RESUMO: O presente artigo tem como finalidade apresentar uma releitura da teoria das fontes do Direito, e em especial, do Direito Empresarial, a partir do novo paradigma da Constitucionalização do Direito. As correntes de pensamento jusfilosóficas do positivismo exegético e normativista influíram fortemente na construção dos conceitos de fontes do Direito através da história e nota-se que a atual percepção de fontes do Direito Empresarial não se coaduna com o atual paradigma trazido pela Constituição Federal de 1988, levado a efeito pelo avançada corrente pós-positivista. Com o fito de demonstrar a necessidade de tal releitura, foi realizada análise do desenvolvimento histórico das fontes deste ramo do Direito, desde a ascensão do comércio na Idade Média, até a edição do Código Civil de 2002 com a aderência à teoria da empresa, bem como foi realizada análise do atual posicionamento da pátria doutrina empresarialista sobre o tema das fontes.
Foi constatado que grande parte dos doutrinadores ainda exterioriza concepções harmoniosas com a corrente jusfilosófica positivista normativista. Assim, considerando a importância de uma correta compreensão de fontes para uma fidedigna aplicação do Direito e, igualmente, considerando o surgimento do movimento neoconstitucional ligado às concepções pós-positivistas, vê-se necessária releitura das fontes do Direito como um todo, e, especialmente, do Direito Empresarial. A metodologia de pesquisa utilizada foi a revisão bibliográfica, em que se buscou identificar as doutrinas, jurisprudências e trabalhos científicos mais relevantes sobre o tema.
Palavras-chave: Fontes do Direito Empresarial; Pós-positivismo; Neoconstitucionalismo.
1INTRODUÇÃO
O estudo das fontes do Direito[1] não deve ser subestimado.
A forma como nós as compreendemos molda a aplicação do Direito, influindo, diretamente, no próprio funcionamento do sistema jurídico e na busca por soluções a serem oferecidas aos litígios reais.
Uma deturpada concepção de fontes pode gerar malefícios a toda uma sociedade, de modo que pode atravancar a proteção de direitos, oferecer soluções incompatíveis aos casos concretos e assim, inviabilizar a efetivação da justiça social.
Neste passo, o presente trabalho tem por objetivo apresentar uma análise do desenvolvimento histórico e da configuração doutrinária da teoria das fontes do Direito Empresarial, seguido da sua releitura, a partir do novo paradigma introduzido pelo neoconstitucionalismo.
Muito embora este movimento já surta efeitos marcantes sobre diversas esferas do Direito, notadamente o Civil, o Direito Empresarial, em relação àquele, encontra-se a vários degraus abaixo na evolução paradigmática de fontes.
Ver-se-á que não mais se justifica a atual – e ultrapassada – concepção de fontes do Direito Empresarial, e, para que isso fique demonstrado, esta pesquisa se debruçará sobre as doutrinas pátrias, bem como examinará as transformações históricas pelas quais este ramo do Direito perpassou até a contemporaneidade.
Em suma, este trabalho buscará respostas a questionamentos como:
1) Qual é o atual posicionamento da doutrina acerca da teoria das fontes do Direito Empresarial e o que há nele de conflitante com a atual conjuntura neoconstitucional?;
2) De que forma a Constituição Federal de 1988 influi no Direito Empresarial a partir da visão pós-positivista?;
3) Qual o papel da lei, dos princípios, da doutrina, da analogia, dos costumes, da jurisprudência e das súmulas para o Direito Empresarial a partir deste novo paradigma?
Para atingir os objetivos propostos, a metodologia de pesquisa utilizada foi a revisão bibliográfica, em que se buscou identificar as doutrinas, jurisprudências e trabalhos científicos mais relevantes sobre o tema.
2 ANÁLISE HISTÓRICA DAS FONTES[2] DO DIREITO EMPRESARIAL
A história compreendida entre o desenvolvimento do comércio até a atualidade, é dividida em três fases, repetidamente narradas pela doutrina e que aqui, ganham um novo olhar, a partir da análise do desenvolvimento e evolução das fontes.
