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A discriminação oculta no humor depreciativo e a violência de gênero

12/09/2020 às 13:25
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O bullying aparece como tema frequente nos espaços do século XXI e pode elevar a violência de gênero a níveis psicológicos, além de sustentar estigmas sociais depreciativos e discriminatórios.

Ontem, nas minhas andanças pelas redes sociais, deparei-me com colegas discutindo sobre uma publicação que apresentava dois livros de piadas. Um, azul, era “Piadas sobre meninas – para meninos lerem”. Outro, rosa, era “Piadas sobre meninos – para meninas lerem”. A discussão tinha dois focos distintos: 1) O machismo descarado do livro azul, que reforçava diversos estereótipos falsos sobre mulheres e que incitava a violência de gênero e o bullying e 2) Os motivos que levavam a discussão focar no livro azul, já que o livro rosa era igualmente ofensivo e incitava o bullying de meninas contra meninos, o que poderia dar tão errado quanto o inverso. Prometi a um amigo que falaria aqui sobre isso, mas é tanta coisa para ser dita que precisei de um tempo para esquematizar o texto. Vamos lá.

Precisamos entender que a desigualdade de gênero, assim como a violência de gênero, especificamente no âmbito da violência contra mulheres, é um problema de educação. Não temos poucas leis, ou leis brandas demais, ou pouca punição para agressores. O que temos é a insistente permanência de um modelo social patriarcal que submete as mulheres e as coisifica, que as coloca como seres naturalmente inferiores aos homens, que banaliza o feminino. Esse modelo é secular e já está tão enraizado culturalmente que nem mesmo conseguimos enxergá-lo.

Esse modelo heternormativo de inferiorização e imbecilização da mulher é cultural. Ele pode ser substituído por outro, claro, mas, para isso, temos que, primeiro, admitir que ele existe. Temos que admitir que, em pleno século XXI, mulheres ainda são tratadas como desiguais e submissas ao homem. Temos que admitir que, mesmo depois de tanta evolução, mulheres ainda são assassinadas por se separarem de seus companheiros, estupradas por usarem shorts, ridicularizadas por serem mulheres. Se aceitarmos isso, estamos em um caminho.

Depois, precisamos mudar a forma de educar nossas crianças. Simone de Beauvoir, em sua mais festejada obra, “O Segundo Sexo”, explicou graficamente como a educação de meninos e meninas sustenta e legitima o patriarcado e a desigualdade de gêneros. O menino, criado para ser livre, tem o mundo como limite para o seu ser. A menina é domesticada e docilizada, fragilizada, confinada a um universo restrito ao lar e seus afazeres. Educados dessa forma, eles e elas crescem “sabendo o seu lugar”: o menino é o todo-poderoso que ocupa os espaços públicos e é membro integrado da sociedade. O menino é o cidadão, ele é politizado e talhado para ser quem quiser ser. Já a menina é “do lar”. Ela foi criada para ser esposa e mãe, apenas. Essas foram as opções dadas a ela; a menina acredita que ela é naturalmente as duas coisas.

Para Susan Moller Okin, nada vai mudar enquanto não mudarmos a forma como a mulher é enxergada no espaço familiar (o privado). Não é suficientemente eficaz compreender que a mulher tem espaço na sociedade (pode ocupar os espaços públicos, nas palavras de Hannah Arendt), que tem direito a voto, direito de trabalhar, direito de estar representada em espaços políticos se continuarmos a tratá-la como incapaz, frágil e submissa no âmbito da família. Se a menina continua sendo criada para ser mãe e esposa, se os papéis atribuídos a ela continuam sendo os de mera coadjuvante no universo, que é masculino, o patriarcado continuará ali, sendo o modelo definidor de nossa sociedade.

Por que esse discurso preliminar sobre criação de meninos e meninas? Porque ele tem tudo a ver com as razões de existir dos livros em debate. As piadas do livro azul são a reprodução insistente de estereótipos de gênero que colocam a mulher no lugar que o patriarcado espera que ela esteja. Só que essas piadas não são engraçadas. Elas não são para fazer rir, são a representação do que a sociedade patriarcal determina sobre mulheres em uma tentativa de “catequizar” os meninos para que eles acreditem na mesma coisa. Alguns exemplos do livro azul:

Por que a estátua da liberdade é mulher? Porque precisavam de uma cabeça oca para colocar o mirante.

