Capa da publicação Indulto de Natal: ADI 5.874 em face do Decreto nº 9.246/2017
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O indulto de Natal: uma breve análise acerca da ADI 5.874 proposta em face do Decreto nº 9.246/2017

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O Estado Democrático de Direito exige que as penas sejam justas, proporcionais e determinadas, mas isso não subtrai do Presidente da República o direito de conceder indulto, com as ressalvas explicitadas na Constituição.

1. Em 28 de dezembro de 2017, a eminente presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, deferiu medida cautelar nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.874, que, no ponto que imediatamente interessa, está vazado nos seguintes termos:

28. Pelo exposto, pela qualificada urgência e neste juízo provisório, próprio das medidas cautelares, defiro a medida cautelar (art. 10 da Lei n. 9.868/1999), para suspender os efeitos do inc. I do art. 1º; do inc. I do § 1º do art. 2º, e dos arts. 8º, 10 e 11 do Decreto n. 9.246, de 21.12.2017, até o competente exame a ser levado a efeito pelo Relator, Ministro Roberto Barroso ou pelo Plenário deste Supremo Tribunal, na forma da legislação vigente.

29. Notifique-se o Presidente da República para, querendo, prestar informações na forma do art. 10 da Lei n. 9.868/1999.

2. Os preceitos normativos alcançados por esse aludido despacho judicial são os seguintes:

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no exercício da competência privativa que lhe confere o art. 84, caput, inciso XII, da Constituição, e considerando a tradição, por ocasião das festividades comemorativas do Natal, de conceder indulto às pessoas condenadas ou submetidas a medida de segurança e comutar penas de pessoas condenadas, 

DECRETA

Art. 1º  O indulto natalino coletivo será concedido às pessoas nacionais e estrangeiras que, até 25 de dezembro de 2017, tenham cumprido:

I - um quinto da pena, se não reincidentes, e um terço da pena, se reincidentes, nos crimes praticados sem grave ameaça ou violência a pessoa;

.....

Art. 2º  O tempo de cumprimento das penas previstas no art. 1º será reduzido para a pessoa:

§ 1º  A redução de que trata o caput será de:

I - um sexto da pena, se não reincidente, e um quarto da pena, se reincidente, nas hipóteses previstas no inciso I do caput do art. 1º;

......

Art. 8º  Os requisitos para a concessão do indulto natalino e da comutação de pena de que trata este Decreto são aplicáveis à pessoa que:

I - teve a pena privativa de liberdade substituída por restritiva de direitos;

II - esteja cumprindo a pena em regime aberto;

III - tenha sido beneficiada com a suspensão condicional do processo; ou

IV - esteja em livramento condicional. 

.....

Art. 10.  O indulto ou a comutação de pena alcançam a pena de multa aplicada cumulativamente, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, observados os valores estabelecidos em ato do Ministro de Estado da Fazenda. 

Parágrafo único.  O indulto será concedido independentemente do pagamento:

I - do valor multa, aplicada de forma isolada ou cumulativamente; ou

II - do valor de condenação pecuniária de qualquer natureza. 

Art. 11.  O indulto natalino e a comutação de pena de que trata este Decreto são cabíveis, ainda que:

I - a sentença tenha transitado em julgado para a acusação, sem prejuízo do julgamento de recurso da defesa em instância superior;

II - haja recurso da acusação de qualquer natureza após a apreciação em segunda instância;

III - a pessoa condenada responda a outro processo criminal sem decisão condenatória em segunda instância, mesmo que tenha por objeto os crimes a que se refere o art. 3º; ou

IV - a guia de recolhimento não tenha sido expedida. 

3. Os dispositivos constitucionais supostamente vulnerados pelos referidos preceitos do Decreto 9.246/2017 seriam os seguintes: art. 2º; art. 5º, caput, e incisos XLVI, XLIII, LIV; art. 62, § 1º, alínea ‘b’.  Pede-se licença para a transcrição desses enunciados constitucionais:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

....

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

...

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:...

....

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem; 

...

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

....

Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.                            

§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:     

b) direito penal, processual penal e processual civil; 

4. Na construção de seu venerando decisum, a ilustre ministra discorreu sobre a natureza e a finalidade do indulto, e assinalou que:

10. Na vigência desta Constituição, foram expedidos decretos de indulto nos períodos de natal, a comprovar a natureza benemérita do instituto, agraciando-se o condenado que já tenha cumprido parte da pena e esteja em condições humanitárias de atender ao desiderato constitucional de contemplar a apenado arrependido ou em especiais condições que desumanizam a sua permanência no cárcere, sem se comprometer a segurança pública e jurídica dos cidadãos com a sua exclusão do sistema penal.

