Resumo: O artigo se refere à análise quanto à aplicação das penas restritivas de direitos, elencadas no art. 43. do Código Penal (CP), ao estrangeiro não residente no Brasil. O fato do estrangeiro condenado a pena privativa de liberdade, ser despido de residência, no território nacional, gera incertezas quanto à efetiva execução da pena contra si prolatada. O objetivo do trabalho foi analisar se a negação à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito ao estrangeiro não residente no Brasil fere direitos fundamentais do estrangeiro infrator. A pesquisa tem natureza aplicada, por meio do método exploratório, através do procedimento de pesquisa bibliográfica. Para tanto, demonstrar-se-á que o fundamento constitucional para a negação da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito é a soberania. A fim de alcançar melhor compreensão serão abordados os aspectos histórico e hierárquico dos direitos fundamentais e perquirir-se-á a questão da relatividade e quem são os destinatários dessa espécie de direito. Na sequência, serão apresentadas duas decisões, de tribunais distintos, que negaram a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito ao estrangeiro não residente. Por fim, serão verificadas as penas restritivas de direito do art. 43. do CP e far-se-á diferenciação entre às que se adéquam, e não se adequam, à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito do estrangeiro não residente. Concluiu-se que, negar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito não fere os direitos fundamentais do estrangeiro não residente no Brasil.
Palavras-chave: Soberania. Direitos fundamentais. Pena privativa de liberdade. Penas restritivas de direito. Estrangeiro não residente.
INTRODUÇÃO
No Brasil, diuturnamente, há o ingresso de estrangeiros não residentes. Tais estrangeiro adentram no território nacional com diversas finalidades, dentre as quais a de cometer crimes. Por esse motivo é necessário que existam mecanismos que confirmem a soberania brasileira, no sentido de fazer valer a sentença penal condenatória prolatada em desfavor deste estrangeiro não residente.
Uma das alternativas a fim de alcançar esse objetivo é a não substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, tendo como principal argumento a ausência de residência no Brasil, motivo que suscita a inviabilidade do efetivo cumprimento da pena.
Contudo, questiona-se se o ato de negar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva direito do estrangeiro não residente, cerceia o direito fundamental do estrangeiro ter sua pena individualizada, direito insculpido no art. 5º, LXVI da Constituição Federal (CF).
A pesquisa demonstrará, por meio da análise do instituto da soberania e do estudo dos direitos fundamentais, que quando o Estado nega tal substituição, está fazendo valer seu poder soberano e impedindo que haja desrespeito à uma sentença penal condenatória. Em outras palavras, o Estado está a exercer o seu direito de punir.
Demonstraremos ainda, que nem todas as penas restritivas de direitos do art. 43. do CP, devem ser negadas ao estrangeiro não residente, há algumas espécies de penas restritivas que podem ser aplicadas ao estrangeiro não residente.
1. METODOLOGIA
A natureza da pesquisa é aplicada, pois tem a finalidade de gerar conhecimentos para aplicação prática, com a finalidade de solucionar problemas específicos. Conforme ensina McBride (2013) apud Moura (2014), pelo fato da pesquisa aplicada investigar problemas reais, seus pesquisadores estão frequentemente preocupados com a validade externa de seus estudos, observam os comportamentos a serem aplicados a situações reais. Estes pesquisadores tem o intento de aplicar seus resultados em problemas que envolvem indivíduos que não são participantes de seu estudo.
Quanto ao objetivo o método utilizado será o exploratório. De acordo com Gil (2010) este tipo de pesquisa tem a finalidade de proporcionar maior proximidade com o problema, a fim de torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses. A maioria destas pesquisas envolvem levantamento bibliográfico, entrevistas com pessoas que tiveram experiências práticas com o problema pesquisado ou análise de exemplos que estimulem a compreensão.
Referente ao procedimento o caráter do trabalho é de pesquisa bibliográfica que para Fonseca (2002) realiza-se a partir do levantamento de bases teóricas já perscrutadas e publicadas em meios eletrônicos e escritos.
