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Lei 13.641/18: A (in)afiançabilidade pelo delegado de polícia no crime de descumprimento de medida protetiva de urgência da Lei Maria da Penha

10/05/2018 às 09:15
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O legislador criou uma hipótese de especial inafiançabilidade relativa, na contramão do ordenamento processual e constitucional vigente, inserindo na legislação uma infração de menor potencial ofensivo na qual o delegado é impedido de arbitrar a fiança (Lei 13.641/18).

Com a publicação da Lei 13.641, em 03 de abril de 2018, escrevemos nossos primeiros comentários sobre o novo tipo penal apresentado no artigo 24-A da Lei 11.340/06[1], que tipifica como crime a conduta daquele que descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência. Veja-se o dispositivo:

Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

§1° A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.

§2° Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.

§3° O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.

Em trabalho subsequente[2], concatenamos os argumentos pelos quais entendemos que o crime esposado na norma penal acima transcrita se caracteriza como uma infração de menor potencial ofensivo. Agora, registraremos nossa análise sobre o comando previsto no §2°, i.e., a inafiançabilidade pelo delegado de polícia.

Antes de qualquer coisa, friso que o fato de o crime ser inafiançável por parte da autoridade policial em nada afeta a sua caracterização como infração de menor potencial ofensivo, conforme exaurimos os argumentos no artigo anterior. É que “a identificação de infrações penais de menor potencial ofensivo, atualmente, é feita segundo critério por nós definido como sistema dicotômico de identificação, que leva em conta (a) a quantidade da pena e (b) a qualidade da vítima”[3].

Verificando-se a caracterização do tipo penal primário e secundário, temos uma infração penal que pune conduta praticada contra a administração da justiça, cuja pena é inferior a dois anos. Reprise-se:

Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

O conceito de infração de menor potencial ofensivo, conforme referimos, é pautado segundo parâmetros de hermenêutica que engloba infrações penais que não possuam pena superior a 02 anos (quantidade da pena) e que não sejam praticadas com violência contra a mulher (qualidade da vítima).

Saliente-se que, caso a jurisprudência dos Tribunais venha a afastar o crime do art. 24-A do rito previsto na Lei 9.099/95, deverá dar início a um novo sistema “tricotômico” de identificação das infrações de menor potencial ofensivo, pois, conforme referimos, o dispositivo em análise, a toda evidência, se encaixa nesse conceito.

Respaldando nosso raciocínio, entendemos não ser plausível sustentar que o novo crime está abrangido pela circunstância prevista no art. 41 da Lei 11.340/06, com a máxima vênia aos que assim pensam. Esse raciocínio seria no seguinte sentido: como o artigo 41 da Lei 11.340/06 impede a aplicação da Lei 9.099/95 em fatos relativos à violência doméstica e familiar contra a mulher, em interpretação sistemática, deve-se entender compreendido o novo crime do artigo 24-A, pois, de forma implícita ou indireta, esta forma de violência existe.

Em Direito Penal, isso é interpretação in malam partempois, conforme exaustivamente referimos, o crime do artigo 24-A não é praticado com “violência” e nem é praticado “contra a mulher”.

Ainda, na esteira desse tirocínio, refira-se que a própria Lei 11.340/06, define o que seja violência doméstica e familiar contra a mulher, de modo que, nos termos do art. 5°, esta expressão é compreendida como a “ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Assim, não é razoável ampliar a interpretação do art. 41 para abranger infrações penais que sequer são praticadas “contra a mulher”.

Compartilhando desse entendimento, Ruchester Barbosa[4] argumenta:

Isso não é novidade no ordenamento. O mesmo ocorre na Lei 9.605/98, que prevê condutas pelas quais o sujeito passivo é a fauna ou a flora, porém, tipifica condutas cuja sujeito passivo seja a administração pública ambiental. No Estatuto do Idoso, a Lei 10.741/03, tem com sujeito principal a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos de idade, mas pune o embaraço ou impedimento de atividade de representante do Ministério Público ou outro agente fiscalizador, e assim também na Lei 8.069/90, e o mesmo se repete, tardiamente, na Lei Maria da Penha, contudo, em nenhum desses ordenamentos citados, e são todos direitos com previsão de proteções transindividuais e de minorias, que o legislador não interferiu indevidamente na função materialmente judicial do delegado de polícia de analisar a possibilidade de liberdade provisória, o que chega a ser teratológico, diante de um comportamento delituoso, que não tem como sujeito passivo a violência contra a mulher, conforme o rol previstas do artigo 7º da Lei 11.340/06.