Maquiando a descriminalização sob a forma de indulto, o que se estaria a praticar seria o afastamento do processo penal e da pena definida judicialmente.

5. Segundo a presidente da Corte, ainda que em sede de juízo precário, o Decreto impugnado incorreria em desvio de finalidade e, por essa razão, deveria ser suspenso. Registrou Sua Excelência:

15. As alegações da Autora da presente ação são demonstradas no sentido de que os dispositivos impugnados (item I do art. 1º; § 1º do art. 2o.; arts. 8º, 10 e 11 da Constituição da República) não se coadunam com a finalidade constitucionalmente estatuída a permitir o indulto, pois, conforme posto na peça inicial do processo, esvazia-se a jurisdição penal, nega-se o prosseguimento e finalização de ações penais em curso, privilegia-se situações de benefícios sobre outros antes concedidas a diluir o processo penal, nega-se, enfim, a natureza humanitária do indulto, convertendo-o em benemerência sem causa e, portanto, sem fundamento jurídico válido.

6. Ainda, para a ilustre magistrada:

16. Mostra-se plausível, ainda, a alegação de afronta ao princípio da proporcionalidade, vinculada à proibição de se negar a proteção suficiente e necessária de tutela ao bem jurídico acolhido no sistema para garantia do processo penal. Tanto se comprova pela circunstância de os dispositivos impugnados parecerem substituir a norma penal garantidora da eficácia do processo, afrontando a finalidade e superando os limites do indulto. Invade-se, assim, competência típica e primária dos poderes Legislativo e Judiciário. Também o princípio da proporcionalidade consubstanciado na proibição de proteção deficiente parece afrontado pelos dispositivos impugnados na presente ação direta de inconstitucionalidade, porque dão concretude à situação de impunidade, em especial aos denominados ‘crimes de colarinho branco’, desguarnecendo o erário e a sociedade de providências legais voltadas a coibir a atuação deletéria de sujeitos descompromissados com valores éticos e com o interesse público garantidores pela integridade do sistema jurídico.

7.  Cuide-se que a eminente ministra demarcou o alcance normativo de sua decisão:

Essa medida não importa em qualquer provimento irreversível, porque os possíveis beneficiários do indulto ou da comutação de pena cumprem pena imposta por processo penal regular, não se havendo cogitar de agravamento de alguma situação criminal ou de redução de direitos constitucionalmente assegurados.

8. Na conclusão de seu despacho, ficou assentado:

27. Os argumentos expendidos na petição inicial, aos quais se acopla o aparente desvio de finalidade e o fundamento relevante de relativização da jurisdição penal que poderia advir das inovações impugnadas nesta ação direta de inconstitucionalidade, impõem a suspensão dos efeitos do inc. I do art. 1º; do inc. I do § 1º do art. 2º, e dos arts. 8º, 10 e 11 do Decreto n. 9.246/2017, controvertidos na espécie, como medida de preservação da jurisdição buscada na presente ação de controle abstrato de constitucionalidade, e considerada, ainda, a manifesta dificuldade na reversão dos efeitos decorrentes das medidas questionadas, se for o caso. Diversamente, novo exame desta medida cautelar pelo órgão competente deste Supremo Tribunal, segundo a discrição daquela autoridade, não traria dificuldade à continuidade da produção dos efeitos da norma impugnada, se vier a ser esta a conclusão judicial, sendo certo que a suspensão dos efeitos do indulto nas situações previstas nos dispositivos questionados não importará em dano irreparável aos indivíduos por ele beneficiados, pois em cumprimento de pena advinda de regular processo judicial condenatório.

9.  Com efeito, a aludida decisão da presidente do STF decorreu de provocação da Procuradora-Geral da República nos autos de ação direta de inconstitucionalidade em face dos agitados preceitos normativos do Decreto 9.246/2017.  Segundo a ilustrada chefe do Parquet:

O Decreto 9.246/17 – especialmente os dispositivos do art. 1º-I; do §1º, I do art. 2º e dos artigos 8º, 10 e 11 – vulnera, a um só tempo, as normas dos artigos 2º, 5º-caput e incisos XLVI, XLII, LIV e 62, parágrafo 1º, letra b da Constituição Federal que são princípios fundamentais do estado democrático de direito e que consagram a separação dos poderes, a individualização da pena, a vedação de legislação em matéria penal pelo Poder Executivo e a vedação da proteção insuficiente, tornando-se causa de impunidade. Também viola o princípio da igualdade, por beneficiar muito especialmente determinado grupo de condenados, notadamente aqueles que praticaram crimes contra o patrimônio público, sem qualquer razão humanitária que o justifique.

