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Jogos eletrônicos, direito do consumidor e princípio da fraternidade

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29/06/2017 às 16:00
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4 – A gameterapia e os planos de saúde

Apesar de muitos jogos de sucesso e das inúmeras possibilidades que eles podem oferecer, os videogames nem sempre têm uma boa imagem. Alguns games não são bem vistos em função da violência que os caracteriza, a partir do momento em que o objetivo é atirar em tudo o que se move, com uma carnificina bastante realista. Muitos afirmam que isso gera comportamentos desviantes em pessoas que tenham propensão à patologia psíquica. Seria isso mais uma faceta da sociedade pós-moderna? O lado negativo da tecnologia?

Fazemos alusão à denominada “”sociedade de risco” em nossa obra A aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação médico-paciente de cirurgia plástica, mencionando Ulrich Beck, o autor alemão que trabalhou tal conceito:

Em sua obra La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad, Beck (1998) considera que, na modernidade, a produção social de riqueza vem necessariamente acompanhada da produção de riscos. Se num primeiro momento a preocupação da sociedade seria voltada à distribuição de riquezas – e aí seria necessário fazer referência ao Estado Social –, passa-se, posteriormente, ao foco das potencialidades lesivas do mundo tecnológico.

Tais riscos precisam ser minimizados e evitados para que o próprio processo produtivo continue viável e não venham a ocorrer danos de repercussão desastrosa, como seriam os casos de impactos ambientais e as doenças [...] (ROCHA, 2017, p. 69).

A tecnologia já esteve a serviço de catástrofes ambientais e da proliferação de doenças, sejam elas físicas ou psíquicas. Porém, não concordamos com as afirmações de que videogames tenham potencial de incitar à violência. Eles têm, sim, poder curativo – o poder da gameterapia (exergames).

Acompanhamos o pensamento de Celia Hodent-Villaman, em artigo publicado na revista eletrônica francesa Sciences Humaines, na qual a autora faz as seguintes considerações acerca dos benefícios que os jogos de videogame podem trazer:

Contrairement à l’opinion des personnes méfiantes face aux jeux vidéo, les résultats des recherches conduites ces dernières années sur ce sujet ont plutôt tendance à montrer que les risques sont faibles et circonscrits, bien que présents et par conséquent non négligeables. Mais plus étonnant encore, il semble que les jeux vidéo seraient bénéfiques, en ce sens qu’ils amélioreraient certaines capacités cognitives de leurs utilisateurs réguliers (HODENT-VILLAMAN, 2006).

A autora menciona que podem até existir casos avulsos de videogames causando riscos, mas são situações circunscritas a casos excepcionais. As pesquisas demonstram que os jogos eletrônicos são benéficos para as capacidades cognitivas dos usuários regulares.

E além de trabalharem a questão do lado cognitivo da pessoa, os jogos eletrônicos podem propiciar resultados benéficos quando associados às práticas terapêuticas de realibitação. Dessa forma, como poderíamos conceituar a gameterapia?

Sousa (2011, p. 156) menciona que os videogames “que utilizam dispositivos de interação com o usuário” de forma a proporcionar um exercício físico são denominados exergames. O autor destaca os efeitos qualitativos da utilização do console Nintendo Wii no tratamento fisioterápico de pacientes que estejam em processo de reabilitação. É isso que se denomina gameterapia. Atualmente, também a plataforma Kinect é utilizada com fins terapêuticos.

No que tange ao aspecto da fisioterapia na modalidade gameterapia, os planos de saúde, em resguardo à dignidade da pessoa humana, não poderão limitar a quantidade de sessões necessitadas pelo paciente. A fraternidade vai se manifestar na forma do princípio do combate ao abuso presente tanto no Código de Defesa do Consumidor, como na Lei 9.656/98. O contrato deve respeitar o princípio da boa-fé e a vedação de cláusulas abusivas.

Perceba-se o quanto foi possível relacionar a fraternidade com o direito privado – note-se em que medida esse princípio de natureza humanista está relacionado com os direitos fundamentais de terceira dimensão. No caso, os direitos do consumidor.

