Frisada na parte anterior a filiação de nossa Lei Maior ao paradigma substancial, conclui-se que incumbe à jurisdição constitucional brasileira não somente o zelo pelas estruturas procedimentais democráticas político-deliberativas nela sedimentadas, como também a tutela das imposições constitucionais (positivas ou negativas) de cunho material, em especial as referentes aos direitos fundamentais.
O controle da compatibilidade vertical dos atos dos Poderes Legislativo e Executivo, a cargo do Poder Judiciário, assume dessa maneira feição bastante ampla, o que desperta inevitavelmente a atenção para as questões de sua legitimidade democrática, da virtual tensão entre os âmbitos das funções estatais e dos riscos do chamado ativismo judicial.
Com efeito, como justificar que o Poder no qual via de regra é investida uma exclusiva categoria de pessoas, isto é, os bachareis em Direito, e que é composto, em todos os seus órgãos e instâncias, por membros não-eleitos diretamente pelo povo, mas selecionados por meio de concursos públicos ou nomeados pelos chefes dos Poderes Executivos da União, dos Estados e do Distrito Federal, possa fulminar de invalidade atos e deliberações oriundos dos detentores de mandatos populares ou cominar a estes determinadas ações ou omissões? De que fontes o Poder Judiciário haure sua legitimação democrática? Até que ponto lhe é dado desempenhar seus misteres sem invadir as esferas de competências reservadas ao Legislativo e ao Executivo? E como evitar que posturas expansivas na interpretação e aplicação direta da Constituição abram margem a subjetivismos, a voluntarismos e ao arbítrio, instaurando uma verdadeira ditadura judicial?
Nos marcos do modelo albergado pela Constituição da República de 1988, é possível identificar e sistematizar três fontes primordiais que conferem à jurisdição constitucional sua legitimidade democrática (LIMA, 2013, p. 62-68).
A primeira delas diz respeito ao núcleo essencial da atividade típica que se reconhece à função jurisdicional no Estado Democrático de Direito, razão por que parece conveniente denominá-la funcional-material. De acordo com Luigi Ferrajoli (2004, p. 25-27), as concepções da validade das normas no Estado constitucional e da relação entre a democracia política (ou formal) e a democracia substancial se refletem em um reforço do papel da jurisdição e em uma nova e mais robusta legitimação democrática do Poder Judiciário e de sua independência. Isto é, os desníveis entre normas, que estão na base da existência de normas inválidas, e, por outro lado, a incorporação dos direitos fundamentais no estrato constitucional, transformaram a relação entre o juiz e a lei e vieram a assinalar à jurisdição uma função de garantia do cidadão frente às violações de suas prerrogativas essenciais por parte dos Poderes Públicos.
Nesta sujeição do juiz à Constituição e, em consequência, em seu papel de garante dos direitos constitucionalmente estabelecidos estão os principais fundamentos atuais da legitimação da jurisdição e da independência do Judiciário em face do Legislativo e do Executivo, ainda que sejam, ou precisamente porque são, Poderes de maiorias. Os direitos fundamentais, sobre os quais se assenta a democracia substancial, exatamente porque estão assegurados a todos e inclusive contra as maiorias eventuais, servem para embasar, melhor que o velho dogma positivista da sujeição à lei, a independência do Poder Judiciário, que está especificamente concebido para a garantia dos mesmos.
Por conseguinte, o fundamento da legitimação da jurisdição constitucional não é outro senão o valor da igualdade como igualdade em direitos: a garantia dos direitos fundamentais exige um juiz imparcial e independente, subtraído de qualquer vínculo com os Poderes de maiorias e em condições de censurar, como inválidos ou ilícitos, os atos mediante os quais aqueles se exercem. Esta legitimação não tem nada a ver com a da democracia política, ligada à representação, e nem deriva da vontade da maioria, mas unicamente da intangibilidade dos direitos fundamentais, sendo portanto uma legitimação de natureza substancial.
Incumbe ao juiz constitucional fiscalizar tanto o legislador ordinário quanto o administrador público, quando violem a Constituição, independentemente do mérito dos atos legislativos, executivos ou administrativos (CAMBI, 2009, p. 212).
Essa fonte funcional-material de legitimidade democrática, além de significar corolário lógico da estrutura escalonada do ordenamento jurídico e da posição de superioridade e prevalência da Lei Maior e dos direitos fundamentais nela insculpidos relativamente aos atos produzidos pelos Poderes Legislativo e Executivo, exsurge de forma positiva dos seguintes dispositivos da Constituição de 1988: art. 5º., caput (isonomia e inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade) e inciso XXXV (inafastabilidade do controle jurisdicional); art. 36, inciso III, combinado com o art. 34, inciso VII (representação interventiva do Procurador-Geral da República perante o Supremo Tribunal Federal para assegurar a observância, pelos Estados, dos princípios constitucionais sensíveis); art. 97 (previsão da declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público pelos tribunais, exigindo para tanto o quorum de maioria absoluta dos seus membros ou dos membros dos respectivos órgãos especiais); art. 102, caput e seus incisos I e III e § 1º. (missão do Supremo Tribunal Federal de guardião da Constituição e competências originárias e recursal relacionadas com o controle de constitucionalidade); art. 103 (mecanismos processuais para o controle concentrado de constitucionalidade); e art. 125, § 2º. (previsão do controle de constitucionalidade de leis e atos normativos estaduais e municipais em contraste com as Constituições Estaduais) (LIMA, 2013, p. 63-64).
A próxima parte se dedicará ao estudo da segunda fonte que confere à jurisdição constitucional sua legitimidade democrática, a qual denominamos de processual.
REFERÊNCIAS
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez e Andrea Greppi. 4. ed. Madri: Trotta, 2004.
LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Tutela constitucional do acesso à justiça. Porto Alegre: Núria Fabris, 2013.