10. Para a requerente, o questionado art. 1º, inciso I, Decreto 9.246/2017:

que concede indulto natalino aos condenados que cumpriram apenas um quinto de suas penas, inclusive as penas restritivas de direito – após terem sido processados e julgados pelo Poder Judiciário, com base em critérios constitucionais de individualização e dosimetria da pena pela prática de crime previsto em lei penal – viola os princípios constitucionais da separação dos Poderes, da individualização da pena, da vedação constitucional ao Poder Executivo para legislar sobre direito penal e de vedação da proteção insuficiente, porque promove punição desproporcional ao crime praticado, enseja percepção de impunidade e de insegurança jurídica, e desfaz a igualdade na distribuição da justiça.

11. Em sua narrativa, a autora da ação alega:

Todavia, discricionariedade não é arbitrariedade, pois esta não tem amparo constitucional, enquanto aquela deve ser usada nos limites da Constituição. Há pouco espaço para o indulto em um regime constitucional que aplica e executa penas justas, proporcionais e determinadas, definidas na sentença pelo Poder Judiciário, rigorosamente nos limites legais, segundo o devido processo legal, que assegura ao condenado recursos, ampla defesa e contraditório. Nestes limites, não é dado ao Presidente da República extinguir penas indiscriminadamente, como se seu poder não tivesse limites: e o limite do seu poder, no caso de indulto, é o livre exercício da função penal pelo Poder Judiciário, encarregado de aplicar a lei ao caso concreto e, assim, produzir os efeitos esperados do Direito Penal: punir quem cometeu o crime, fazê-lo reparar o dano, inibir práticas semelhantes pelo condenado e por outrem, reabilitar o infrator perante a sociedade. Estes objetivos do direito penal, alcançáveis por meio da função penal exercida pelo Poder Judiciário, ficarão frustrados se o indulto anular a atuação judicial, descredenciando-o com uma exoneração ampla, em bases que gerem impunidade e atraiam a desconfiança em torno da capacidade do Estado de punir o crime e os criminosos. Os limites constitucionais do indulto derivam direta e precisamente do princípio constitucional da separação e da harmonia dos poderes.

Portanto, o indulto deve ser um ato discricionário fundamentado e não um ato arbitrário. A norma impugnada aparta-se da Constituição ao extrapolar o objetivo do indulto, que é puramente humanitário, para eximir da punição quem deveria cumprir ao menos a pena mínima cominada ao crime, na lei penal, e, assim, assumir plenas funções penais, próprias do Poder Judiciário.

12. A requerente colaciona vários Decretos e conclui que o indulto tem sido ampliado para atingir condenados que cumpriram uma parcela ínfima de sua pena.

13.  Sobre a aplicabilidade do indulto, escreveu a requerente:

A Constituição não permite que seja utilizado como meio de abrandar ou anular o dever de reparar o dano causado pelo crime ou de exonerar-se das penas patrimoniais sentenciadas pelo juiz, como um favor a apenados. O indulto só pode atingir penas corporais, relativas a prisão. Não as penas alternativas, porque estas não ensejam clamores humanitários. É igualmente inconstitucional fazer o indulto paralisar processos e recursos em andamento, ou conceder indulto para casos de tortura, de terrorismo e de crimes hediondos, por expressa vedação constitucional.

14.  É que, segundo a requerente, o indulto tem caráter puramente humanitário, daí que permite exonerar da prisão os doentes terminais, os muito velhos ou mulheres gestantes.

15.  Nessa linha, a requerente, apoiando-se em visão subjetiva de manifestação de representante do Ministério Público Federal, acolhe duas premissas:

15.1. Vive-se um tempo de penas justas, proporcionais e determinadas;

15.2. Não é dado ao Chefe de Estado extinguir penas indiscriminadamente, como se a ele pertencessem.

16.   Com efeito, é civilizatória a crença segundo a qual, em nosso País, desde a promulgação da Constituição de 1988, todos os magistrados e tribunais têm julgado as causas com respeito ao devido processo legal. Eis um mito civilizatório que devemos intersubjetivamente partilhar e objetivamente tornar realidade. Todos os brasileiros devemos confiar na estabilidade de nossas instituições democráticas.

17. E, sem nenhuma dúvida, a nossa Constituição não autoriza que existam soberanos donos do poder, da verdade, do belo e do justo, pois todos, indiscriminadamente, devemos agir dentro dos limites de nossas atribuições constitucionalmente delineadas, mormente as autoridades públicas, desde o “guarda da esquina” até o Presidente da República.