2. SOBERANIA: FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL DA NEGAÇÃO DA NÃO SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS DO ESTRANGEIRO NÃO RESIDENTE NO BRASIL
Antes de ingressar no estudo da soberania é importante trazer à baila o conceito de Estado, pois como leciona Maluf (2010) a correta compreensão do conceito de soberania está ligada ao fenômeno do Estado. Deste modo, de acordo com Mazzuoli (2009) Estado, em sua concepção jurídica moderna, é um ente jurídico, que possui personalidade internacional, que compõe uma reunião de indivíduos estabelecidos de forma permanente em um território, sob a autoridade de um governo independente e com a finalidade precípua de zelar pelo bem comum daqueles que o habitam.
Neste sentido, o Estado é um plexo físico-jurídico-espiritual1 que concentra determinado grupo de pessoas, com objetivos semelhantes, regidas por normas positivas eleitas como necessárias e aplicadas em uma determinada época e delimitado território.
No que se refere a ligação entre Estado e soberania é importante esclarecer que o conceito de soberania é um dos pilares da ideia de Estado Moderno, tendo sido de excepcional relevância para que este se definisse, exercendo grande influência prática nos últimos séculos, sendo ainda uma característica fundamental do Estado (DALLARI, 2010).
Alkmin (2009) leciona que soberania não é um elemento do Estado, mas sim um atributo ou característica do próprio Estado, pois não existe Estado sem soberania ou semi-soberano, tendo em vista que a soberania é o poder dos poderes, que explica toda a ordem jurídica nacional ou internacional, ela emana do povo e em seu nome deve ser exercido pois une duas realidades: Estado e Direito.
Deste modo, entende-se que a importância da soberania para a existência do Estado é inquestionável, principalmente quando se fala na imposição da “vontade soberana” deste Estado, isto porque, como destaca Maluf (2009) a soberania é uma autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro poder, ou como entende Dallari (2010) é a oposição entre o poder do Estado e outros poderes.
A soberania ou é plena ou então não é soberania. Não existe Estado dotado de “meia soberania” ou ele é soberano ou não é. Trata-se de uma verdade apodítica, irrefutável, que não comporta exceções.
Assim, questiona-se, como, por exemplo, um Estado pode fazer valer a vontade da lei, se não houver mecanismos capazes de coagir o indivíduo a cumprir aquilo que lhe foi determinado? Qual seria o sentido de existência de uma norma penal sem a sua real concretização, ou seja, o efetivo cumprimento da pena?
Em vista destes questionamentos, Dallari (ibid) destaca que a soberania é um poder: originário, porque origina-se no próprio momento em que nasce o Estado e como um atributo inseparável deste; exclusivo, tendo em vista que só o Estado o possui; incondicionado, uma vez que só encontra os limites postos pelo próprio Estado; coativo, uma vez que, no seu desempenho, o Estado não só ordena, mas dispõe de meios para fazer cumprir suas ordens coativamente. Neste contexto, o poder soberano é exercido sobre indivíduos, que são a unidade elementar do Estado, não importando que atuem isoladamente ou em conjunto.
Mais uma vez indaga-se: se um Estado, após todo o trâmite processual penal, decidir por aplicar uma pena a determinado infrator, e depois, por motivos vários não ocorrer o efetivo cumprimento desta pena, como afirmar que este Estado é soberano? Se a soberania é a ligação entre o Estado e o Direito e, se o Direito não é efetivamente cumprido, onde está o poder de impor a vontade (Direito) deste Estado que se auto-intitula como detentor de soberania?
Também é primordial acrescentar que o jus puniendi não é efetivado com a prolação da sentença penal condenatória irrecorrível, na verdade, este exercício do poder é concretizado e exaurido com o devido cumprimento da pena, ainda que para esse cumprimento sejam necessários meios coativos por parte do Estado e, como no caso em estudo, na negação da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ao estrangeiro não residente no Brasil.
Desta forma, a soberania é o elemento que possibilita e condiciona a possibilidade de se negar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito do estrangeiro não residente no Brasil, pois propicia a efetivação da vontade do Estado.
3. DIREITOS FUNDAMENTAIS
3.1. BREVE HISTÓRICO
A formação da ideia e conceito de direitos fundamentais é fruto de lenta e paulatina construção social, que segue os séculos até os dias atuais, pois os direitos fundamentais não são os mesmos em todas as épocas (MENDES e BRANCO, 2015).
