Capa da publicação Mãe, quem é meu pai? A inseminação assistida heteróloga e a relativização do sigilo de identidade do doador
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Inseminação assistida heteróloga.

O conflito jurídico entre o direito ao conhecimento de paternidade e a garantia ao sigilo de identidade nas doações de material genético

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Os filhos gerados por meio de inseminação assistida heteróloga têm direito ao conhecimento da paternidade mais do que o doador de sêmen tem direito ao sigilo de sua identidade, conforme assegurado contratualmente?

Sumário: 1 Introdução; 2 Notas a respeito da fertilização artificial: método da inseminação assistida heteróloga; 2.1 A disciplina (infra)legal do processo de inseminação artificial; 2.1.1 Os direitos do doador e suas obrigações; 3 A (im)possibilidade de relativização do sigilo de identidade do doador frente ao direito de conhecer a própria filiação; 3.1 Posições doutrinárias e entendimentos Jurisprudenciais; 4 Conclusão.

RESUMO: O que se objetiva é analisar o debate que orbita entre, de um lado, o direito de conhecer a própria paternidade e, do outro, a garantia do sigilo do doador de sêmen na inseminação assistida heteróloga. Isso, de modo que, ponderando as discussões jurídico-doutrinárias a esse respeito, se demonstre que, não obstante a lacuna normativa na legislação ordinária, por uma aplicação direta de princípios constitucionais, é possível relativizar a garantia de anonimato que gozam os doadores de material genético – nas inseminações assistidas heteróloga – em prol do direito de se apurar a verdadeira filiação biológica.

Palavras-chave: Inseminação assistida heteróloga. Dignidade da pessoa humana. Reconhecimento paterno-biológico. Sigilo de identidade.


1 INTRODUÇÃO

No procedimento de inseminação assistida heteróloga, disciplinado na Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina (CFM), o casal opta pela obtenção de gametas de um terceiro anônimo (doador), os quais serão usados para fertilizar a parceira do relacionamento, conferindo um filho ao casal. Todavia, não há legislação específica para garantir o direito de sigilo de identidade do terceiro doador (presente apenas na mencionada Res. n°. 1.358/CFM). Assim como também não há lei específica a respeito do direito de o filho requerer o reconhecimento da sua paternidade biológica (nestas hipóteses de inseminação assistida), ficando ele resguardado pelos seus direitos constitucionais, como o da própria dignidade humana.

 Devido a isso, existe grande discussão jurídico-doutrinária quanto ao conflito entre o direito do filho, provido de inseminação assistida heteróloga, baseado na dignidade da pessoa humana de buscar o reconhecimento paterno-biológico do sujeito que doou o gameta, em detrimento do direito deste último (o doador), de manter o sigilo de sua identidade.

Com os avanços da medicina moderna e da igualdade de direitos, constitucionalmente assegurados, em relação às decisões referentes ao planejamento familiar, existe uma maior autonomia e liberdade de direitos para um homem, mulher ou casal homoafetivo, decidirem por ter filhos ou não. Em casos que envolvem sujeitos que encontram problemas de infertilidade, é totalmente permitida a escolha de procedimentos artificiais para permitir que o casal tenha um filho, como é o caso da inseminação assistida (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008).

Existem casos nos quais não há possibilidades de o marido ou parceiro(a) fornecer gametas capazes de fertilizar sua companheira, sendo necessário recorrer ao método da inseminação assistida heteróloga. Neste método, um terceiro anônimo, doa seus gametas para que sejam utilizados de modo fertilizar o útero feminino e prover um filho ao casal. Tal procedimento tem sua previsão no artigo 1.597, V do Código Civil e é regulamentado pela Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina (GASPAROTO; RIBEIRO, 2008).

Contudo, não há legislação específica que regule essa prática, gerando, dessa forma, uma grande discussão doutrinária, evolvendo aspectos jurídicos, morais e étnicos em relação ao direito do doador e do filho. Segundo a Resolução n°. 1.358 do CFM, o terceiro doador tem o direito ao sigilo de sua identidade (RIBAS, 2008).