18. Esses dois personagens (o “guarda da esquina” e o “Presidente da República”) foram lembrados pelo então vice-Presidente da República Pedro Aleixo por ocasião da edição do famigerado Ato Institucional n. 5, em 13 de dezembro de 1968.

19. Pede-se licença para recordar os consideranda contidos no preâmbulo desse aludido ucasse normativo:

 O PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e

CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria" (Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964);

CONSIDERANDO que o Governo da República, responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas, não só não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro, bem como porque o Poder Revolucionário, ao editar o Ato Institucional nº 2, afirmou, categoricamente, que "não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará" e, portanto, o processo revolucionário em desenvolvimento não pode ser detido;

CONSIDERANDO que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar "a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução", deveria "assegurar a continuidade da obra revolucionária" (Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966);

CONSIDERANDO, no entanto, que atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la;

CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária;

CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição,

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20. Felizmente, os tempos atuais são outros. A nossa democracia republicana é sólida e as instituições funcionam dentro da normalidade, sem quebras de legalidade. O Estado Democrático de Direito é uma realidade, e não uma remota utopia.

21. Nada obstante essa atual e sólida realidade democrática e republicana, segundo a requerente:

o caso do Decreto ora questionado, que extrapolou os limites da política criminal a que se destina para favorecer, claramente (sic), a impunidade, dispensando do cumprimento da sentença judicial justamente os condenados por crimes que apresentam alto grau de dano social, com consequências morais e sociais inestimáveis, como é o caso dos crimes de corrupção, de lavagem de dinheiro e outros correlatos.

22. Para a autora da ação, o indulto não poderia alcançar crimes popularmente conhecidos como de “colarinho branco”, como os que estão sendo investigados e punidos pela “Operação Lava Jato”.      Com o devido respeito, a Constituição não proíbe a concessão de indulto para esses crimes. Onde a Constituição não veda, não cabe às instâncias constituídas vedar. É ocioso recordar, mas somente o Congresso Nacional, no exercício do Poder Constituinte, está autorizado a inovar a Constituição. Essa obviedade ululante não pode jamais ser desprezada ou esquecida.

23. Em que pese essas circunstâncias, a requerente alega que o Decreto objurgado viola o princípio da igualdade por supostamente beneficiar determinado grupo de condenados por crimes contra o patrimônio público, sem, segundo ela, qualquer razão humanitária que o justifique. Eis uma criação normativa do Parquet, com a devida vênia.

24. A requerente assevera:

A Constituição não permite que seja utilizado como meio de abrandar ou anular o dever de reparar o dano causado pelo crime ou de exonerar-se das penas patrimoniais sentenciadas pelo juiz, como um favor a apenados. O indulto só pode atingir penas corporais, relativas à prisão. Não as penas alternativas, porque estas não ensejam clamores humanitários. É igualmente inconstitucional fazer o indulto paralisar processos e recursos em andamento, ou conceder indulto para casos de tortura, de terrorismo e de crimes hediondos, por expressa vedação constitucional.

25. Convém recordar o disposto nos arts. 3º e 4º do Decreto impugnado:

Art. 3º  O indulto natalino ou a comutação de pena não será concedido às pessoas condenadas por crime:

I - de tortura ou terrorismo;

II - tipificado nos art. 33, caput e § 1º, art. 34, art. 36 e art. 37 da Lei nº 11.343, de 2006, exceto na hipótese prevista no art. 1ºcaput, inciso IV, deste Decreto;

III - considerado hediondo ou a este equiparado, ainda que praticado sem grave ameaça ou violência a pessoa, nos termos da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990;

IV - praticado com violência ou grave ameaça contra os militares e os agentes de segurança pública, de que tratam os art. 142 e art. 144 da Constituição, no exercício da função ou em decorrência dela;

V - tipificado nos art. 240, art. 241 e art. 241-A, caput e § 1º, da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990; ou

VI - tipificado nos art. 215, art. 216-A, art. 218 e art. 218-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal. 

Art. 4º  O indulto natalino ou a comutação não será concedido às pessoas que:

I - tenham sofrido sanção, aplicada pelo juízo competente em audiência de justificação, garantido o direito aos princípios do contraditório e da ampla defesa, em razão da prática de infração disciplinar de natureza grave, nos doze meses anteriores à data de publicação deste Decreto;

II - tenham sido incluídas no Regime Disciplinar Diferenciado, em qualquer momento do cumprimento da pena;

III - tenham sido incluídas no Sistema Penitenciário Federal, em qualquer momento do cumprimento da pena, exceto na hipótese em que o recolhimento se justifique por interesse do próprio preso, nos termos do art. 3º da Lei nº 11.671, de 8 de maio de 2008; ou

IV - tenham descumprido as condições fixadas para a prisão albergue domiciliar, com ou sem monitoração eletrônica, ou para o livramento condicional, garantido o direito aos princípios do contraditório e da ampla defesa. 