Fraternidade é discurso de reconhecimento, é manifestação de inclusão. É possibilitar a realização de direitos com base na justiça distributiva e social mesmo em sede de direito privado. O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina já reconheceu como dever do Estado a prestação de sessões de fisioterapia na modalidade gameterapia a paciente que demanda tal tipo de procedimento, com fundamento no direito social à saúde e sua dimensão positiva como prestações devidas pelo Poder Público – eis aí a face da dignidade humana no setor público. Tal se deu em sede de decisão monocrática na apelação cível nº 2015.077378-3[7].

Porém, os tribunais pátrios também reconhecem que plano de saúde não pode se furtar à prestação do serviço de fisioterapia. Veja-se:

PLANO DE SAÚDE. FISIOTERAPIA. LIMITAÇÃO DE SESSÕES. IMPOSSIBILDADE. LEI Nº 9.656/98. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ECA. NEGATIVA INDEVIDA. DANO MATERIAL A SER APURADO EM LIQUIDAÇÃO. Tratamento fisioterápico. Especiais modalidades necessitadas pelo autor, de apenas quatro anos de idade. Limitação de sessões. Impossibilidade. Incidência da Lei nº 9.656/98. Plano-referência (arts. 10 e 12 da Lei nº 9.656/98). Plano que deve cobrir tudo o que for necessário para o pleno restabelecimento do paciente. Eventual cláusula contratual contrária a dispositivo de lei deve ser tida como não escrita, por abusiva e ilegal. Incidência do Código de Defesa do Consumidor. Ofensa à regra do art. 51, § 1º, inc. I, da Lei nº 8.078/90. Estatuto da Criança e do Adolescente. Ofensa. Dano material. Reembolso do tratamento já realizado. Apuração e m liquidação. Recurso da ré não provido. Apelo do autor provido em parte (TJ-SP - APL: 10061318720148260032 SP 1006131-87.2014.8.26.0032, Relator: Carlos Alberto Garbi, Data de Julgamento: 04/08/2015, 10ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 06/08/2015).

O princípio do combate ao abuso também é ínsito ao próprio Código Civil de 2002, podendo-se afirmar que existe um diálogo de fontes entre as legislações numa lógica de microssistemas. O princípio do equilíbrio vem inscrito no art. 4º, III do CDC, sendo que o Código prega por uma harmonização de interesses entre consumidor e fornecedor. O seguinte julgado faz referência à coibição do desequilíbrio contratual:

APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE CUMPRIMENTO DE CONTRATO - PLANO DE SAÚDE - SESSÕES DE FISIOTERAPIA - LIMITAÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - INTERPRETAÇÃO MAIS FAVORÁVEL AO CONSUMIDOR - Os contratos de planos de saúde, até mesmo os celebrados antes da edição da Lei 9656/98, sujeitam-se a ela, que é legislação de ordem pública, à qual todos os ajustes teriam que ser adaptados (art. 35, § 1º), sendo obrigatório às operadoras oferecer aos antigos contratantes a oportunidade de opção. As cláusulas que limitam ou restringem procedimentos médicos são nulas por contrariarem a boa-fé, pois criam uma barreira à realização da expectativa legítima do consumidor, contrariando prescrição médica, provocando um desequilíbrio no contrato ao ameaçar o objetivo do mesmo, que é ter o serviço de saúde de que necessita o segurado. Recurso improvido (TJ-MG - AC: 10024102307717001 MG, Relator: Domingos Coelho, Data de Julgamento: 05/02/2014, Câmaras Cíveis / 12ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 13/02/2014).

Assim é que, numa interpretação extensiva, pode-se defender que, em sendo necessário e cabível ao paciente, o plano de saúde deve fornecer a fisioterapia na modalidade gameterapia.


5 – CONCLUSÃO

A exposição aqui realizada apenas serve para demonstrar como o Direito é dinâmico, podendo se fazer presente em diversas áreas que demandam sua presença. O Direito do Consumidor precisa trazer para perto de si o princípio da fraternidade, a ideia de reconhecimento dos vulneráveis numa perspectiva que considere até mesmo o consumidor de jogos eletrônicos.