2.1. AS FONTES À ÉPOCA DAS CORPORAÇÕES DE OFÍCIO
A partir do século X, em plena Idade Média, a agricultura deixa de ser atividade econômica principal, e as atenções são voltadas ao comércio, que passa a tomar forma definida e a difundir-se por todo o mundo, principalmente pelas vias marítimas.
Em razão do cunho itinerante das atividades dos comerciantes da época, estes se fixaram às margens dos feudos, dando origem aos burgos e vilas[3], fortalecendo cada vez mais a importância dos núcleos urbanos para a economia.
Como já era de se esperar,inexistia qualquer ordenamento capaz de regular aquela dinâmica mercantil que se desenvolvia. Assim, as fontes utilizadas na criação do Direito do comércio, foram os usos e costumes dos próprios mercadores.
Cumpre destacar que a este Direito surgido a partir da necessidade de se regular as relações mercantis, também se emprega a expressão latina“iusmercatorum”.
Assim, os mercadores desenvolveram as chamadas corporações de ofício, compostas por cada especialidade de comerciante – artesãos, ferreiros, carpinteiros, tecelões, entre outros – e organizadas pelos já citados usos e costumes que paulatinamente tomavam forma de regramento.
Tais regramentos eram aplicados pelos cônsules, espécies de juízes, que atuavam no âmbito dos tribunais consulares existentes em cada corporação.
Assim, além dos usos e costumes, também eram fontes do iusmercatorum, os estatutos das corporações mercantis e a jurisprudência criada pelos supracitados cônsules.
Ademais, esta fase inicial do Direito Comercial se caracteriza pela subjetividade, uma vez que os regramentos oriundos das fontes mencionadas eram aplicados tão somente àqueles comerciantes associados a uma corporação.
Entretanto, novas transformações logo ocorreriam neste cenário. A ascensão das monarquias absolutistas provocaria descontentamento tal que faria eclodir no final do século XVII a Revolução Francesa e é nesta conjuntura que se conforma a próxima fase de desenvolvimento do Direito Empresarial.
2.2. AS FONTES À ÉPOCA DOS ATOS DE COMÉRCIO
Com o declínio do poder dos absolutistas e a efervescência da revolução francesa, Napoleão Bonaparte, em 1804, torna-se imperador e com total poder em mãos, formula uma nova forma de governo e também novas leis[4].
As fontes oriundas da primeira fase, a saber, os usos e costumes, os estatutos das corporações mercantis e a jurisprudência dos tribunais consulares,são então utilizadascomo base para a elaboração do Código Comercial de 1808, na França, que passa a ser a fonte primordial deste ramo do Direito.
Aqui, frisa-se, que houve a criação de leis pelo Estado – materializadas pelos Códigos –, que são alocadas como fonte principal do Direito. Ou seja, a teoria, ou concepção de fontes, neste ponto, transforma-se.
Assim, a teoria dos atos de comércio foi adotada como critério objetivo de incidência do Direito Comercial.
Tal teoria elencava quais atos eram típicos de comerciantes, e este era o pressuposto de aplicação do Código Comercial. Os demais atos, portanto, eram regulados pelo Código Civil.
Veja-se que, neste período, o objetivismotrazido pela edição dos Códigos franceses substitui o subjetivismo do sistema corporativista derivado dos usos e costumes, presente na primeira fase de desenvolvimento do Direito Empresarial.
No Brasil, foi no ano de 1850 que se instalou a referida teoria. Isto se deu com a enumeração legal dos atos de comércio pelo Regulamento nº 737, mais precisamente nos artigos 19 e 20. Não se pode olvidar, aliás, que o Direito Empresarial brasileiro, à época, era regido em sua maior parte pelo Código Comercial (Lei nº 556/1850).
2.2.1. A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO EXEGÉTICO SOBRE AS FONTES À ÉPOCA DOS ATOS DE COMÉRCIO
Os Códigos napoleônicos de 1804 e 1808, trouxeram à tona a chamada escola da Exegese que representou um grande marco não só para a história do Direito Empresarial, mas para toda a história do Direito como um todo.