§ 1º  Na hipótese de a apuração da infração disciplinar não ter sido concluída e encaminhada ao juízo competente, o processo de declaração do indulto natalino ou da comutação será suspenso até a conclusão da sindicância ou do procedimento administrativo, que ocorrerá no prazo de trinta dias, sob pena de prosseguimento do processo e efetivação da declaração. 

§ 2º  Decorrido o prazo a que se refere o § 1º sem que haja a conclusão da apuração da infração disciplinar, o processo de declaração do indulto natalino ou da comutação prosseguirá. 

26. É forçoso rememorar que em termos penais ou processuais penais, há um extenso catálogo na Constituição, como sucede no art. 5º:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

....

 XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

....

XXXVII - não haverá juízo ou tribunal de exceção;

XL - a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;               

XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo; 

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

XLVIII - a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

L - às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;

LI - nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;

LII - não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião;

LIII - ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;

LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;

LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;

LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;

LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

......

LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

LXXV - o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença;

LXXVII - são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.                

LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.                         

§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.                          

§ 4º O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.

27. Em nenhum desses preceitos há vedação ou a exclusão quanto aos crimes de “colarinho branco”. Ou seja, para a Constituição, mesmo os culpados pelos crimes de “colarinho branco” devem ser tratados com respeito e consideração. A Constituição, em sede de crimes de “colarinho branco” não exclui os investigados ou acusados ou réus, sequer ou muito menos os culpados, da sua proteção normativa. Não há, nos termos da Constituição, um direito penal ou processual penal para os crimes de “colarinho branco” e outro para os demais crimes. E onde há distinções, a Constituição as fez explicitamente. Logo, onde o legislador constituinte não distinguiu não cabe ao Parquet distinguir, com a devida vênia.

28. Cuide-se que o Brasil ratificou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Decreto n. 5.687, de 31 de janeiro de 2006) e tem adotado medidas políticas, judiciais e administrativas para combater esse tipo de criminalidade. Pede-se licença para transcrever os artigos 1º e 30 dessa aludida Convenção:

Artigo 1

Finalidade

 A finalidade da presente Convenção é:

a) Promover e fortalecer as medidas para prevenir e combater mais eficaz e eficientemente a corrupção;

b) Promover, facilitar e apoiar a cooperação internacional e a assistência técnica na prevenção e na luta contra a corrupção, incluída a recuperação de ativos;

c) Promover a integridade, a obrigação de render contas e a devida gestão dos assuntos e dos bens públicos.

........

Artigo 30

Processo, sentença e sanções

 1. Cada Estado Parte punirá a prática dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção com sanções que tenham em conta a gravidade desses delitos.

2. Cada Estado Parte adotará as medidas que sejam necessárias para estabelecer ou manter, em conformidade com seu ordenamento jurídico e seus princípios constitucionais, um equilíbrio apropriado entre quaisquer imunidades ou prerrogativas jurisdicionais outorgadas a seus funcionários públicos para o cumprimento de suas funções e a possibilidade, se necessário, de proceder efetivamente à investigação, ao indiciamento e à sentença dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.

 3. Cada Estado Parte velará para que se exerçam quaisquer faculdades legais discricionárias de que disponham conforme sua legislação interna em relação ao indiciamento de pessoas pelos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção a fim de dar máxima eficácia às medidas adotadas para fazer cumprir a lei a respeito desses delitos, tendo devidamente em conta a necessidade de preveni-los.

4. Quando se trate dos delitos qualificados de acordo com a presente Convenção, cada Estado Parte adotará as medidas apropriadas, em conformidade com sua legislação interna e levando devidamente em consideração os direitos de defesa, com vistas a procurar que, ao impor condições em relação com a decisão de conceder liberdade em espera de juízo ou apelação, se tenha presente a necessidade de garantir o comparecimento do acusado em todo procedimento penal posterior.

5. Cada Estado Parte terá em conta a gravidade dos delitos pertinentes ao considerar a eventualidade de conceder a liberdade antecipada ou a liberdade condicional a pessoas que tenham sido declaradas culpadas desses delitos.