Como se chama uma menina com meio cérebro? Superdotada.

O que são vinte garotas colocadas em fila, orelha com orelha? Um túnel de vento.

O que essas supostas piadas representam? A mulher não é inteligente, não tem capacidade de pensar, é naturalmente burra. Isso não é verdade mas, mesmo que saibamos disso, continuamos a repetir como se fosse engraçado. É lavagem cerebral que fazemos em meninos para que eles acreditem nisso. E fazemos essa lavagem cerebral nas meninas também, para que elas mesmas se achem menos capazes. Com isso, alijamos as mulheres dos espaços públicos, da política, do empreendedorismo, do mercado, pois elas não são boas o suficiente para isso, não são espertas, não são “talhadas” para essas atividades. Mulheres ficam em casa, cuidando dos afazeres domésticos, que é o que elas sabem fazer bem.

Alguns vão dizer que o mundo está chato. Aliás, ouço isso com frequência sempre que me insurjo contra piadas-bullying machistas, racistas, gordofóbicas, homofóbicas, transfóbicas etc. Quando digo que esse tipo de piada está no século retrasado, sou rotulada de feminazi chata. Não, o mundo não está chato. É que esse tipo de piada nunca teve graça para as minorias nelas representadas. Esse tipo de piada só teve graça até hoje entre as maiorias que oprimem. A diferença de alguns anos atrás para o hoje talvez seja a voz. Minorias que sempre foram ridicularizadas em piadas não estão mais caladas. E a voz dos oprimidos incomoda demais aqueles que desejam permanecer no status quo de sua dominância.

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Sobre a discussão que leva à ênfase exacerbada ao livro azul sem menção ao livro rosa, também quero dar a minha contribuição. Não podemos excluir os homens do movimento feminista. Não podemos usar o movimento feminista, que busca colocar fim a séculos de desigualdade de gênero, como forma de exclusão, pois não estaremos atingindo os objetivos do movimento. Homens podem propagar o feminismo assim como mulheres podem propagar o machismo (e o fazem diariamente). Se excluirmos os homens dos debates feministas eles não poderão fazer parte do processo de reconstrução do modelo de sociedade, esse modelo igualitário que desejamos.

Da mesma forma, não podemos ignorar o bullying praticado por mulheres contra homens. Alguns e algumas me dizem que é “chumbo trocado” e que os homens estariam “provando do próprio remédio”, mas eu não consigo ver dessa forma. Uma agressão injusta não legitima outra agressão injusta em troca, como se uma anulasse a outra e ninguém saísse prejudicado. Uma sociedade melhor não será construída com ofensas que só servem para agravar as desigualdades entre gêneros. O livro rosa é tão ofensivo e tão desnecessário quanto o livro azul, e merece ser repudiado da mesma forma.

Precisamos parar de ensinar os dogmas do patriarcado para nossos meninos e nossas meninas. Precisamos desconstruir o machismo por meio da educação, eliminando estereótipos de gênero e papéis de gênero que não se sustentam empiricamente. E precisamos fazer isso educando tanto meninos quanto meninas. O feminismo é uma via complexa de mudança, e essa mudança só será conquistada com muito esforço conjunto.


Referências

ARENDT, H. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Versão digital. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

OKIN, S. M. Women in western political though. Princeton: Princeton University Press, 2013.

_______. Gênero, o público e o privado. Estudos Feministas. V. 16. N. 02. Florianópolis, mai/ago 2008. Pp. 305-332.

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Sobre a autora
Tatiana Mareto Silva

Doutora em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Mestre em Políticas Públicas e Processo pela FDC/UNIFLU, Pós-graduada em Processo Civil pela FDV, Professora do Curso de Direito do Centro Universitário São Camilo-ES.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Tatiana Mareto. A discriminação oculta no humor depreciativo e a violência de gênero. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6282, 12 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56712. Acesso em: 19 mar. 2024.

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