Caminhando ao encerramento do tema do qual temos nos ocupado nas partes deste texto, cabe frisar que Luís Roberto Barroso (2012, p. 6) esclarece o que se deve entender por ativismo judicial e quais as suas causas, características e relações com a judicialização: “A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Em todos os casos referidos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.”
A postura ativista, por conseguinte, está associada a uma atuação mais incisiva do Poder Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência nos âmbitos de atribuições do Legislativo e do Executivo, manifestando-se por meio de diferentes condutas, tais a aplicação direta da Lei Maior a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário, a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição, bem assim a imposição de ações ou abstenções aos Poderes Públicos, notadamente no que tange a políticas públicas (BARROSO, 2012, p. 6).
Pode-se observar que a judicialização da política é atualmente inevitável em nosso país, dados o caráter analítico da Carta Magna de 1988 e o amplo acesso ao Poder Judiciário que ela garantiu. Ao introjetar a disciplina de determinadas matérias (ainda que prima facie de índole política) e lhes conferir assim feição normativa da mais alta estatura, a Constituição institui critérios jurídico-normativos para a avaliação de condutas a elas relacionadas, cria situações subjetivas ativas e passivas e fomenta pretensões suscetíveis de serem deduzidas em juízo. Ademais, devido à expansão do controle jurisdicional e do universo dos legitimados a invocá-lo, que não mais engloba apenas os titulares dos interesses substanciais contrariados ou insatisfeitos, tendo sido acrescido de outros órgãos e entidades aos quais se abrem as vias das ações coletivas e dos instrumentos de controle concentrado de constitucionalidade, é certo que qualquer ato comissivo ou omissivo dos Poderes Legislativo e Executivo pode ser questionado e submetido à apreciação do Judiciário, que verificará sua conformidade com a ordem jurídica como um todo, em especial com o estrato constitucional, e concluíra, em caso positivo, por sua validade ou licitude, ou, em caso negativo, por sua invalidade ou ilicitude, julgando a causa de acordo com tal conclusão. Trata-se de regular exercício da atividade típica do Poder Judiciário, que a este não é possível declinar quando presentes os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo e as condições da ação. Não há aí nenhuma invasão ou usurpação de competências alheias (LIMA, 2013, p. 70-71).
Destarte, o cerne da controvérsia não se situa na judicialização dos megaconflitos em si mesma, já que é uma virtualidade em um sistema que resguarda a universalidade da jurisdição, porém se desloca para outro foco, o dos excessos que, a partir daquela judicialização, podem vir a ser cometidos, mormente quando a conduta judicial revelar incapacidade de recepcionar e mensurar os elementos no entorno da questão central, que com ela compõem um só contexto, ou quando faltar ao magistrado percepção mais acurada e sensível no tocante ao balanço entre custo e benefício ou em face dos contingenciamentos financeiro-orçamentários a que estão sujeitos os órgãos e entes demandados (MANCUSO, 2011, p. 83). Por isso, avulta a importância de serem tomados em conta pelo Judiciário, sempre que instado a se pronunciar sobre questão de natureza política, os critérios de sua capacidade institucional para melhor resolvê-la, em detrimento do locus deliberativo primariamente encarregado, e dos efeitos sistêmicos de sua decisão, isto é, dos perigos de repercussões externas imprevisíveis e indesejadas (BARROSO, 2012, p. 16-17; MANCUSO, 2011, p. 83-85).
Tais cautelas, entretanto, não devem servir para intimidá-lo ou constrangê-lo no desempenho de seu nobre mister de guardião máximo da ordem constitucional.