6. Cada Estado Parte considerará a possibilidade de estabelecer, na medida em que ele seja concordante com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, procedimentos em virtude dos quais um funcionário público que seja acusado de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção possa, quando proceder, ser destituído, suspenso ou transferido pela autoridade correspondente, tendo presente o respeito ao princípio de presunção de inocência.

7. Quando a gravidade da falta não justifique e na medida em que ele seja concordante com os princípios fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Estado Parte considerará a possibilidade de estabelecer procedimentos para inabilitar, por mandado judicial ou outro meio apropriado e por um período determinado em sua legislação interna, as pessoas condenadas por delitos qualificados de acordo com a presente Convenção para:

a) Exercer cargos públicos; e

b) Exercer cargos em uma empresa de propriedade total ou parcial do Estado.

8. O parágrafo 1 do presente Artigo não prejudicará a aplicação de medidas disciplinares pelas autoridades competentes contra funcionários públicos.

9. Nada do disposto na presente Convenção afetará o princípio de que a descrição dos delitos qualificados de acordo com ela e dos meios jurídicos de defesa aplicáveis ou demais princípios jurídicos que regulam a legalidade de uma conduta que a reservada à legislação interna dos Estados Partes e de que esses delitos haverão de ser perseguidos e sancionados em conformidade com essa legislação.

10. Os Estados Partes procurarão promover a reinserção social das pessoas condenadas por delitos qualificados de acordo com a presente Convenção.

29. Ou seja, não há na Constituição qualquer ressalva quanto aos crimes de “colarinho branco” e nos termos da referida Convenção Internacional, as pessoas condenadas pelos delitos de “colarinho branco” têm direito à reinserção social.

30. Uma premissa deve ser imediatamente estabelecida: a Constituição não é poesia (ou obra de arte) aberta a quaisquer interpretações de acordo com as idiossincrasias do respectivo leitor. A Constituição é texto normativo que serve de parâmetro objetivo para as condutas subjetivas, segundo valores intersubjetivamente compartilhados. As subjetividades do leitor e das pessoas devem se conformar às objetividades do texto normativo e das circunstâncias fáticas.

31. Em que pese essa verdade insofismável e inquestionável, a requerente insiste na tese segundo a qual o Decreto impugnado agrediu a Constituição, pois estaria havendo uma violação das prerrogativas constitucionais do Poder Judiciário. E assinalou:

Sem razão específica, (o Decreto) ampliou os benefícios desproporcionalmente e criou um cenário de impunidade no país: reduziu o tempo de cumprimento de pena que ignora a pena aplicada; extinguiu as multas aplicadas; extinguiu o dever de reparar o dano; extinguiu penas restritivas de direito, sem razões humanitárias que justifiquem tais medidas e tamanha extinção da punibilidade.

32. A requerente discorda do conteúdo normativo do Decreto. Mas a invalidade constitucional de um preceito normativo decorre de sua contrariedade com a Constituição, e não por um capricho hermenêutico daqueles que discordam de seu conteúdo. Daí a razão segundo a qual a própria Constituição estabelece, no art. 97, a regra do “full bench”. E, na linha da jurisprudência do STF, o preceito normativo somente deve ter a sua inconstitucionalidade decretada se essa for induvidosa ou “chapada”, e se agredir direta e frontalmente dispositivos da Constituição. O que não se trata no presente caso.

33. A Constituição indica quais os tipos de crimes que estão exonerados dos institutos processuais da anistia, ou da graça, ou da fiança, ou da prescritibilidade, ou da proibição da pena de morte (v.g. art. 5º, incisos XLII, XLIII, XLIV, XLVII, CF).    E, reitera-se, não há qualquer menção a crimes de “colarinho branco”.  Sem qualquer receio afirma-se: não há um só dispositivo constitucional contrariado pelo Decreto 9.246/2017.

34.  Tenha-se que, segundo a Constituição, condenado à pena de morte, em caso de guerra declarada, não está fora da possibilidade da concessão de indulto. Mas, segundo o Parquet, condenado por crime de “colarinho branco”, estaria afastado desse benefício.  A guerra contra a corrupção não pode quebrar a coerência do sistema normativo nem desbastar a supremacia jurídica da Constituição. Se até a pena de morte pode ser alcançada pela indulgência, por que outras penas não poderiam? O poder de perdoar é a outra face do poder de punir do Estado.

35. Esse poder que o Presidente da República possui de perdoar os crimes foi objeto de consideração de Alexander Hamilton (O Federalista, capítulo 74) que assentou: a humanidade e a boa política exigem que a benéfica prerrogativa de perdoar seja tão pouco restringida e embaraçada, quanto possível for.