Os direitos fundamentais em sua jornada sofreram diversas mudanças, até chegarem ao patamar atual. Segundo Tavares (2009) entre os séculos VII e II a.C (denominado de período axial), alguns dos maiores pensadores de todos os tempos desenvolveram as ideias sobre direitos fundamentais: Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Confúcio na China, Pitágoras na Grécia e Deutero-Isaías em Israel. As explicações mitológicas anteriores foram abandonadas, e a partir destes movimentos a concepção sobre os direitos fundamentais passou a ser construída.
Mendes e Branco (2015) destacam a influência do cristianismo no desenvolvimento da concepção dos direitos fundamentais, pois ele passou a marcar o impulso relevante para o acolhimento da ideia de uma dignidade única do homem, a ensejar uma proteção especial. O movimento cristão apresenta que o homem é criado a imagem e semelhança de Deus e o pensamento de que Deus assumiu a condição humana para redimi-la imprimem à natureza humana alto valor intrínseco, que deve nortear a elaboração do próprio direito positivo.
Estas foram as bases embrionárias dos direitos fundamentais, que serviram de fundamento histórico, filosófico e teórico para as manifestações nos séculos posteriores, destacando-se a Magna Charta Libertatum, ocorrida na Inglaterra em 1215; a Declaração de Direitos (Bill of Rights), de 1679; a Declaração de Direitos da Virgínia em 1776 e a Declaração de direitos do Homem de 1789 na França.
A partir destas manifestações que contribuíram para formulação da concepção de direitos fundamentais, bem como, a sedimentação da tutela dos direitos humanos, o Século XX foi o momento histórico em que floresceu e fortaleceu os sistemas constitucionais de proteção aos direitos humanos, tendo início nas constituições sociais de Weimar em 1917 e do o México 1919. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, após a segunda guerra mundial, em 1948, foi um divisor de águas na defesa dos direitos humanos. No Brasil, a tutela dos direitos fundamentais encontrou seu ápice na Constituição de 1988.
3.2. PRINCÍPIO, DIREITO E FUNDAMENTO. CONCEITO DE DIREITO FUNDAMENTAL
Princípio é o começo, é onde se origina algo, é a gênese, ele que serve de base a alguma coisa. É causa primeira, raiz, razão, ditame moral, regra, lei, preceito, proposição elementar e fundamental para uma ordem de conhecimentos (HOUAIIS, VILLAR e FRANCO, 2009).
Direito trata-se de garantias, normas de prevalência de interesses e limitativas da atuação estatal e dos outros indivíduos, na esfera jurídica daquele que se protege o interesse, ou como diz Abbagnano (2007) em sentido geral e fundamental, trata-se de técnica da coexistência humana que visa possibilitar a coexistência dos homens. Como técnica, se concretiza em conjunto de regras (nesse caso leis ou normas), que têm por objeto o comportamento intersubjetivo, ou seja, o comportamento dos homens entre si.
Já fundamento é aquilo que é imprescindível, onde se estabelece algo ou sobre o qual repousa algo. Japiassú e Marcondes (2006) acrescentam que a filosofia utiliza esse termo para designar aquilo sobre o qual repousa, de direito, certo conhecimento.
De acordo com os conceitos apresentados de princípio, direito e fundamento denota-se que apesar de tratarem de palavras distintas, seus sentidos não conflitam, na verdade, vão de encontro ao mesmo entendimento. Ambos significam base essencial, que veicula entendimento ligado a moral e à ética.
Concernente ao conceito de direitos fundamentais, Silva (2015) destaca que tais direitos são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado. Por isso, a doutrina (francesa, especialmente) costuma englobá-los na concepção de liberdade-autonomia.
Direito fundamental, portanto, é a base mínima daquilo que se garante a um indivíduo e que se estabelece pelos preceitos da moral e da ética, tanto no sentido de outorgar, como em restringir, tais direitos, aos seus destinatários.
3.3. HIERARQUIA ENTRE OS PRINCÍPIOS/DIREITOS FUNDAMENTAIS
Para a real defesa e concretização dos direitos fundamentais, torna-se necessário estabelecer critérios hierárquicos entre eles, sob pena de inevitável confusão, vazando em uma densa inflação de direitos fundamentais e, consequente, impossibilidade de proteção daqueles tidos como superiores. De fato, é necessário estabelecer graus entre os direitos, pois caso assim não ocorra, haveria negação destes, ante a impossibilidade de protegê-los, e seria impossível transpor determinadas barreiras.