É evidente que não olvidamos de que a proteção seja indireta à mulher diante do descumprimento de uma medida protetiva que visa a integridade física, moral, psicológica, patrimonial e sexual da mulher, como também ocorre no bojo das legislações acima mencionadas, e nem por isso o fato de uma conduta ser contra a administração da Justiça, que indiretamente protegeria um idoso ou uma criança, o comportamento do agente passaria a ser considerado um ato contra o idoso ou a criança.

Não se ignora que a vontade do legislador ao criar o art. 24-A tenha sido aumentar a proteção das vítimas de violência de gênero. No entanto, não foi totalmente feliz na técnica escolhida. Ao criar o dispositivo analisado, aparentemente, tem-se que a proteção aumentou, afinal, o delito está tipificado e, agora, superando-se entendimento jurisprudencial que havia se concretizado, o descumprimento das medidas protetivas caracteriza crime, punido com sanção penal autônoma. Mas, por incoerência, pecou o legislador ao mesclar uma pena identificadora de infrações de menor potencial ofensivo com a inafiançabilidade pela autoridade policial. Isso é incoerente e vai de encontro com o processo penal democrático moderno.

Veja-se, ainda, na esteira do que temos sustentando, que a natureza da infração penal (i.e., se de menor, médio ou alto potencial ofensivo) é definida com base em critérios de direito penal. A fiança, ao seu turno, é um instituto essencialmente do direito processual e, como tal, a sua análise ocorre em momento posterior.

Sendo, portanto, o crime tipificado no artigo 24-A uma infração de menor potencial ofensivo, deve receber da autoridade policial o tratamento jurídico dispensado pela lei às infrações desta natureza, i.e., deve ser apurado mediante a formalização de Termo Circunstanciado e, havendo hipótese de flagrante, o seu autor somente deve ser conduzido ao cárcere quando for renitente em não assinar o termo de compromisso de comparecimento ao JECrim[5].

É a partir desse momento que deve incidir a regra insculpida no §2°[6]. i.e., havendo hipótese de flagrante, negando-se o conduzido a comparecer à audiência do JECrim, deve o delegado de polícia, então, determinar a lavratura do respectivo auto de prisão e, nessa hipótese, não arbitrar a fiança, diante da vedação expressa na norma analisada[7].

O legislador criou uma hipótese de especial inafiançabilidade relativa.

Parece absurdo, mas, por atecnia, o legislador inseriu na legislação uma infração de menor potencial ofensivo na qual o delegado de polícia está impedido de arbitrar a fiança. Inclusive, registre-se que, por conta disso, o Supremo Tribunal Federal poderá declarar a inconstitucionalidade da norma do §2°, já que advém na contramão do ordenamento jurídico[8].

Conforme refere Sannini[9], “embora seja compreensível e até elogiável a intenção do legislador na proteção da mulher, vislumbramos uma violação ao princípio da proporcionalidade” e, completa o referido autor, “parece desproporcional a vedação de fiança pelo delegado de polícia em um crime de perigo, quando o benefício pode ser concedido nos crimes de dano, tais como lesão corporal, ameaça, injúria, etc.”.

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A atecnia do legislador na elaboração do artigo 24-A é tamanha que chega ao ponto de impor um tratamento processual mais grave (vedação de fiança em abstrato pelo delegado) ao crime acessório do que ao crime principal. Em outros termos, atribui-se tratamento mais rigoroso ao crime menos grave.

Dessa forma, o agente que agredir a companheira, praticando um crime diretamente “contra a mulher” poderá ter a fiança arbitrada pelo delegado, mas, quando o autor desse crime antecedente descumprir uma medida protetiva, crime que, a toda evidência, atenta contra a administração da justiça e possui pena máxima de dois anos, somente poderá ter a fiança arbitrada pelo magistrado.

A inferência acima tracejada é feita na medida em que artigo 322 do Código de Processo Penal estabelece ser possível à autoridade policial conceder fiança nos casos em que a infração tenha pena privativa de liberdade máxima não superior a quatro anos. Na esteira desse intelecto, como corolário (i)lógico, a fiança poderá ser arbitrada pelo delegado nos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher, como, por exemplo, a lesão corporal. Entretanto, com escusas pela tautologia, no crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, somente poderá ser concedida fiança pelo magistrado.

