A possibilidade de revisão judicial de contratos bancários com fundamento no superendividamento do consumidor

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19/02/2017 às 10:50
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5 CONCEITO DE SUPERENDIVIDAMENTO

Necessita-se então, antes de aprofundar no assunto, conceituar a figura do superendividamento, ou, do consumidor superendividado, como ponto de partida para a análise dessa matéria.

O Código Francês do Consumidor, Code de la Consommation, define em seu caderno legal a figura do consumidor superendividado, traduzido por Costa (MARQUES e CAVALLAZZI, coord., 2006, p. 232):

A situação de superendividamento das pessoas físicas se caracteriza pela impossibilidade manifesta para o devedor de boa-fé de honrar o conjunto de suas dívidas não profissionais, exigíveis e vincendas […]

Giancoli (2008, p. 147) exemplifica o tratamento deferido ao consumidor superendividado pela Legislação Finlandesa:

Segundo a lei finlandesa, é insolvente o devedor que não tem capacidade para pagar as suas dívidas no momento em que elas se tornam exigíveis, quando essa não seja uma situação meramente incidental ou transitória, mas de caráter permanente. A incapacidade de pagamento pode resultar de um empobrecimento sensível do devedor por motivo de doença, desemprego, incapacidade para o trabalho ou derivar de quaisquer outras circunstâncias que não sejam diretamente imputáveis ao devedor, isto é, os chamados acidentes da vida.

Schmidt Neto (2012, p. 243) informa que “não há um perfil definido do superendividado […]. O que diversas pesquisas têm buscado é definir quais as características mais frequentes dos superendividados, mas não se pode tentar encontrar um conceito através deste perfil”.

Leitão Marques <http//:www.gplp.mj.pt> alerta que “o incumprimento não significa necessariamente uma incapacidade, mesmo que temporária, de o devedor proceder ao pagamento. Pode tratar-se apenas de um lapso do devedor”. Ou seja, não será qualquer inadimplemento que poderá servir de escusas para requerer a revisão judicial, sob a pecha de “superendividado”.

Ainda Leitão Marques <http//:www.gplp.mj.pt> conceitua:

O superendividamento diz respeito aos casos em que o devedor está impossibilitado, de forma duradoura ou estrutural, de proceder ao pagamento de uma ou mais dívidas. Uma parte da doutrina considera ainda como sobreendividamento as situações em que o devedor, apesar de continuar a cumprir os seus compromissos financeiros, o faz com sérias dificuldades.

Marques (MARQUES e CAVALLAZZI, 2006, p. 256), define o superendividamento como “a impossibilidade global de o devedor pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo (excluídas as dívidas com o Fisco, oriundas de delitos e de alimentos)”.

Ainda Marques (MARQUES e CAVALLAZZI, 2006, p. 257) vai além da conceituação, já propondo uma possível solução para o problema enfrentado por estes consumidores:

Este estado é um fenômeno social e jurídico a necessitar algum tipo de saída ou solução pelo direito do consumidor, a exemplo do que aconteceu com a falência e a concordata no de direito da empresa: seja por meio de parcelamento, prazos de graça, redução dos montantes, dos juros, das taxas seja por todas as demais solução possíveis para que possa pagar ou adimplir todas ou quase todas as suas dívidas em face de todos os credores, fortes e fracos, com garantias ou não. Tais soluções, que vão desde informação e controle da publicidade, direito de arrependimento, tanto para prevenir como para tratar o superendividamento, são fruto dos deveres de informação, cuidado e principalmente de cooperação e lealdade oriundos da boa-fé para evitar a ruína do parceiro (exceção da ruína), que seria sua “morte civil”, sua exclusão do mercado de consumo ou sua “falência” civil com o superendividamento.

Dessa forma, observa-se as mais diferentes construções intelectuais acerca do tema do superendividamento do consumidor. Entretanto, não há normas legais pátrias que tutelem, especificamente, esse fenômeno que ocorre com frequência cada vez maior com os consumidores.


6 CARACTERIZAÇÃO DO CONSUMIDOR SUPERENDIVIDADO

Como já foi exposto, carece no nosso ordenamento jurídico pátrio de lei específica para caracterizar ou tutelar tal fenômeno, sendo suprida tal ausência pela utilização do direito comparado e analogia (SCHMIDT NETO, 2012, p. 246).

Schmidt Neto (2012, p. 247) indica que os pressupostos objetivos para caracterização do consumidor superendividado são os de ser pessoa física e que as dívidas não sejam oriundas de sua atividade profissional, utilizando-se dos mesmos pressupostos verificados na legislação francesa. Isso porque a pessoa jurídica possui institutos próprios tutelados pela legislação especial para solucionar seu excesso de dívidas, quais sejam, a recuperação da empresa e a falência.