36. Para um dos framers da República americana, inquestionável e consabida fonte de inspiração de nossa República, o poder de perdoar deve ser o mais amplo possível. A Constituição brasileira já estabelece quais os crimes seriam imperdoáveis. E os crimes de “colarinho branco” não estão alcançados pela danação eterna e imperdoável.

37. Se tudo isso por si só já não fosse suficiente para ocasionar a rejeição do pleito da requerente, o Decreto impugnado não cuida especificamente de crime de “colarinho branco”. A requerente entendeu que os condenados por esses crimes também seriam alcançados por normas indulgentes do Decreto, e que tais condenados não fazem jus a essa indulgência presidencial, conquanto, reitere-se à exaustão e cansativamente, a Constituição não vede.

38.  A confortar a validade constitucional do Decreto impugnado recorda-se decisão do STF, nos autos da ADI 2.795 – MC, na qual ficou plasmado o caráter discricionário da prerrogativa presidencial para conceder indultos. Eis a ementa desse acórdão:

EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO FEDERAL. INDULTO. LIMITES. CONDENADOS PELOS CRIMES PREVISTOS NO INCISO XLIII DO ARTIGO 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME. REFERENDO DE MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.

1. A concessão de indulto aos condenados a penas privativas de liberdade insere-se no exercício do poder discricionário do Presidente da República, limitado à vedação prevista no inciso XLIII do artigo 5º da Carta da República. A outorga do benefício, precedido das cautelas devidas, não pode ser obstado por hipotética alegação de ameaça à segurança social, que tem como parâmetro simplesmente o montante da pena aplicada.  2. Revela-se inconstitucional a possibilidade de que o indulto seja concedido aos condenados por crimes hediondos, de tortura, terrorismo ou tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, independentemente do lapso temporal da condenação. Interpretação conforme a Constituição dada ao § 2º do artigo 7º do Decreto 4495/02 para fixar os limites de sua aplicação, assegurando-se legitimidade à indulgencia principis. Referendada a cautelar deferida pelo Ministro Vice-Presidente no período de férias forenses.

39.  Ora, na linha desse julgado, é inconstitucional a possibilidade de indulto para os condenados por crimes hediondos, de tortura, terrorismo ou tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Esses crimes, e somente esses, estão fora do alcance da indulgência presidencial.           

A reforçar essa ampla margem discricionária da prerrogativa presidencial, a manifestação do ministro Luís Roberto Barroso, nos autos

 Execução Penal n. 1, feito que cuidava de condenado por crime de “colarinho branco”:

3. Inicio pela consideração de que o indulto, ao contrário da graça (ou indulto individual), configura uma espécie de “clemência destinada a um grupo de sentenciados, tendo em vista a duração das penas aplicadas, podendo exigir requisitos subjetivos (tais como a primariedade, comportamento carcerário, antecedentes) e objetivos (v.g. cumprimento de certo montante da pena, exclusão de certos tipos de crimes)”. O indulto pode ser, ainda, “total, quando extingue todas as condenações do beneficiário, ou parcial, quando apenas diminui ou substitui a pena por outra mais branda. Neste último caso, não se extingue a punibilidade, chamando-se comutação...” (Guilherme de Souza Nucci, Código Penal Comentado, 2014, p. 601).

4. Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal tem uma orientação consolidada, no sentido de que a concessão do indulto está inserida no exercício do poder discricionário do Presidente da República (ADI 2.795-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa). Veja-se, nessa linha, trecho do voto proferido pelo Ministro Ricardo Lewandowski, no julgamento do HC 90.364 (Plenário, sessão de 31.10.2007), oportunidade em que Sua Excelência, embora concluindo pelo não conhecimento da impetração, fez um valioso apanhado doutrinário e jurisprudencial sobre a matéria:

.......

40. Na mesma toada, ainda do ministro Barroso, nos autos da EP n. 11:

6. Nessas condições, não há dúvida que o Presidente da República, no exercício de poder discricionário, está habilitado a conceder indulto não só da pena privativa de liberdade como também da pena de multa. Notadamente porque o artigo 84, XII, da CF/88, não faz qualquer ressalva ou distinção com relação ao tipo de reprimenda – entre aquelas descritas no art. 5º, XLVI, da CF/88 - que pode ser objeto da clemência estatal.

41. Cuide-se que o punitivismo estatal não pode se transformar em irascível e indomável vingança, sob pena de o direito civilizatório converter-se em arbítrio selvagem. Convém recordar a clássica assertiva do inesquecível Evandro Lins e Silva: “na realidade, quem está desejando punir demais, no fundo, no fundo, está querendo fazer o mal”. Essa clássica passagem consta nos acórdãos do STF nos autos dos Habeas Corpus ns. 94.408 e 84.078, ambos os feitos sob a relatoria do ministro Eros Grau.

