5 DA DOUTRINA PÁTRIA
A doutrina vem, reiteradamente, insistindo quanto à necessidade de um prazo razoável de cinco anos para a Administração invalidar seus próprios atos eivados de vício, inclusive no que se refere às decisões dos Tribunais de Contas:
“Evidentemente, cinco anos para que a Administração possa invalidar seus próprios atos é um prazo bastante razoável, além do que, condiciona com mais força o constante exercício da autotutela sobre os atos administrativos, tanto pela ciência de que estes podem vir a se estabilizar pelo decurso do tempo, como pela possibilidade de o agente vir a responder nas órbitas civil, administrativa e penal por sua negligência em tolerar um ato inválido, quando fora possível fulminá-lo”.82
“O artigo 54 da lei nº 9.784/99 deu a medida do que seria prazo razoável para influir no juízo de precedência do princípio da segurança jurídica sobre o da legalidade, no cotejo ou no balancing test entre esses dois princípios, em face da prolongada inação da Administração Pública no exercício do seu poder de autotutela”.83
“Os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da boa-fé, como projeção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana, aplicam-se ao controle de aposentadorias, reformas e pensões, pelos Tribunais de Contas, para preservação de situações que tenham sido consolidadas pelo decurso considerável de tempo, tendo por analogia, o prazo médio razoável de 5 (cinco) anos”.84
6 DA JURISPRUDÊNCIA (APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS)
A jurisprudência do STF tem como tradição classificar o ato concessivo de aposentadoria, reforma ou pensão como ato administrativo complexo, que somente se aperfeiçoará com a homologação do registro pelo Tribunal de Contas, por imposição do artigo 71, inciso III, que exercita a competência constitucional de controle externo, consolidando, em face disso, a orientação de que o prazo decadencial, do artigo 54 da Lei nº 9.784/1999, não se aplicará a esse ato sujeito a controle antes do pronunciamento da Corte de Contas.
Tal orientação, entretanto, não vem sendo adotada pela maior parte dos tribunais que compõem o Judiciário brasileiro. Alguns divergem em relação à classe do ato, fundamentados na doutrina prevalente; outros, simplesmente, invocam os princípios constitucionais, uma vez que o STF, nesses casos, vem privilegiando, embora com ressalvas, os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da boa-fé objetiva.
Toda divergência, independente da instância, é salutar, principalmente nos tribunais, nos quais as ideias e os pensamentos nunca serão os mesmos; e, se fossem, não teriam sentido. A liberdade de pensamento do colegiado faz parte do debate jurídico e engrandece o resultado do julgamento.
A jurisprudência está aí para ser mudada, de acordo com o clamor social, com o avanço tecnológico, mudança de regras etc. Acredita-se que nada deve eternizar-se, nem mesmo as sentenças da Corte Suprema, ainda mais quando se tratarem de decisões questionáveis por praticamente toda a doutrina e a jurisprudência do país e que envolvam matéria de cunho social.
Às vezes é mais cômodo acompanhar o relator do que iniciar uma dissidência, não obstante seja o procedimento correto, quando o magistrado tem ponto de vista diverso dos seus pares, não importando se o seu voto será vencido ou não, e sim o conhecimento jurídico sobre o assunto e a certeza de estar fazendo justiça.
Há de se convir que o voto dissidente também representará uma parcela do colegiado e da própria comunidade jurídica e que, algumas vezes, apoiado em decisões isoladas, mas muito bem fundamentadas, coerentes, com uma concepção nova e em conformidade com a doutrina dominante, passará à condição de voto majoritário.
No STJ, nos autos do MS nº 8.527/DF, o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, divergindo da ministra relatora, Laurita Vaz, atentou para a divergência de votos nos colegiados e sobre o perigo na uniformização das decisões, in verbis:
“Se está em julgamento agora, penso que é possível haver o dissenso, ou então a Sra. Ministra Laurita Vaz poderia ter resolvido sem trazer para este Colegiado. Mas no instante em que traz, penso que nos desafia à discussão. Aliás, é exatamente para isso que serve o julgamento colegiado. Falamos porque temos a segura convicção de que aqueles ilustres Colegas que nos ouvem têm a mente aberta, um espírito receptivo, a consciência sensível para ouvir os argumentos e aceitá-los ou não. Aliás, esse é o grande perigo dos precedentes uniformizadores e produtores de indiscutilidade: decidir o feito assim. Às vezes muda a composição, muda o clima político, muda o clima ideológico, muda até o clima religioso. Tudo muda na vida, tudo vai se alterando sucessivamente, muda-se o tempo, muda-se a vontade, muda-se o amor, muda-se a confiança. É preciso que acompanhemos essa evolução sob pena de ficarmos como múmias fossilizadas”.85
Nesse mesmo diapasão, Rafael Da Cás Maffini assenta doutrina questionando a categoria dos atos concessivos de aposentadoria, reforma e pensão, tidos há muito tempo pelo STF como complexos, e da possibilidade de alteração desse entendimento. Diz o doutrinador gaúcho em passagem do seu ensaio:
“[...] Por certo, a interpretação constitucional oriunda do Pretório Excelso merece respeito e impõe obediência, dada a legitimação institucional que lhe é imanente.