Assim, a título de exemplo, se a casa fosse plenamente inviolável, mesmo que ocorresse um desabamento, os bombeiros estariam impedidos de nela entrar para tentar salvar os seus moradores. Neste mesmo entendimento, não haveriam prisões em flagrantes, quando o criminoso adentrasse em uma residência, sob a alegação da referida inviolabilidade.
Temos ainda como exemplo o instituto do estado de necessidade, que autoriza indivíduo a agredir direito alheio, na proteção e defesa de direito seu ou de terceiro. Conclui-se, assim, que é necessário estabelecer uma escala entre os princípios e direitos fundamentais, até como forma de proteção a eles.
Para melhor compreensão do tema é importante entender que o direito à vida está no topo da escala dos direitos fundamentais, pois não se pode conceber outro direito a não ser que ele esteja ligado à vida. O direito à vida garante as necessidades vitais básicas do homem e proíbe qualquer tratamento indigno (LENZA, 2012).
Vale destacar que até a própria proteção dada aos mortos, concernente aos direitos de personalidade (neste sentido, direitos fundamentais), conferida tanto na esfera cível, quanto na esfera penal (respectivamente nos arts. 12, parágrafo único do Código Civil e 138, § 2º do CP), tem ligação ao direto à vida.
A vida, no entendimento aqui proposto, deve ser considerada como uma espécie de “parede de aderência” aos outros direitos, ou seja, é a partir dela que é possível tutelar os outros direitos fundamentais.
Abaixo dela, e estando no mesmo grau de proteção, estão os direitos de liberdade e de propriedade. Deles derivam uma gama de outros direitos, sendo o rol exemplificativo do artigo 5º da Constituição Federal, a maior tipificação de proteção a estes direitos, no ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, tem-se o princípio do juiz natural (inciso LIII do art. 5º da CF), que está contido dentro do direito de liberdade. Também inserido no direito de liberdade, está o direito à liberdade de associação (inciso XX do art. 5º da CF).
No que tange ao direito de propriedade, o inciso XXII do art. 5º da CF, que explicitamente o garante e protege, ao instituir que “é garantido o direito de propriedade”.
Logo, é imprescindível compreender o caráter hierárquico entre os direitos fundamentais. Num primeiro plano, como já dito, está o direito à vida, que com sua interface dá a possibilidade de existência aos outros direitos, sintetizados no direito à liberdade e à propriedade, com as suas respectivas facetas que deles derivam.
No caso específico em estudo, de um lado está o direito fundamental de individualização da pena do estrangeiro não residente (art. 5º XLVI da CF) e do outro a soberania do Estado Brasileiro (art. 1º, I da CF).
Entendemos, com base nos argumentos já expostos, que a soberania prevalece sobre o direito fundamental de individualização da pena do estrangeiro não residente, pois aquela representa a essência do próprio Estado e refere-se ao interesse maior da coletividade, já o direito de individualização da pena tem como finalidade resguardar o direito de um indivíduo e, como o entendimento de que o interesse individual deve se submeter ao interesse coletivo, a soberania se sobrepõe sobre o direito do estrangeiro não residente.
3.4. RELATIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Os direitos fundamentais, mesmo sendo cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV da CF), não são absolutos. Não existe nenhum direito humano consagrado pelas Cartas Constitucionais que se possa considerar absoluto, no sentido de sempre valer como máxima a ser aplicada aos casos concretos, independentemente da consideração de outras circunstâncias ou valores constitucionais. Nesse sentido, é correto afirmar que os direitos fundamentais não são absolutos. Existe uma ampla gama de hipóteses que acabam por restringir o alcance absoluto dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais encontram limites de aplicabilidade, ou seja, são, em alguns casos, relativos, pois não podem servir de proteção para a prática de atividades ilícitas, não servem para assegurar irresponsabilidade civil, não tem força de anular os demais direitos igualmente consagrados pela Constituição, não podem anular igual direito das demais pessoas, devendo ser aplicados harmonicamente no âmbito material. O único limite ao direito fundamental de um indivíduo é o respeito a igual direito dos seus semelhantes, e a certas condições fundamentais das sociedades organizadas (TAVARES, 2007).
Nesse sentido, pode-se afirmar que os direitos fundamentais não são absolutos em sua aplicabilidade. Quanto à prevalência, absolutismo e relatividade, os direitos fundamentais devem ser estudados em dois planos, um estático e outro dinâmico.