42.  Não se pode perder de vista, que o Decreto impugnado deve ser compreendido, também, à luz de julgados do STF sobre a situação carcerária brasileira, como ocorreu no julgamento da medida cautelar na ADPF 347:

CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.

43. Mas foram vulnerados os citados dispositivos constitucionais, segundo a alegação do Parquet? A resposta é desenganadoramente negativa.

44. O Princípio da Separação dos Poderes (art. 2º, CF) não é agredido se o Poder age em conformidade com os limites constitucionalmente delineados e dentro de suas prerrogativas institucionais, como sucede na hipótese em que o Presidente, autorizado pela Constituição (art. 84, XII), concede indulto. Ou seja, o regular exercício dessa função, em estrita conformidade com a Constituição, não transgride esse princípio fundante da República.       Nessa perspectiva, assim como a edição de medida provisória (art. 62, CF), dentro dos limites constitucionalmente não ofende a separação dos poderes, pois autorizada pela própria Constituição, a concessão de indulto (art. 84, XII, CF), também autorizada pela Constituição, não pode ser concebida por agressão a esse princípio, mas atuação excepcional do Executivo em domínios dos outros Poderes da República, no caso o Legislativo na hipótese de medida provisória, e o Judiciário na hipótese do indulto.

45. A alegada violação à normatização em matéria penal e processual penal que estaria vedada no art. 62, § 1º, b, CF, raia à irrisão. Com efeito, o citado comando constitucional veda a edição de medida provisória em matéria relativa a direito penal, processual penal e processual civil. No presente caso, não se trata de edição de medida provisória (ato legislativo primário inovador do ordenamento jurídico), mas de decreto fundado em autorização constitucional. E há mais. A Constituição exige a estrita legalidade penal para criar tipos criminais e hipóteses penais. Essa proteção é contra o poder de punir do Estado, e nunca contra o poder estatal de perdoar.

46. Esse leitmotiv serve para uma afastar a suposta agressão aos incisos XLVI e LIV do art. 5º, CF, na medida em que o princípio da individualização da pena, assim como a exigência do devido processo legal é para privar o indivíduo de seus bens ou de sua liberdade. Não podem esses comandos constitucionais que visam limitar o poder de punir do Estado serem utilizados para amplificar esse poder punitivo ou vingativo, e restringir a faculdade de perdoar e minorar os efeitos das penas infligidas. Ou seja, violenta o espírito liberal da Constituição de 1988 utilizar os seus preceitos para construir soluções normativas autoritárias, como as defendidas pelo Parquet no presente caso.

47. Quanto à alegação de suposta agressão ao art. 5º, XLIII, CF, o já citado art. 3º do Decreto 9.246/2017. Pede-se, vez mais, licença para repetir a sua transcrição:

Art. 3º  O indulto natalino ou a comutação de pena não será concedido às pessoas condenadas por crime:

I - de tortura ou terrorismo;

II - tipificado nos art. 33, caput e § 1º, art. 34, art. 36 e art. 37 da Lei nº 11.343, de 2006, exceto na hipótese prevista no art. 1ºcaput, inciso IV, deste Decreto;

III - considerado hediondo ou a este equiparado, ainda que praticado sem grave ameaça ou violência a pessoa, nos termos da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990;

IV - praticado com violência ou grave ameaça contra os militares e os agentes de segurança pública, de que tratam os art. 142 e art. 144 da Constituição, no exercício da função ou em decorrência dela;

V - tipificado nos art. 240, art. 241 e art. 241-A, caput e § 1º, da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990; ou

VI - tipificado nos art. 215, art. 216-A, art. 218 e art. 218-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal. 

48. Para finalizar. O Estado Democrático de Direito, reinaugurado em 1988, exige que as penas sejam justas, proporcionais e determinadas, como assinalado na premissa do Parquet. Mas isso não subtrai do Presidente da República o direito de conceder indulto, com as ressalvas explicitadas na Constituição. E, de fato, as penas não pertencem ao Chefe de Estado que não pode extingui-las indiscriminadamente.  Com efeito, o Decreto 9.246/2017 não é ucasse arbitrário ou desarrazoado, mas instrumento normativo em plena sintonia com a Constituição. Nada obstante, aguardemos o julgamento definitivo do feito pelo Plenário do STF.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O indulto de Natal: uma breve análise acerca da ADI 5.874 proposta em face do Decreto nº 9.246/2017. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5316, 20 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63537. Acesso em: 22 dez. 2024.

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