Os direitos fundamentais de terceira geração precisam encontrar esse resguardo e, inclusive, a teoria do reconhecimento de Axel Honneth pode ser trabalhada juntamente com a ideia de fraternidade para o atingimento de tal escopo.

Concluindo o presente artigo, espera-se que o argumento utilizado tenha se constituído numa forma criativa e prazerosa de o leitor tomar contato com o Direito do Consumidor.


REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Lorena Alves de Alvarenga; COSTA, Lucas Kaiser. Ensino jurídico e conscientização social: ultrapassando a fronteira do conformismo teórico. In: FRANCISCHETTO, Gilsilene Passon P. (org.). Estratégias de ensino nos cursos de direito: (des)encontros entre teoria e prática. Curitiba: CRV, 2015. p. 9-31.

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FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

HODENT-VILLAMAN, Celia. Les jeux vidéo sont-ils bons pour le cerveau? Artigo disponível em: http://www.scienceshumaines.com/les-jeux-video-sont-ils-bons-pour-le-cerveau_fr_15191.html.

LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2005.

MARTINS, Fernando Rodrigues. Constituição, Direitos fundamentais e direitos básicos do consumidor. In: LOTUFO, Renan; MARTINS, Fernando Rodrigues (coord.). 20 anos do código de defesa do consumidor: conquistas, desafios e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 157-196.

MORAES, Maria Celina Bodin de. Por um ensino humanista do direito civil. In: NEVES, Thiago Ferreira Cardoso (coord.). Direito e justiça social: por uma sociedade mais justa, livre e solidária: estudos em homenagem ao professor Sylvio Capanema de Souza. São Paulo: Atlas, 2013. p. 208-224.

ROCHA, Adriana de Lacerda. O professor reflexivo e o professor de direito: uma pesquisa de caráter etnográfico. Curitiba: CRV, 2012.

ROCHA, Thiago dos Santos. A aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação médico-paciente de cirurgia plástica: visão tridimensional e em diálogo de fontes do schuld e haftung. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

ROSETTO, Geralda Magella de Faria; VERONESE, Josiane Rose Petry. A criança como fundamento da felicidade e do conviver e bem viver na perspectiva arendtiana: o necessário espaço para a fraternidade. In: MOTA, Sergio Ricardo Ferreira; OLIVEIRA, Olga Maria Boschi de; VERONESE, Josiane Rose Petry. O direito revestido de fraternidade. Florianópolis: Insular, 2016. p. 133-148.

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STRECK, Lenio. Lições de crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.

VERONESE, Josiane Rose Petry. O direito no século XXI: o que a fraternidade tem a dizer. In: MOTA, Sergio Ricardo Ferreira; OLIVEIRA, Olga Maria Boschi de; VERONESE, Josiane Rose Petry. O Direito no século XXI: o que a fraternidade tem a dizer. Florianópolis: Insular, 2016. p. 19-35.

WOLF, Mark J. P.. Encyclopedia of video games: the culture, technology and art of gaming. Santa Barbara: Greenwood, 2012.

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Sobre o autor
Thiago dos Santos Rocha

Thiago dos Santos Rocha é um advogado e autor de livros e artigos jurídicos, graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. É especialista em Direito do Consumidor, em Direito Constitucional Aplicado e em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Em seus textos acadêmicos, promoveu o diálogo entre Direito e Game Studies, abordando temas como: videogames e epilepsia; advergames e publicidade infantil; gameterapia e planos de saúde; videogames e política nacional de educação ambiental; etc. Também publicou obras na área de Direito Médico, tendo escrito os livros "A violação do direito à saúde sob a perspectiva do erro médico: um diálogo constitucional-administrativo na seara do SUS" (Editora CRV) e "A aplicação do Código de Defesa do Consumidor à relação médico-paciente de cirurgia plástica: visão tridimensional e em diálogo de fontes do Schuld e Haftung" (Editora Lumen Juris).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Thiago Santos. Jogos eletrônicos, direito do consumidor e princípio da fraternidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5111, 29 jun. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58704. Acesso em: 22 nov. 2024.

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