E, refira-se, a norma insculpida no artigo 129, §9°, do Código Penal foi incluída no diploma repressivo pela própria lei 11.340/06. Agora, na contramão de todo o processo penal moderno, o legislador pretende vedar a fiança pela autoridade policial ao praticante de um crime cuja pena máxima é dois anos. Ou seja, pretende impor uma prisão pré-cautelar ao agente que, em tese, mesmo ao final do processo criminal, ainda que condenado, não passara um único dia na prisão, salvo se for reincidente[10]. A incoerência é absurda, pois, como bem sintetizou Barbosa[11], “para onde se olha, não há pena privativa de liberdade a se cumprir”.

Como conclusão, mantemos o entendimento articulado no artigo anterior no sentido de que o crime do art. 24-A, conforme o sistema dicotômico de identificação, enquadra-se no conceito de infração de menor potencial ofensivo e como tal deve ser tratado. Assim, o arbitramento da fiança[12], ou não[13], pelo delegado de polícia, deve ser analisado no momento posterior, caso esteja o autor do fato obstinado a não firmar o termo de comparecimento ao JECrim, quando, então, será formalizado o respectivo auto de prisão em flagrante.


Notas

[1] GARCEZ, William. Comentários sobre a Lei 13.641/18: A criminalização do descumprimento de medida protetiva de urgência da Lei Maria da Penha. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65222/comentarios-sobre-a-lei-13-641-18-a-criminalizacao-do-descumprimento-de-medida-protetiva-de-urgencia-da-lei-maria-da-penha. Acessado em 05 de maio de 2018.

[2] GARCEZ, William. Lei 13.641/18: o crime de descumprimento de medida protetiva é infração de menor potencial ofensivo? Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65536/lei-13-641-18-o-crime-de-descumprimento-de-medida-protetiva-e-infracao-de-menor-potencial-ofensivo. Acessado em 05 de maio de 2018.

[3] GARCEZ, William. Ibidem.

[4] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Cabe fiança pelo delegado no descumprimento de medida protetiva. Disponível em: https://delegados.com.br/juridico/cabe-fianca-pelo-delegado-no-descumprimento-de-medida-protetiva. Acessado em 05 de maio de 2018.

[5] Inferência do artigo 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95.

[6] Compartilhando deste entendimento: LEITÃO JÚNIOR, Joaquim; SILVA, Raphael Zanon. Impactos jurídicos da Lei nº 13.641/2018 e o novo crime de desobediência de medidas protetivas. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65424/impactos-juridicos-da-lei-n-13-641-2018-e-o-novo-crime-de-desobediencia-de-medidas-protetivas

[7] Aqui registramos o entendimento exposado pelo delegado de polícia e professor de Direito Processual Penal, Ruchester Marreiros Barbosa, ao qual nos filiamos, segundo o qual, diante da evidente incoerência e incompatibilidade da norma insculpida no §2° com o ordenamento processual e constitucional vigente, deve a autoridade policial, em caso de prisão em flagrante, analisar a possibilidade de arbitrar a fiança (loc. cit).

[8] Nesse sentido encontramos: LEITÃO JÚNIOR, Joaquim; SILVA, Raphael Zanon. Loc. cit.; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Loc. cit.

[9] NETO, Francisco Sannini. Descumprir medida protetiva agora é crime. Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/medidas-protetivas-urgencia-crime/. Acessado em 05 de maio de 2018.

[10] Inferência que se extrai da análise sistemática do art. 33, §2°, “c”; art. 44 e art. 77, todos do Código Penal.

[11] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Loc. cit.

[12] Interpretação sistemática ancorada no artigo 322 do Código de Processo Penal.

[13] Redação literal do §2° do art. 24-A da Lei 11.340/06.

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Sobre o autor
William Garcez

Delegado de Polícia (PCRS). Pós-graduado com Especialização em Direito Penal e Direito Processual Penal. Professor de Direito Criminal da Graduação e da Pós-graduação da Fundação Educacional Machado de Assis (FEMA) e de cursos preparatórios para concursos públicos: Ad Verum/CERS (2018), Casa do Concurseiro (2019), CPC Concursos (2020), Mizuno Cursos (2021) e Fatto Concursos (2023). Professor de Legislação Criminal Especial do curso de Pós-graduação do IEJUR - Instituto de Estudos Jurídicos (2022) e da Pós-graduação da Verbo Jurídico (2023). Organizador e autor de artigos e obras jurídicas. Palestrante. Instagram: @prof.williamgarcez

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCEZ, William. Lei 13.641/18: A (in)afiançabilidade pelo delegado de polícia no crime de descumprimento de medida protetiva de urgência da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5426, 10 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65943. Acesso em: 21 nov. 2024.

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