Quanto aos requisitos referentes à natureza do crédito, há ressalvas apenas para dívidas de cunho alimentar (exempli gratia: pensão alimentícia) e multais penais reparatórias, não havendo um quantum exato para caracterizar o superendividamento (SCHMIDT NETO, 2012, p. 247).

Bertoncello (LIMA e BERTONCELLO, 2010, p. 192) indica que outro pressuposto para a caracterização do consumidor superendividado é a “impossibilidade manifesta”, sendo que “a simples falta de liquidez passageira não é suficiente para caracterizar a situação de superendividamento, considerando-se que o devedor pode solicitar um ‘prazo de graça’ (délai de grâce), nos termos do art. 1244-1 do Code Civil” (COSTA; MARQUES e CAVALLAZZI coord., 2006, p. 121).

Costa (MARQUES e CAVALLAZZI, 2006, p. 249) complementa ao dizer que a “jurisprudência francesa costuma levar em consideração: o número de empréstimos; o montante e a destinação dos fundos; notadamente o seu caráter suntuoso; os motivos que conduziram ao endividamento; o nível intelectual que impede a ingenuidade e a torna inescusável; o perfil sócio-profissional; etc”.

Fazemos uma ressalva aqui com relação ao “nível intelectual” do devedor. Porque apesar do consumidor reunir condições intelectuais, poderá igualmente ser vítima do superendividamento, vez que o consumidor é cada vez mais impulsionado a consumir, e consumir a crédito. Também não podemos esquecer que o consumidor, independentemente de suas condições, são todos considerados vulneráveis pelo Código de Defesa do Consumidor, pois a tutela se dá não apenas pela condição intelectual, mas pela condição econômica, ou ainda sua falta de condição de realizar provas, não havendo como o consumidor competir em pé de igualdade com as instituições financeiras.

Caso contrário, significaria apenas dar armas iguais para pessoas diferentes. Entregamos então uma espada para Davi e outra espada para Golias, obviamente não seria uma luta justa. Por isso Davi utilizou-se de outra arma para lutar de forma isonômica, equalizando forças com o gigante Golias.


7 DA REVISÃO JUDICIAL DO CONTRATO COM FUNDAMENTO NO SUPERENDIVIDAMENTO

Com observância às definições, classificações e pressupostos, pode-se verificar uma construção válida e capaz de figurar como teoria de revisão contratual o fundamento do superendividamento.

Certamente as instituições financeiras se insurgirão contra as recentes teorias de revisão contratual, conforme Schmidt Neto (2012, p. 337) alerta que “a recorrente arguição das instituições financeiras sobre a indústria das ações revisionais e o pretenso rolamento das dívidas por elas provocado”.

Entretanto, “a chamada indústria da revisional não existiria se fossem minimamente respeitados os ditames do CDC”, a respeito:

[…] os bancos criaram renegociações com encargos exorbitantes e nomes com conotações que induziam a pensar que estariam preocupados com os devedores, como a “novação salvadora da dívida”, denominação marqueteira que propõe uma salvação, mas que, na verdade, se fundava em práticas abusivas. (SCHMIDT NETO, 2012, p.337)

Não há como olvidar da notoriedade dos fatos relatados acima. Assim, é imperiosa a necessidade de mitigar os contratos bancários quando estes são sucessivos, o que deflagra uma prática de encadeamento contratual, chegando a um patamar em que a dívida se torne insuportável ao consumidor, caracterizando assim o superendividamento.

Para figurar no polo ativo da ação revisional, Giancoli (2008, p. 160) ressalta que “somente o superendividado, ou seja, aquele indivíduo que necessita da tutela jurisdicional do Estado para garantir a manutenção digna de sua capacidade de crédito para sua sobrevivência social mínima é quem possui legitimidade ativa para esta hipótese revisional”.

Nesse sentido, é o entendimento de Schmidt Neto (2012, p. 345), pois “tendo em conta o art. 6º, inc. V, do CDC (em algumas hipóteses combinado com o art. 51, § 1º, III, do mesmo diploma legal) penso que a resposta é positiva”, na possibilidade de revisar os contratos pelo “fato superveniente” do superendividamento, consubstanciando num dos instrumentos mais eficazes de proteção dos consumidores.

Poder-se-ia fazer uma comparação com o instituto da recuperação judicial de empresas, concedendo possibilidade ao consumidor em se recuperar e honrar todas as dívidas contraídas, respeitando o mínimo existencial, com base no princípio da dignidade humana (CF, art. 1º, inc. III).

A jurisprudência da Corte Superior de Justiça tem adotado o seguinte entendimento com relação aos consumidores superendividados:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA. RETENÇÃO. POSSIBILIDADE DE AFASTAMENTO. CRÉDITO CONSIGNADO. CONTRATO DE MÚTUO. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. POSSIBILIDADE. LIMITAÇÃO DA MARGEM DE CONSIGNAÇÃO A 30% DA REMUNERAÇÃO DO DEVEDOR. SUPERENDIVIDAMENTO. PRESERVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL.