Isso, por sua vez, como bem colocam GASPAROTO e RIBEIRO (2008), pode entrar em conflito com os direitos que o ordenamento garante ao filho que, mesmo havido de uma mãe e um pai socioafetivos, poderá, em respeito ao princípio da dignidade humana - e acompanhando determinadas linhas de entendimento doutrinárias e jurisprudencias – exigir o conhecimento do seu pai biológico e, até mesmo, requisitar direitos sucessórios.

Neste contexto, é inevitável que surja a seguinte questão: quais são os limites e extensões do direito que filho tem a conhecer a sua própria filiação, nestas hipótese de inseminação assistida heteróloga? E mais: é, de fato, possível falar em sigilo absoluto dos doadores de material genético, para fins de fertilização? É possível falar em algum direito fundamental nestes casos?

Em se tratando de um evidente conflito jurídico entre: de um lado, o direito de conhecer a própria filiação (garantido pelo ordenamento); e de outro, o sigilo de identidade dos doadores de material genético, é imperativo desincumbirmo-nos do ônus argumentativo necessário para construção da melhor tese. O que é, sem margem para dúvidas, aquela tese que melhor se amolda as ideias e preceitos fundamentais que animam a ordem jurídico-constitucional ora vigente, qual seja: a de que o sigilo garantido ao doador de material genético não é absoluto.

Diante do escasso conteúdo jurídico-dogmático envolvendo o tema proposto, busca-se, por meio deste trabalho, a elaboração de um paper de pesquisa englobando uma discussão doutrinária que estabelece, em a maior ou menor grau, um diálogo entre os o direito e os avanços científicos – no caso específico da garantia ao sigilo de identidade dos doadores e material genético e o direito de conhecer a própria filiação.

À luz de um paradigma acadêmico, a efetivação da pesquisa se fundamenta pela aproximação do tema a demais pesquisadores interessados, além de trazer um estudo mais aprofundado dos institutos jurídicos relacionados a este tema, buscando, também, fazer uma aproximação entre o biodireito e as relações familiares.

Partindo de uma perspectiva profissional a produção do artigo pode garantir uma base sólida de conhecimento a respeito da temática, sanando obscuridades, omissões ou dúvidas que advenham de quem esteja na busca por informações.

Quanto aos objetivos, a pesquisa é classificada como exploratória, uma vez que tentará dissecar o tema em prol dos objetivos listados. Em relação a seus procedimentos, abrange a natureza bibliográfica, recorrendo a teóricos e suas respectivas obras a respeito da temática.


2 NOTAS A RESPEITO DA FERTILIZAÇÃO ARTIFICIAL: MÉTODO DA INSEMINAÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA

Como bem aponta Castanho (2008), a partir dos avanços alcançados pela técnica científica, o homem foi capaz de dominar um campo que antes pertencia unicamente aos processos naturais: a fertilização.

Primeiramente, deve-se conceituar o que exatamente seria a reprodução assistida, o que, de acordo com Ribas (2007), trata-se de um mecanismo ou conjunto de técnicas que permitem a realização de uma reprodução assexuada, em razão, essencialmente, de uma esterilidade do parceiro(a), dando justificativa para tais sujeitos recorrerem à estas técnicas. Entre diversas técnicas, existe a chamada inseminação intrauterina, na qual “os espermatozoides, previamente recolhidos e congelados, são reaquecidos a 37ºC e transferidos, por meio de uma cânula, para o interior do aparelho genital feminino (fundo do útero), onde se dá a fecundação” (RIBAS, 2007). Tal procedimento médico de inseminação assistida pode ocorrer de forma homóloga ou heteróloga. Explicando melhor:

Nas técnicas de inseminação artificial, os gametas (óvulo e espermatozóide) podem provir do casal, caso em que a RMA será homóloga, ou não, quando será heteróloga. Este último tipo de RMA ocorre na hipótese de um ou ambos os gametas do casal não serem viáveis, havendo a necessidade de se recorrer a um doador de espermatozóides ou de óvulos. A inseminação homóloga é indicada para casos de incompatibilidade ou hostilidade do muco cervical, oligospermia (quando é baixo o número de espermatozóides ou reduzida sua mobilidade) e retroejaculação (quando os espermatozóides ficam retidos na bexiga). A inseminação heteróloga é utilizada, por exemplo, nos casos de absoluta esterilidade masculina (causada por azzospermias ou oligospermias), incompatibilidade do fator RH e havendo doenças hereditárias graves do marido. (RIBAS, 2007).