No entanto, o mister institucional cometido ao Supremo Tribunal Federal de ser a boca que pronuncia as palavras da Constituição Federal, seu intérprete autêntico, pois, não o imuniza de críticas.
Ao jurista se impõe uma avaliação atenta das decisões exaradas pelo STF - ou por qualquer outro órgão jurisdicional - seja para revelar e reconhecer a correção dos fundamentos que ensejaram a decisão, seja para apontar eventuais equívocos de premissa ou, em sentido mais amplo, a incorreção inerente ao julgamento analisado.
Tal posicionamento crítico, longe de significar afronta ao importante papel desempenhado pelo STF, o coloca em relevo. O produto da atividade jurisdicional necessariamente carece de mediatização humana e, como tal, apresenta-se suscetível a erros. Tanto quanto falível, a condição humana traz consigo a característica da mutabilidade, razão pela qual se permite cogitar de uma alteração de posicionamento, mesmo que levado a efeito pelo Supremo Tribunal Federal.
Ou seja, o papel da Ciência Jurídica, e, pois, daqueles que dela se ocupam, deve visar sempre à construção, mesmo que, para tanto, tenha de destruir, no plano teórico, os argumentos jurídicos empregados como fundamentos para as decisões judiciais”.86
Contudo, já existe, felizmente, uma luz no fim do túnel, pois, em diversas decisões do STJ, verifica-se uma tendência à reorientação do tema com a finalidade de privilegiar os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, quando o decurso do prazo para a anulação do ato de concessão do benefício for exacerbado.
A prova inicial dessa divergência é a decisão relacionada ao REsp nº 1.047.524/SC, que encarou o assunto com profundidade, esmiuçando o tema com proficiência e confirmando, no caso concreto, a predominância dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima, quando em confronto com o da legalidade estrita, tendo em vista o transcurso do tempo e a inércia da Corte de Contas.
Essa decisão também evidenciou a necessidade da aplicação desses princípios em conjunto com os princípios da boa-fé objetiva e da eficiência, além da imposição de um prazo razoável aos Tribunais de Contas. Encerra a questão, afirmando o equívoco que o STF e o STJ cometeram, ao longo do tempo, ao classificar o ato concessivo de aposentadoria como complexo, propondo, com discernimento, a revisão da matéria com base em tais fundamentos.
Em seguida, relacionam-se literalmente algumas decisões que arrolam os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança, da razoabilidade e da boa-fé objetiva na manutenção dos atos de concessão de aposentadoria e de pensão, devido ao decurso do prazo e à inércia do Tribunal de Controle.
6.1 Dos Tribunais de Justiça dos Estados
No MS nº 1.322/RJ, julgado pelo Órgão Especial, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro convalidou ato de concessão de aposentadoria, anulado pelo prefeito de Goitacaz, em razão do transcurso do tempo e da inação do Tribunal de Contas. Disse o relator em um trecho de seu voto:
“[...] O impetrante está aposentado há quase 15 anos, como poderá começar tudo de novo? Onde fica o princípio da segurança jurídica? Fala-se muito hoje nos princípios – princípio da legalidade, princípio da moralidade administrativa, princípio da impessoalidade, princípio da dignidade da pessoa humana – mas parece que estamos nos esquecendo que o princípio dos princípios é o princípio da segurança jurídica. [...] Em situações de inércia da administração, que já permitiu a constituição de situações de fato revestidas de forte aparência de legalidade, gerando nos espíritos convicção de legitimidade, a decisão de nulidade do ato irregular configuraria aquilo que os juristas chamam de decisões imprevistas e tardias, dos quais o ato deve ser preservado, em nome do princípio da segurança jurídica que neste passo se eleva sobranceiro ao princípio da legalidade estrita. [...] Em suma, o vício originário, pelo decurso do tempo e em razão da inação da administração, presente também a boa-fé, acaba por desaparecer, uma vez que o desfazimento do ato poderá ser mais prejudicial ao aspecto social envolvido do que a sua proteção. [...] concedo a segurança para garantir ao impetrante o direito de preservar a sua aposentadoria”.87
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, no Reexame Necessário nº 70029369402, também convalidou, por meio de sua Corte Especial, ato concessivo de aposentadoria, anulado pelo prefeito de Canela, dada a inércia da Corte de Contas e o decurso do prazo:
“REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. MUNICÍPIO DE CANELA. SERVIDOR PÚBLICO. SUPRESSÃO DE COMPLEMENTAÇÃO DE APOSENTADORIA. NÃO-APLICAÇÃO DO § 2º DO ART. 475 DO CPC. APLICAÇÃO DO ART. 12, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 1533/51. PRINCÍPIO DE ESPECIALIDADE. DIVERGÊNCIA NO ÂMBITO DA CÂMARA. DECISÃO DA CORTE ESPECIAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 687.216-SP E 654.837-SP. NEGATIVA DE REGISTRO DO ATO DE APOSENTADORIA PELO TRIBUNAL DE CONTAS. TRANSCORRIDOS APROXIMADAMENTE 09 (NOVE) ANOS DO ATO CONCESSIVO ATÉ A NEGATIVA DE REGISTRO. PREVALÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA, PROTEÇÃO DA CONFIANÇA, RAZOABILIDADE E DA BOA-FÉ”.88
6.2 Do Superior Tribunal de Justiça
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. APOSENTADORIA. REVISÃO. ARTIGO 54 DA LEI Nº 9.784/99. PRAZO DECADENCIAL. TERMO INICIAL CONTADO DO ATO DE CONCESSÃO. OCORRÊNCIA.
1. Em se tratando de atos de verificação das concessões de aposentadoria, deve ser aplicado o prazo decadencial de cinco anos, previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99, contado da concessão da aposentadoria, com base no princípio da segurança jurídica, ressalvadas as hipóteses em que comprovada a má-fé do destinatário do ato administrativo.
2. Na espécie, portanto, havendo a concessão da aposentadoria sido deferida em 5.11.95, a sua revisão pelo TCU somente em 13.6.2008 não mais pode operar efeitos em face da decadência.
3. Recurso especial não provido”.89
“ADMINISTRATIVO. BENEFÍCIO INDEVIDO. ANULAÇÃO DO ATO. DECADÊNCIA. SITUAÇÃO CONSOLIDADA COM O TEMPO. PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA.
1. Cuidam os autos de Mandado de Segurança impetrado contra ato do Delegado Regional do Ministério do Trabalho do Rio de Janeiro que exigiu que a impetrante optasse por uma das pensões recebidas, por morte ou aposentadoria.
2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que, em atenção ao princípio da segurança jurídica e à existência de situação fática, consolidada pelo decurso do tempo, a Administração não pode rever o ato concessivo de pensão especial por morte, paga por mais de cinco anos, sem que tenha sido comprovada a má-fé por parte do beneficiário”.90
6.3 Do Supremo Tribunal Federal
“Direito Administrativo. 2. Aposentadoria. 3. Tribunal de Contas da União. Negativa de registro de aposentadoria. 4. Segurança jurídica como subprincípio do estado de direito. Situação consolidada, prevalecendo a boa-fé e a confiança. 5. Aptidão da justificação judicial para produzir os efeitos a que se destina. 6. Segurança concedida”.91
“Os postulados da segurança jurídica, da boa-fé objetiva e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, mesmo as de direito público (RTJ 191/922, Rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes), em ordem a viabilizar a incidência desses mesmos princípios sobre comportamentos de qualquer dos Poderes ou órgãos do Estado (os Tribunais de Contas, inclusive), para que se preservem desse modo, situações já consolidadas no passado”.92
“Mandado de Segurança. Cancelamento de pensão especial pelo Tribunal de Contas da União. [...] Pensão concedida há vinte anos. [...] Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. Direito constitucional comparado. [...] Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. [...] Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subprincípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de atos administrativos que não se pode estender indefinidamente. Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. Distinção entre atuação administrativa que independe da audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela decisão anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. [...] Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF art. 5º LV)”.93
No julgamento desse último mandado de segurança, embora a impetrante houvesse solicitado a segurança apenas no que diz respeito ao contraditório e à ampla defesa (direito esse que lhe foi cerceado), o ministro Gilmar Mendes, no seu voto, concedendo a segurança, fez a ressalva a seguir: “É possível que, no caso em apreço, fosse até de se cogitar da aplicação do princípio da segurança jurídica, de forma integral, de modo a impedir o desfazimento do ato. Diante, porém, do pedido formulado e da 'Causa Petendi' limito-me aqui a reconhecer a forte plausibilidade jurídica deste fundamento”.