que receberia até cinco (5) meses após o parto, caso inocorresse tal dispensa.
Por fim, merece destaque que, encerrado o prazo de estabilidade a que tem direito a gestante, pode o ente público, enquanto contratante, formalizar o término do vínculo comissionado. A estabilidade gestacional não gera direitos ad aeternum.
CONCLUSÃO
Após o uso do mecanismo da ponderação de princípios em rota de colisão e diante da necessidade de amparo à gestante e ao seu filho durante o período gravídico e logo após ele, os tribunais superiores consagram o direito à estabilidade provisória para a servidora pública ainda quando ocupante de cargo em comissão.
Não obstante a importância do poder discricionário para gestão da Administração, nessa situação de confronto, a jurisprudência pátria garantiu, portanto, a aplicação do art. 10, inc. II, alínea b do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias às servidoras comissionadas, tendo em visto o respeito ao direito fundamental social de proteção à maternidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25. ed. Editora Atlas, 2012.
COSTA, Gustavo D' Assunção. Estabilidade provisória à gestante ocupante de cargo em comissão: crítica à posição do STF. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3298, 12 jul. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22196>. Acesso em: 11 ago. 2015.
DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. 2007
FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. 4. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2013
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 34. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
1 Procurador do Município de Beberibe, Estado do Ceará. Pós-Graduando em Direito e Processo Constitucional pela Escola Superior de Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC).
2 Art. 121. § 1º […] h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte;
3 Através do Decreto nº 58.820, de 14 de julho de 1966.
4 Art. VI — Quando uma mulher se ausentar de seu trabalho em virtude dos dispositivos do art. 3 da presente convenção, é ilegal para seu empregador despedi-la durante a referida ausência ou data tal que o prazo do aviso prévio termine enquanto durar a ausência acima mencionada.
5 Art. 37 […] II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
6 STF-RE 634093 AgR/DF, AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Julgamento: 22/11/2011 Órgão Julgador: Segunda Turma.
7 A esse respeito, COSTA, Gustavo D' Assunção. Estabilidade provisória à gestante ocupante de cargo em comissão: crítica à posição do STF. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3298, 12 jul. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22196>. Acesso em: 11 ago. 2015.