Em sua forma estática, os direitos fundamentais são indiscutivelmente absolutos. Todos possuem o potencial de serem aplicados na intensidade em que foram concebidos pelo constitucionalista. Não sofrem, e nem podem sofrer, algum tipo de limitação. Pois foram instituídos para proteger os indivíduos contra atuações arbitrárias de seus pares e do Estado.
A relatividade dos direitos fundamentais residente no plano fático ou dinâmico. Isto porque, tais direitos estão transitando no âmbito social, e devem ser conciliados à proteção de todos, e é nesse momento que surge a necessidade de um indivíduo ceder alguns de seus interesses em favor de outrem, mesmo que contra a sua vontade, posto que nesta ocasião o direito a ser tutelado mostra-se mais elevado.
Nesta mesma linha de intelecção, não se pode olvidar que em certos momentos os interesses do Estado prevalecerão sobre os direitos fundamentais do indivíduo. Na verdade, é o Estado que mais faz prevalecer a sua vontade. Em diversos momentos, direitos fundamentais são postos em segundo plano para que a ordem seja mantida. E o Estado é que mantém tal ordem. E assim o faz, utilizando-se de seu poder soberano.
Assim, é escudado em sua soberania que o Estado pode cercear a liberdade de seus súditos, quando um destes cometer um crime; ou, constrange o indivíduo a pagar tributos, mesmo contra sua vontade; e até retira-lhe a vida, nos casos expressos da Constituição (art. 5º, XLVII, a da CF), pois, de fato, há certas condições fundamentais das sociedades organizadas que devem ser mantidas, nem que para isso os direitos fundamentais precisem ser mitigados.
3.5. DESTINATÁRIOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Neste momento da pesquisa, torna-se imperioso destacar quem são os destinatários dos direitos fundamentais elencados na Constituição Federal. Isto porque, se os estrangeiros não residentes no Brasil não tiverem nenhum direito fundamental resguardado pelo ordenamento jurídico pátrio, toda a pesquisa tornar-se inócua.
Assim, de acordo como o caput do art. 5º da Constituição Federal, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.
Da leitura desse texto constitucional, pode-se observar que os direitos que compõem a ordem jurídica brasileira são garantidos aos brasileiros, natos e naturalizados, e aos estrangeiros residentes no Brasil. Desta afirmação indaga-se: os estrangeiros não residentes não têm garantidos seus direitos fundamentais no Brasil?
Na verdade, Silva (2015) ensina que a posição do estrangeiro não residente em face dos direitos e garantias assegurados no art. 5º. não é fácil de delinear, tendo em vista que aí só se mencionam os brasileiros e estrangeiros no País. Na Constituinte ocorreu tentativa de definir, com clareza, a condição jurídica do estrangeiro, contudo, esse intento não prosperou. Desta forma, se se entender o texto do art. 5º, caput, de forma literal, o estrangeiro não residente não terá de nenhum dos direitos e garantias nele enunciados. Pontes de Miranda não pensava assim, pois, sobre o tema, em face da Constituição revogada, achava que alguns parágrafos do então art. 153. modificaram a extensão da parte inicial do artigo, ou para diminuí-la, ou para levá-la além. Só o exame das questões pode guiar-nos na análise das espécies, utilizados os conceitos de supra-estatalidade e infra-estatalidade: os direitos supra-estatais e absolutos, são assegurados a qualquer ser humano.
Pode-se, assim, chegar a duas conclusões. A primeira é de que não se deve interpretar o caput do art. 5º da CF apenas pelo método hermenêutico gramatical, caso contrário, não se garantiria direitos aos estrangeiros não residentes no Brasil. Já a segunda, chancelada pelos ensinamentos do brilhante jurista Pontes de Miranda, conduz a conclusão de que cada caso deve ser analisado in concreto, sob o norte dos conceitos de supra-estatalidade e da infra-estatalidade: os direitos supra-estatais são absolutos, logo, assegurados também aos estrangeiros não residentes no Brasil.
