3 A (IM)POSSIBILIDADE DE RELATIVIZAÇÃO DO SIGILO DE IDENTIDADE DO DOADOR FRENTE AO DIREITO DE CONHECER A PRÓPRIA FILIAÇÃO
A questão que traz o envolvimento do filho em busca de conhecer sua identidade genética é bastante frágil. Isto, pois, mesmo que o sujeito já tenha uma relação sócio-afetiva com o pai ou a mãe que consentiu uma inseminação heteróloga, por conta de uma infertilidade, ainda assim poderá ter o desejo, ou mesmo uma necessidade, em descobrir suas origens, para investigar e reconhecer sua paternidade biológica (SOUSA, 2006, p. 21). Todavia, parte da doutrina defende o direito ao sigilo do terceiro doador, alegando ser esta procura pela identidade biológica uma convenção ultrapassada no Direito Civil contemporâneo. Afirma o autor:
A pretendida alegação de que a criança tem ‘direito’ a conhecer sua origem genética realça expressivamente a paternidade biológica (matéria já ultrapassada no direito de filiação mais moderno) quando é sabido que, atualmente, a paternidade afetiva vem se impondo de maneira indiscutível". Além do referido argumento, outros são citados pelo autor, na defesa do sigilo do doador: a) Pode haver maior respeito à dignidade humana no não conhecimento da origem genética de alguém, do que neste conhecimento. b) Defender o direito à ação de investigação de paternidade contra o doador do sêmen seria defender que todas as crianças adotadas tenham direito à buscar sua origem genética. c) O caos se instauraria, pois tendo um pai registral e conhecendo o pai biológico, de quem a criança herdaria? Poderia demandar alimentos contra qual dos pais? Adotaria o nome do pai biológico ou do afetivo? d) O anonimato evita que, tanto o doador como a criança, procure estabelecer relações com vistas à obtenção de meras vantagens pecuniárias. (LEITE apud SOUSA, 2006, p. 21-22).
Na doutrina do Direito de Família atual, tem-se firmado “suas diretrizes com fundamento na “desbiologização” da filiação, situação em que há que ser preservado o anonimato do doador do material genético, devendo o guardião dos dados do doador fornecê-los em segredo de justiça”, ou seja, mantendo em sigilo contra qualquer publicidade “indesejada ou desnecessária” (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18).
As aludidas autoras afirmam, também, que a quebra do direito do sigilo fere o princípio da dignidade da pessoa humana em relação ao doador dos gametas, fazendo analogia à casos envolvendo crianças adotivas que, porventura, queiram descobrir sua origem genética o que poderia acarretar em situações conflitantes “tais como: direitos sucessórios, direito a alimentos e uso do nome, e ainda antevê a possibilidade de pai ou filho consanguíneo estreitarem laços de afeto apenas com intuito de obterem proveito econômico” (LEITE apud GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18).
3.1 Posições doutrinárias e entendimentos Jurisprudenciais
Todavia, o direito do filho provido de inseminação heteróloga descobrir sua verdadeira origem genética se trata de um direito de personalidade à identidade (CHINALETO apud GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18). Dessa forma, dizem ainda as autoras, que este direito é garantia constitucional para a criança adotiva ou filho de pais sócio-afetivos que consentiram a inseminação assistida:
Pode-se entender também o direito ao conhecimento da origem genética como decorrente do disposto no art. 227, § 6º da Constituição Federal de 1988, que indica que todos os filhos terão os mesmos direitos e qualificações, assim sendo, deve-se dar à criança gerada por reprodução assistida heteróloga o direito de saber sua origem da mesma forma que outro indivíduo nascido de relações sexuais tem conhecimento. (CHINALETO apud GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18-19).
Nesse sentido, para a posição majoritária, entende-se que existe, como garantia constitucional, a “possibilidade de investigar a verdade biológica do filho socioafetivo, pois o direito à identidade genética não significa a desconstituição da paternidade dos pais sócio afetivos”. Esse entendimento é pautado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade e adequação os quais asseguram o direito de personalidade ao filho que deseja conhecer sua origem biológica (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008).
A esse respeito, existe jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no seguinte sentido:
APELAÇÃO CÍVEL. INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA.
O direito à apuração do verdadeiro estado de filiação biológico torna imprescritível a investigatória de paternidade, permitindo o conhecimento da real origem da pessoa, sem que isso guarde relação com sua idade. A certeza, porém de filiação socio-afetiva entre o investigante e seu pai registral afasta a possibilidade de alteração do assento de nascimento do apelante, bem como qualquer pretensão de cunho patrimonial. A instrução deverá prosseguir unicamente com o fito de esclarecer a questão da origem biológica. (RIO GRANDE DO SUL, 2005)
Em outras palavras, a Corte de Justiça acompanha a corrente doutrinária de que este direito assegura apenas conhecer sua paternidade biológica, não desconstituindo sua filiação com seus pais sócio-afetivos, ou seja, havendo impedimento tanto judicial quanto jurisprudencial de exigir quaisquer direitos sucessórios do pai biológico (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008, p. 18-19).