Dessa forma, pode-se segmentar em dois os grupos de métodos de procriação assistida para melhor introduzir a técnica de inseminação assistida heteróloga, em que: diz-se ‘homóloga’, ou ‘auto-inseminação’ a inseminação artificial quando realizada com sêmen proveniente do próprio marido, e ‘heteróloga’, ou ‘hetero-inseminação’, quando feita em mulher casada com sêmen originário de terceira pessoa ou, ainda, quando a mulher não é casada. (LEITE Apud CASTANHO 1995, p.32)

A utilização da técnica de reprodução assistida na modalidade heteróloga proporciona o envolvimento de outras pessoas estranhas à situação, e, com isso, provoca uma expansão do núcleo familiar, ou seja, “em casos de inseminação heteróloga com doação de gametas há a chamada multiparentalidade, que consiste na existência de mais de um pai ou de uma mãe para o sujeito resultante de uma reprodução medicamente assistida”, o que gera uma dupla relação com a criança, onde há uma relação de pais biológicos e pais sócio-afetivos (RIBAS,2007). Neste contexto, adverte Gama Apud Castanho (2003, p. 675):

A pluralidade de pessoas envolvidas no contexto das técnicas de reprodução assistida é impressionante, o que gerou a cogitação, no plano teórico, da [sic] criança eventualmente ter três pais e três mães, o quer representaria uma completa reformulação nos vínculos de parentesco – com aumento significativo das relações familiares e seus efeitos, provocando não mais a retração do núcleo familiar, mas sua expansão.

Além disso, nesse método de inseminação artificial, como afirma Souza (2006), para haver a criação de uma relação parental sócio-afetiva, mostra-se necessário o expresso consentimento do cônjugue ou companheiro que, por algum problema de infertilidade, não pode fornecer gametas férteis. Dessa forma, “o consentimento manifestado não constitui ato ilícito; o filho concebido não pode se sujeitar à alteração de ânimo do declarante; à pessoa que pretendesse se retratar da vontade anteriormente manifestada agiria com má-fé” (SOUSA, 2006), ou seja, a relação criada entre a criança e o pai ou mãe estéril, que consentiu a inseminação assistida heteróloga, deve ser a mais sólida possível indicando que “o consentimento representa o reconhecimento voluntário que é irrevogável” (SOUSA, 2006).

2.1 A disciplina (infra)legal do processo de inseminação artificial

No Brasil, parafraseando Ribas (2007), não há previsão legal ordinária quanto ao uso e restrições das técnicas de reprodução assistida. Contudo, a Resolução nº 1358/92 do Conselho Federal de Medicina que estabelece normas e padrões éticos aos profissionais médicos, para que possam utilizar dessas técnicas de inseminação. Prevê, inclusive, que a mulher solteira pode utilizar-se de qualquer técnica, desde que maior e civilmente capaz. Vejamos o teor do texto normativo:

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I - PRINCÍPIOS GERAIS

[...]

2 - As técnicas de reprodução assistida (RA) podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível descendente.

5 - É proibido a fecundação de ócitos humanos, com qualquer outra finalidade que não seja a procriação humana.

7 - Em caso de gravidez múltipla, decorrente do uso de técnicas de RA, é proibida a utilização de procedimentos que visem a redução embrionária.

II - USUÁRIOS DAS TÉCNICAS DE RA

1 - Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado.

[...]

IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES

1 - A doação nunca terá caráter lucrativa ou comercial.

2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.

3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.

VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO

(DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)

[...]

1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.