  1. Possibilidade de afastamento da regra do art. 542, §3º, do CPC, apenas se demonstrada a viabilidade do recurso especial (“fumus boni iuris”) e o perigo de que, com a sua retenção, sobrevenha dano irreparável ou de difícil reparação ao recorrente (“periculum in mora”).
  2. Validade da cláusula autorizadora do desconto em folha de pagamento das prestações do contrato de empréstimo, não configurando ofensa ao art. 649 do Código de Processo Civil, 3. Os descontos, todavia, não podem ultrapassar 30% (trinta por cento) da remuneração percebida pelo devedor.
  3. Preservação do mínimo existencial, em consonância com o princípio da dignidade humana.
  4. Precedentes específicos da Terceira e da Quarta Turma do STJ.
  5. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

(STJ – AgRg no REsp 1206956/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/10/2012, DJe 22/10/2012)

Apesar do julgado tratar de consignação em folha de pagamento, em que normalmente há Decreto e Instrução Normativa regulando e limitando os descontos, o Superior Tribunal de Justiça se posicionou de forma a limitar a cobrança do saldo devedor do consumidor, estabelecendo o patamar máximo de desconto de 30% dos rendimentos, respeitando o “mínimo existencial”, fundamentado no superendividamento do consumidor.

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Segue de forma análoga a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo:

Agravo de Instrumento Ação declaratória Deferida a tutela antecipada para estabelecer o limite da somatória dos descontos dos empréstimos contraídos pela agravada ao percentual de 50% sobre os rendimentos brutos, sob pena de multa diária no valor de R$ 500,00 Admissibilidade de aplicação de multa diária em obrigação de fazer Inteligência do artigo 461 e parágrafos do Código de Processo Civil Valor adequadamente arbitrado Decisão mantida Recurso não provido.

Com relação aos servidores públicos de Santa Catarina, há legislação específica que impõe limitação do crédito consignado, a saber, o Decreto Estadual nº 080/11. Entretanto, não impõe a mesma limitação em conta salário, onde eventualmente é cobrada a diferença da contratação, perdurando os efeitos danosos dos sucessivos contratos bancários.

De qualquer sorte, verifica-se que a revisão pretendida somente logrará êxito com a cabal demonstração do atingimento da dignidade da pessoa humana, do mínimo existencial.

A Corte de Justiça do Rio Grande do Sul também já decidiu favorável à revisão contratual do consumidor superendividado, verbis:

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. AÇÃO DECLARATÓRIA. APROPRIAÇÃO AUTOMÁTICA EM CONTA-CORRENTE DE DÉBITOS BANCÁRIOS REFERENTES A SALDO NEGATIVO E EMPRESTIMOS. SUPERENDIVIDAMENTO. ABUSO DO DIREITO DE CONCESSÃO DE CRÉDITO. LIMITAÇÃO A 30% DOS VENCIMENTOS BRUTOS MENSAIS. ANALOGIA. DANO MORAL INEXISTÊNCIA. I – Uma vez demonstrado que os diversos empréstimos concedidos pela instituição financeira repercutem em prestações cujo montante total é muito superior aos rendimentos mensais do consumidor, acarretando a dedução da íntegra de seus vencimentos, tem-se a hipótese de superendividamento gerado em razão de abuso na concessão de crédito pela instituição financeira, violação à boa-fé objetiva e prática comercial abusiva contra o consumidor, e, como tal, nula de pleno direito a cláusula contratual que autoriza tal dedução automática. Retenção mensal limitada a 30% dos vencimentos brutos, após a dedução dos descontos obrigatórios, por aplicação analógica. II – Nem todo ilícito é capaz de gerar abalo na esfera moral. O fato de ter havido os descontos em conta-corrente acima do percentual de 30% do salário bruto da autora não constitui ilícito capaz de ensejar direito à reparação extrapatrimonial. Danos morais não caracterizados. APELOS DESPROVIDOS. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº 70051861490, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em 13/12/2012)

Assim, com base nos princípios da boa-fé objetiva, da dignidade da pessoa humana, e dos princípios gerais que regem as relações de consumo, entendemos pela possibilidade da revisão contratual com fundamento no superendividamento do consumidor, desde que presentes seus pressupostos.

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Sobre o autor
Eduardo Friedemann

Eduardo Friedemann foi policial-militar, hoje é advogado e sócio da banca Herkert & Napoleão Advogados Associados, com escopo principal de trabalhar na defesa dos servidores públicos, com ênfase aos Militares Estaduais. Atuamos em demandas contra o Estado, bem como de cunho Disciplinar, Penal Militar ou, ainda, Penal, quando o servidor da segurança pública acaba se envolvendo em ocorrência de competência da Justiça comum.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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