Seus defensorespregavam a teoria da plenitude da lei, reduzindo o Direito à lei escrita, em razão desta prever em seu corpo, os princípios superiores, eternos, uniformes, permanentes e imutáveis sustentados pela escola jusnaturalista[5].
Iara Menezes Lima[6], aponta os fundamentos em que se assentava esta escola. Vejamos:
(...) 1º) a riqueza da legislação, a partir da promulgação dos códigos, torna praticamente impossível a existência de lacunas; 2º) na hipótese de lacuna, deve o intérprete se valer dos recursos fornecidos pela analogia; 3º) a interpretação tem como objetivo investigar a vontade do legislador (voluntaslegislatoris), tendo em vista ser este o autor da lei. (p. 111)
Vê-se que esta teoria foi criada em contraposição aos regimes absolutistas ainda limitados pelo Direito Canônico e atados ao arbítrio do rei.
Quanto ao papel do juiz diante do positivismo exegético, Hugo Garcez Duarte diz que “tal concepção reduziu o juiz ao papel de burocrático aplicador de leis, encarando o ordenamento jurídico como um “catálogo”, dotado da previsão de todos os fatos ocorridos e que viessem a ocorrer na sociedade, que com sua consecução subsumir-se-iam a ele”[7].
Desse modo, o positivismo exegético tentou aproximar a ciência do Direito cada vez mais a uma ciência exata, lógica e imparcial.
Ademais, a concepção de atos de comércio apresentada alhures, é claramente derivada das concepções trazidas por esta escola. A catalogação de atos exatos e sem margem à interpretação como aqueles presentes nos artigos 19 e 20 do Regulamento nº 737 exprimem perfeitamente a áurea do positivismo exegético.
Observa-se, ainda, que esta escola limitou o progresso da doutrina e da jurisprudência enquanto fontes, de modo que se deveria recorrer somente à lei – materializada nos Códigos –, quando da aplicação do Direito.
Outrossim, no auge do positivismo exegético, que conquistou adeptos para muito além da fronteira da França, de acordo com François Geny, citado por Iara Menezes Lima[8]:
(...) a interpretação da norma jurídica se realiza tão-somente através da exegese dos textos de lei, chegando ao extremo de sustentar que o juiz deve se abster de julgar nas hipóteses de lacuna, bem como quando existe mais de uma lei aplicável ao caso concreto, em sendo as mesmas contraditórias entre si. (p. 108)
Assim, nota-se que o grande problema dessa teoria jurídica jazia sobre a sua maior característica, a saber, a falta de maleabilidade, ou capacidade de atender a todas as demandas cotidianas, visto que a literalidade da lei não era suficiente para abarcar toda uma sorte de possibilidades advindas dos casos concretos.
Percebe-se que esta teoria ia à contramão da própria natureza do Direito, enquanto fenômeno social mutante.
Vale dizer que não demoraria até que ateoria dos atos de comércio demonstrasse a sua incompletude, considerando que não só o comércio continuaria a se desenvolver, como outras atividades paralelas passariam a existir, como a indústria e os bancos.
Sobre este panorama, Ulhoa[9] conclui que “a insuficiência da teoria dos atos do comércio forçou o surgimento de outro critério identificador do âmbito de incidência do Direito Comercial: a teoria da empresa” e é este novo critério que dá início a terceira e atual fase do Direito Empresarial, onde se percebe uma nova transformação no paradigma de fontes do Direito.
2.3. AS FONTES À ÉPOCA DA TEORIA DA EMPRESA
Como desdobramento das angústias trazidas pelo declínio da segunda fase, desenvolve-se a teoria da empresa, que suprime o critério dos atos de comércio, para dar espaço a acepçãodeatividade econômica organizada, identificando a figura doempresário, sobre o qual incide o ordenamento empresarial. Inaugura-se, assim, a terceira fase.