2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1998)

Souza (2006), afirma que as técnicas de reprodução assistidas permitiram uma reinterpretação do ordenamento jurídico no estágio atual da evolução jurídica em matérias de interpretação e aplicação do direito, em que, não se pode alegar lacuna da lei para solucionar todas as questões que se apresentem”. Dessa forma, deve-se entender que o incremento dessas novas técnicas médicas que proporcionam o provimento de um filho à um casal, impedido por alguma infertilidade, optar por uma inseminação assistida, necessariamente precisa de uma normatização clara, transparente, coerente e cumpridora dos princípios e normas constitucionais (SOUSA, 2006, p. 10). Por conta disso, elucida o autor que:

O Direito Brasileiro, no parágrafo único do art. 9° da Lei n° 9.263/96, prevê que qualquer método ou técnica conceptiva ou contraceptiva somente poderá ser prescrita após avaliação e acompanhamento clínico, com prévia informação sobre os riscos, vantagens, desvantagens e eficácia da medida, o que pressupõe a existência da infertilidade da mulher, do homem ou do casal, daí o recurso do auxílio médico. Nesse sentido, deve-se considerar que, no Direito Brasileiro, à luz da Constituição Federal e da Lei n° 9.263/96, o recurso às técnicas conceptivas não é ilimitado ou absoluto, devendo preencher determinados requisitos, como o diagnóstico da esterilidade, para que seja possível o acesso à reprodução assistida. (SOUSA, 2006, p. 11).

Nesse sentido, Souza (2006, p. 10-11), afirma-se que, embora não haja uma legislação específica para os procedimentos de inseminação assistida, por meio de outros institutos infraconstitucionais, da própria Constituição Federal e da Resolução do Conselho Federal de Medicina, é possível estabelecer os parâmetros básicos para se proceder com tais técnicas no cenário da medicina contemporânea.

2.1.1 Os direitos do doador e suas obrigações

A lacuna na legislação ordinária nos remete, necessariamente, ao princípio da legalidade, stritu sensu. No sentido de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, de modo que aquilo que não nos é vedado nos é permitido. Isso, portanto, abre um largo espaço para o debate a respeito da reprodução assistida. (RIBAS, 2007, p. 1-2).

Não obstante, bem elucida Barbosa Apud Castanho (2008, p. 148-149):

No Brasil, diante do silêncio da lei, a única regulamentação existente a respeito é a Resolução n º 1358/926 do Conselho Federal de Medicina, que prevê o anonimato ao doador; e nesse sentido Heloísa Helena Barbosa (2001, p.121) assegura que “o diploma deontológico do CFM, prescreve a preservação do anonimato como uma obrigação do estabelecimento que explora a reprodução assistida”. Porém, é omissa quanto aos requisitos a serem exigidos do doador, ou seja, “não há exigência a respeito de certos requisitos vinculados à pessoa do doador.

Nesse sentido, por conta de não haver previsão de uma pluralidade de pais ou mães ao sujeito que fora concebido por uma inseminação assistida heteróloga, a paternidade conferida ao filho deve ser a sócio-afeitva, havendo a desconsideração da biológica. Dessa forma, justifica-se a necessidade de haver anonimato, pois ao terceiro doador dos gametas cabe a sua abdicação à paternidade “incluindo quaisquer direitos e deveres a ela inerentes” (RIBAS, 2007).

Todavia, questiona-se até que ponto esse direito ao anonimato do terceiro doador estaria assegurado, já que, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a possibilidade do filho investigar a sua paternidade a qualquer tempo (RIBAS, 2007).

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Sobre os autores
Alexander Barbosa F. dos Santos

Bacharel em direito pela Unidade de Ensino Superior Com Bosco (UNDB). Advogado licenciado. Assessor jurídico no Tribunal de Justiça do Maranhão.

Wenderson da Silva Martins

Aluno do 9º período, Vespertino, do Curso de Direito, da UNDB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Alexander Barbosa F. ; MARTINS, Wenderson Silva. Inseminação assistida heteróloga.: O conflito jurídico entre o direito ao conhecimento de paternidade e a garantia ao sigilo de identidade nas doações de material genético. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4977, 15 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55829. Acesso em: 26 abr. 2024.

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