Têm razão Ronald Dworkin (2001, p. 30-32) e Eduardo Cambi (2009, p. 246-247) ao asseverarem que a transferência de poder político ao Judiciário certamente fará com que a maioria dos cidadãos, notadamente aquela imensa parcela destituída de privilégios, ganhe mais do que perca. De fato, conquanto o aparato judicial se mostre imperfeito, em muitos casos será o último refúgio para a exigência de satisfação dos direitos fundamentais dos excluídos, não raras vezes completamente ignorada pelo Legislativo e pelo Executivo. Essa pretensão, deduzida perante os órgãos jurisdicionais, ao menos será analisada e receberá decisão fundamentada, ainda que contrária à sua tutela. Portanto, a singela possibilidade da minoria de acessar o Poder Judiciário em busca de proteção aos seus interesses jurídicos já consubstancia um eficaz instrumento para impedir a ditadura da maioria. A jurisdição constitucional, assim, é capaz de estabelecer um compromisso constante entre a maioria e a minoria, em favor da paz social. Outrossim, a sua intervenção não é irrestrita, dependendo, além da provocação dos legitimados, da constatação da infringência de preceitos da Lei Maior, mormente daqueles que consagram direitos fundamentais, hipótese em que não poderá se eximir de tutelá-los.
Em suma, trata-se da defesa de um ativismo judicial responsável, comprometido com a implementação das disposições constitucionais e com a efetivação dos direitos fundamentais, especialmente os de caráter social componentes do mínimo existencial, todavia ciente das limitações institucionais e técnicas inerentes ao Poder Judiciário e da necessidade de respeitar o jogo democrático e de motivar consistentemente as decisões que impliquem censura aos atos comissivos ou omissivos dos outros Poderes Públicos (CAMBI, 2009, p. 312).
Dentro desse modelo ideal que se preconiza, algumas diretrizes merecem nortear o comportamento do juiz constitucional: 1) ele só deve agir em nome da Constituição e das leis, e não por vontade política própria; 2) deve guardar deferência relativamente às decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de validade das leis; e 3) não deve perder de vista que, embora não eleito, o poder que exerce é representativo (emana do povo e em seu nome deve ser exercido), razão pela qual sua atuação haverá, na medida do possível, que estar em sintonia com o sentimento social, porém sem resvalar para o populismo, posto que a conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, são condição para o funcionamento do constitucionalismo democrático (BARROSO, 2012, p. 14).
É possível afirmar, mormente com base na síntese feita por Ada Pellegrini Grinover (2009, p. 114-116) do entendimento jurisprudencial acerca da possibilidade de efetivação direta de direitos fundamentais prestacionais e de implementação de políticas públicas pelo Poder Judiciário, que os juízes e tribunais brasileiros, inclusive o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, têm prevalentemente adotado essa postura ativista, que pressupõe a compreensão substancialista da Constituição da República. Ademais, têm os julgadores individuais e colegiados se preocupado em observar critérios sólidos e bem alicerçados na apreciação de tais questões, sem olvidar a necessidade de dar concretude às disposições constitucionais, o que demonstra que, na grande maioria dos casos, o ativismo judicial vem sendo exercido com a responsabilidade que aqui se preconizou. Assim é que o Pretório Excelso, por exemplo, coloca como requisitos para que o Judiciário intervenha em políticas públicas, até como imperativo ético-jurídico: 1) o limite fixado pelo mínimo existencial a ser garantido ao cidadão; 2) a razoabilidade da pretensão individual/coletiva deduzida contra o Poder Público; e 3) a existência de disponibilidade financeira do Estado para fazer frente às prestações positivas dele reclamadas (reserva do possível) (ADPF n. 45-9, rel. Min. Celso de Mello, precedente trazido na obra citada).
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf> Acesso em: 26 jan. 2012.
CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
GRINOVER, Ada Pellegrini. O controle de políticas públicas pelo Poder Judiciário. In: SALLES, Carlos Alberto de (Coord.). As grandes transformações do processo civil brasileiro: homenagem ao professor Kazuo Watanabe. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 109-134.
LIMA, Thadeu Augimeri de Goes. Tutela constitucional do acesso à justiça. Porto Alegre: Núria Fabris, 2013.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Acesso à justiça: condicionantes legítimas e ilegítimas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.