Assim, quando a Constituição, garante direitos aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, indica, concomitantemente, sua positivação em relação aos sujeitos (subjetivação) a que os garante. Só eles, portanto, gozam do direito subjetivo (poder ou permissão de exigibilidade) relativamente aos enunciados constitucionais dos direitos e garantias individuais. Logo, somente aos brasileiros e estrangeiros residentes é que há o direito subjetivo de reclamar ao Estado a concretização dos direitos fundamentais. Contudo, não se quer afirmar que os estrangeiros não residentes, quando regularmente se encontrem no território nacional, possam sofrer por arbitrariedade, e não tenham de qualquer meio, incluindo os jurisdicionais, para tutelar situações subjetivas. Para protegê-los, há outras normas jurídicas, inclusive de Direito Internacional, que o Brasil e suas autoridades têm que respeitar e observar, assim como existem normas legais, traduzidas em legislação especial, que definem os direitos e a condição jurídica do estrangeiro não residente, que tenha ingressado regularmente no território brasileiro (ibid).
Portanto, os estrangeiros não residentes possuem meios eficazes para proteger seus direitos. Há normas, tanto no âmbito interno, quanto externo, que servem de escudo para que eles busquem a tutela de certos direitos, quando aqui violados. De outro turno, isso não quer dizer, que em algum momento, os direitos dos estrangeiros não residentes, não precisam ceder aos interesses maiores do Estado Brasileiro.
Na verdade, a complexidade está ante ao fato de coexistência paradoxal das garantias dos direitos fundamentais dos estrangeiros não residentes no Brasil, e ao mesmo tempo, a necessidade de restringir, em alguns momentos, certos direitos a estes indivíduos. Nesse contexto, apresenta-se viável negar a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos aos estrangeiros não residentes no Brasil, pois os direitos deles, neste caso, devem e precisam se curvar ao poder soberano do Estado Brasileiro, no que tange a prevalência do interesse público, sobre o deles, que é particular.
Por oportuno, calha afirmar que não se deve utilizar de escudo o simplório argumento de que o Estado é ineficaz no controle das penas restritivas de direito, e assim relegar a responsabilidade do cumprimento destas penas unicamente a esfera pública e, consequentemente, valendo-se de outro argumento, vetusto e inadequado, de que o condenado, em geral (seja brasileiro nato ou naturalizado, estrangeiro residente ou não), é vítima e que não deve colaborar no cumprimento de sua pena, pois é cediço que na maciça maioria dos casos o condenado busca se furtar das determinações penais, e executórias penais, a ele imputadas.
Esta forma de pensar deve ser modificada. Vale ressaltar que neste ponto, certa ala garantista, não compreende desta maneira. Porém é necessário abandonar o entendimento de que o descumpridor das leis é vítima do Estado, na verdade, apenas cumpre pena referente a um crime que cometeu.
A fim de colaborar com os argumentos já expostos, de que é constitucional negar a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito ao estrangeiro não residente, traz-se ementa do Recurso de Agravo 20110020051371RAG, do Tribunal do Distrito Federal e dos Território, tendo como relator o Desembargador João Timóteo de oliveira:
RECURSO DE AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. ART. 33, CAPUT, E § 3º, DA LEI N. 11.343/06. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. RÉU PRIMÁRIO. PRELIMINAR. REJEITADA. CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE. EFEITOS DA DECISÃO PROFERIDA NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REVOGADA A SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVAS DE DIREITOS. CIRCUNSTÂNCIAS E CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. DESFAVORÁVEIS. GRANDE QUANTIDADE E NATUREZA PERIGOSA DA DROGA. ACUSADO ESTRANGEIRO CONDENADO POR CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS. SEM RESIDÊNCIA FIXA NO PAÍS E INDICIADO EM INQUÉRITO PARA EXPULSÃO DE ESTRANGEIRO. RECURSO PROVIDO.
1. A evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o controle incidental de constitucionalidade promoveu a objetivação do recurso extraordinário e ampliou os limites subjetivos da sentença proferida em sede de controle difuso.
2. Nessas circunstâncias, as decisões de inconstitucionalidade proferidas de forma incidental na análise de casos concretos passam a ter os seus efeitos estendidos aos demais casos, vinculando a atuação dos órgãos do Poder Judiciário às orientações da Corte Constitucional.
3. A quantidade e a natureza da droga apreendida são circunstâncias judiciais específicas do crime de tráfico ilícito de entorpecentes e devem ser avaliadas por ocasião do exame do pedido de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, obstando a conversão quando serviu de redução na fração de apenas ½ (metade), e não no grau máximo de 2/3 (dois terços), para a aplicação da causa de diminuição da pena prevista no § 4º do artigo 33 da Lei nº 11.343/06.