A teoria da empresa foi formalmente materializada pelo Código Civil italiano de 1942, mais precisamente em seu artigo 2082, que trouxe a seguinte redação: “E' imprenditore chi esercita professionalmente un'attività economica organizzata al fine della produzione o dello scambio di beni o di servizi”[10].
O artigo 966 do atual Código Civil incorporou a nova teoria e tem redação idêntica – salvo o estilo da escrita – à do artigo 2082 do Código Civil italiano. Vejamos: “Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”[11].
2.3.1. A INFLUÊNCIA DO POSITIVISMO NORMATIVISTA SOBRE AS FONTESÀ ÉPOCA DA TEORIA DA EMPRESA
O surgimento da teoria da empresa é contemporâneo a umanova e complexa concepção de positivismo que substituiu a escola da exegese.Hans Kelsen, jurista e filósofo austríaco, éo grande nome por trás desta nova concepção jusfilosófica a que foi denominada positivismo normativista.
Em 1934, este autor apresenta a “Teoria Pura do Direito”, deixando claro que a norma[12]é o principal elemento do sistema jurídico e que sobre ela, não deve incidir qualquer influência das demais áreas do conhecimento, comoa Sociologia, a Política, a História e a Economia. Logo, isolou-se o estudo do Direito.
Nas palavras do jurista[13]:
Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental. (p. 01)
Quanto à forma dese aplicar o Direito nesta nova concepção, diferente da acentuada rigidez e do “juiz boca da lei” do posivitismo exegético, Rafael Tomaz de Oliveira esclarece que “um normativista como Kelsen (...) não exclui a possibilidade de, no momento de aplicar a norma, os juízes decidirem de mais de uma maneira (desde ajustados à “moldura da norma”)”[14].
Neste ponto se vê nítida ainfluênciado modelo normativista sobre a teoria da empresa, de modo que se abandona a exatidão dos enunciados que previam os atos de comércio e adere-se um texto normativo com considerávelconteúdo semântico, abrindo umleque de interpretações que levam a identificação de diferentes empresários, sempre limitados, contudo, à “moldura da lei”.
Assim, em contraposição à forte objetividade da teoria dos atos de comércio, a teoria da empresa mostrou-se mais eficaz,ao trazer novamentecerta subjetividade ao critério qualificador do antigo comerciante, agora denominado empresário.
A despeito disso, no que tange ao problema das lacunas – já bem delineado à época dos atos de comércio – que demonstra a insuficiência da lei frente aos mais diversos casos concretos, Kelsen não apresenta solução efetiva, tendo em vista que defende a completude do ordenamento, por si só.
Desse modo, apesar de propor uma espécie de interpretação da norma pelos juízes, Kelsen ainda defende um conceito muito fechado de interpretação, próximo do texto da lei e longe de aspectos valorativos e morais.
Entretanto, juristas como Norberto Bobbio, discordam de Kelsen neste ponto, apresentando, por exemplo, a autointegração como forma de preenchimento de lacunas[15]. A respeito desta técnica se observa o uso da analogia e dos princípios gerais do direito, como fontes subsidiárias.
Ressalta-se que,em consonância a esta nova concepção de positivismo, no ano de 1942 se estabeleceu, no Brasil, o Decreto-Lei nº4657 – a LICC:Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro– que consolidou em seu artigo 4º[16]a ideia daautointegração apresentada por Bobbio, incluindo no rol de fontes integradoras, além da analogia e os princípios gerais do direito, também os costumes.
Não obstante, outras teorias começaram a surgir, de modo a questionar a racionalidade proposta pelo normativismo, bem como a distância até então existente entre o Direito –consubstanciado na norma –e ovalor. Destarte, passa a se observar o declínio da teoria kelseniana.
Ciente das transformações havidas no âmbito das fontes com o decorrer da história, no próximo capítulo, será demonstrado um panorama sobre a atual percepção de fontes do Direito Empresarial exprimida pelos mais diversos e respeitados doutrinadores empresarialistas do país.