4 CONCLUSÃO
Partindo do pressuposto que o direito à própria identidade é garantia constitucional, demonstra-se necessário uma ponderação a seu respeito, em face da garantia de sigilo do doador, na melhor interpretação da Constituição Federal e no Direito Civil vigente. Com a inclusão e centralidade dos direitos fundamentais presentes na CF/88, é assegurado a igualdade sobre o direito de filiação, em que o filho, seja ele gerido de qualquer forma, ou mesmo adotivo, pode investigar sua paternidade reconhecendo sua filiação biológica ou, simplesmente, aceitar sua filiação sócio-afetiva.
Porém, a doutrina majoritária já firmou seu entendimento no sentido de que são as relações de afeto e sentimentos que unirão pais e filhos, não desconsiderando a opção do próprio filho em escolher buscar por uma verdade biológica ou não.
Nesse contexto, o Direito Civil contemporâneo firma seu entendimento no sentido de que o direito de filiação não se trata mais apenas de relações provindas de uma união biológica; havendo uma evolução para o reconhecimento das mais variadas formas de relações de afeto. Isso significa que, assegurado constitucionalmente, a afetividade não está associada ao sangue, mas se trata da relação de convivência que une uma família, sendo que, em muitos casos, uma relação sócio-afetiva, entre pais e filhos, demonstra-se muito mais sólida e pacífica do que muitos relacionamentos entre famílias que constituem filiação biológica.
Isso significa que, citando mais uma vez Gasparoto e Ribeiro (2008), o afeto pode surgir da convivência familiar, da realidade social da pessoa servindo como objetivo de garantir a felicidade, não somente na integração da família, mas englobando todas as pessoas que estão em sua volta.
Dessa forma, conclui-se que um filho gerado de uma inseminação assistida heteróloga não descaracteriza a constituição de uma relação parental sócio-afetiva, em que o pai sócio-afetivo já é considerado por lei sendo o único pai da criança.
Tal direito tem sua base nos princípios da afetividade além, é claro, do melhor interesse do menor e que, havendo este reconhecimento sócio-afetivo, qualquer vínculo biológico, por analogia, é excluído. Ainda assim, deve ser garantido ao filho de uma inseminação assistida heteróloga, o direito constitucional de investigar sua paternidade biológica, mesmo havendo uma proibição de identificação do doador.
Tendo em vista a dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos da República, a conclusão é a de que deve ser garantido ao filho o conhecimento de sua própria filiação, tomando apenas como relativa à garantia ao anonimato assegurada aos doadores de material genético.
REFERÊNCIAS
CASTANHO, Maria Amélia Belomo. O planejamento familiar, o biodireito e a exclusão social - uma análise acerca da produção independente. Revista Eletrônica da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná n. 1 – Jan/Jul 2008. Disponível em: <https://pesquisandojuridicamente.files.wordpress.com/2010/09/o-planejamento-familiar-o-biodireito-e-a-exclusao-social-uma-analise-acerca-da-producao-independente.pdf> acesso em: 07 set. 2015.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n° 1358/98. Adota normas éticas para utilização das técnicas de reprodução assistida. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1992/1358_1992.htm> Acesso em: 06 Set. 2015
GASPAROTTO; RIBEIRO, Beatriz Rodrigues. Filiação e biodireito: uma análise da reprodução humana assistida heteróloga sob a ótica do código civil. Disponível em: , http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/04_819.pdf> acesso em: 07 set. 2015.
RIBAS. Ângela Mara Piekarski. Aspectos contemporâneos da reprodução assistida. Âmbito jurídico, 2007. Online. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2985> Acesso em: 04 Set. 2015
RIO GRANDE DO SUL.Acórdão nº 70009550500. Tribunal de Justiça do RS. Sétima Câmara Cível. Publicado e disponibilizado em 23 de Fevereiro de 2005. Disponível em: < http://tjrs.vlex.com.br/vid/-42109048> Acesso em: 07 Set. 2015
SOUZA, Janice B. Santos. A reprodução humana assistida frente ao direito de família e sucessão. 2006, 32 f. Trabalho Monográfico de Bacharelado (Graduação)- Faculdade de Direito, Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2006. Disponível em:<http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2006_2/janice.pdf> acesso em: 27 de out. 2015.
Anna Valéria de M. A. Cabral Marques- Professora, Ma. Orientadora.