4. O óbice à substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos também decorre da condenação do acusado pela prática de crime de tráfico ilícito de entorpecentes, de ter instaurado contra si inquérito de expulsão de estrangeiro e de não ter residência fixa no país, sendo esta a hipótese dos autos.
5. Recurso provido para revogar a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.
Recurso de Agravo 20110020051371RAG. Relator: Desembargador João Timóteo de Oliveira. Acórdão n.º 508.582 (CONSULTA PROCESSUAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2011, p. 1)
Constata-se, no caso retrocitado, que a ausência de residência fixa, no caso do estrangeiro condenado, foi fator preponderante para que se negasse a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito.
Obviamente que no bojo do processo outros fatores culminaram para a decisão (grande quantidade e natureza perigosa da droga e inquérito para expulsão de estrangeiro), fato, inclusive, que corrobora com os argumentos já expostos, no sentido de que cada caso deve ser analisado com prudência, pois o que irá determina a não substituição da pena, não é unicamente a ausência de residência, mas sim, todo uma gama de circunstâncias que apresentarem-se desfavoráveis ao condenado.
Seguindo a mesmo linha de raciocínio, o Desembargador Luiz Stefanini, na Apelação Criminal 0005718-80.2010.4.03.6119/SP 2010.61.19.005718-5/SP, negou a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direito a estrangeiro não residente no Brasil:
EMENTA: PENAL. APELACAO CRIMINAL. TRAFICO TRANSNACIONAL DE DROGAS: ART. 33, CAPUT, C/C DIARIO ELETRONICO DA JUSTICA FEDERAL DA 3ª REGIAO ART. 40, I DA Lei nº 11.343/06: MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. CONDENACAO MANTIDA. DOSIMETRIA DA PENA: MANUTENCAO DA PENA-BASE: ATENDIMENTO AOS CRITERIOS DO ART. 69. DO CP E DO ART. 42, DA LEI DE DROGAS: PROPORCIONALIDADE. CONFISSAO: FUNDAMENTO DA CONDENACAO: APLICACAO OBRIGATORIA. CAUSA DE REDUCAO DE PENA PREVISTA NO 4º DO ART. 33. DA LEI Nº 11.343/06: INAPLICABILIDADE AOS "MULAS" DO TRAFICO : PROVAS DE INTEGRACAO EM ORGANIZACAO CRIMINOSA: EXCLUSAO. SUBSTITUICAO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITOS: INAPLICABILIDADE AO CRIME DE TRAFICO. REGIME INICIAL FECHADO : IMPERATIVO LEGAL. DIREITO DE RECORRER EM LIBERDADE : IMPOSSIBILIDADE: VEDACAO DECORRENTE DE PRECEITO CONSTITUCIONAL E DE LEI ESPECIAL. PRISAO PREVENTIVA DECRETADA.
[...]
9. Para a concessão da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, e necessário que o réu preencha, além do requisito objetivo (quantidade da pena), os requisitos subjetivos. Considerando-se os motivos e as circunstancias do crime, a substituição a pena privativa de liberdade não se mostra suficiente para impedir que a ré volte a traficar drogas, refreando o desejo de ganho irrefletido de dinheiro. Por outro lado, se prestar serviços em instituições públicas, terá a chance de dar continuidade ao crime de trafico de drogas. A vedação a substituição também tem fundamento nos artigos 33, paragrafo 4º e 44, ambos da Lei nº 11.343/06. Por outro lado, a ré e estrangeira, não possui vínculos nem exerce atividade licita no Brasil, e certamente não terá condições de se manter no pais, podendo facilmente se evadir
APELACAO CRIMINAL Nº 0005718-80.2010.4.03.6119/SP 2010.61.19.005718-5/SP. RELATOR: Desembargador Federal Luiz Stefanini. No. ORIG.: 00057188020104036119 2 Vr Guarulhos/SP (RADAR OFICIAL, 2012, p. 9)
Pode-se, portanto, perceber que negar a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito ao estrangeiro não residente no Brasil, não fere o ordenamento jurídico constitucional. Nos dois julgados citados, além de outros requisitos subjetivos, os relatores indicaram a ausência de residência do estrangeiro como causa para negar a substituição da pena privativa de liberdade, por restritiva de direito. Ficou claro, assim, que o direito do punir do Estado se sobrepôs sobre o direito de individualização da pena.