Comissão da verdade: o que é e para que serve

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A Comissão da Verdade busca esclarecer os fatos, busca uma versão oficial para determinado fato (ou morte), não atribuindo culpa ou pena. As comissões da verdade não são cortes que julgam determinadas pessoas, também não estabelecem penas, pois não possuem esse poder.

Resumo: A Comissão Nacional da Verdade – CNV teve como principal objetivo investigar fatos ocorridos no período da ditadura, e isso só foi possível graças ao advento da Lei nº 12.528 de novembro de 2011. A CNV ajudou a examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período ditatorial pelos agentes do Estado. A CNV ouviu mais de um milhar de depoimentos, bem como diligências a locais de repressão, além de dezenas de sessões e audiências públicas. A CNV, como órgão temporário, encerrou suas atividades após a entrega do relatório à ex-presidente Dilma no dia 10 de dezembro de 2014. Através da CNV foi possível, não de forma definitiva, uma recuperação da memória, bem como uma reparação aos cidadãos que sofreram violações das suas garantias fundamentais. Com a apresentação do relatório final, o Brasil reconhece que a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, violência sexual e execuções, entre outras formas de agressões, foi resultado de uma política estatal generalizada, resultando, assim, em crimes contra a humanidade. A CNV, bem como a lei, tornam-se a materialização do clamor de milhares de pessoas e famílias que sofreram e/ou tiveram parentes que foram gravemente violentadas do seu direito.

Palavras-chave: Comissão Nacional da Verdade, Direitos Humanos, Garantias Fundamentais.


1 O QUE É UMA COMISSÃO DA VERDADE E PARA QUE SERVE

Segundo Sales (2012), a primeira Comissão da Verdade nasceu na Uganda, no ano de 1974, com o objetivo de investigar os desaparecidos nos primeiros anos do governo de Idi Amin. Desde então, segundo a autora, mais de 30 comissões já foram instaladas mundo afora, a saber: África do Sul, Alemanha, Argentina, Bolívia, Canadá, Carolina do Norte (EUA), Marrocos, Paraguai, Peru, Portugal, Uruguai, dentre outras.

Mas, o que vem a ser uma Comissão da Verdade? Antes de conceituar o que vem a ser uma Comissão da Verdade, é preciso deixar claro que, no mundo jurídico, comissão da verdade é algo novo, e sua proliferação pelo mundo tem como exemplo o sucesso da comissão da verdade realizada na África do Sul, com o fim do apartheid. Convém registrarmos, ainda, que a comissão instaurada na África foi inspirada em coroner’s courts, existente na Inglaterra desde meados de 1066. Os coroner’s courts são médicos ou juristas encarregados de investigar a identidade do morto, quando a causa não é natural. (FOLHA, 2012).

Foram mais de dezoito meses de amplo debate até a aprovação do Ato de Promoção da Unidade de Reconciliação Nacional, em 1995, na África do Sul. Chefiada pelo arcebispo Desmond Tutu, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, em 1984, as audiências começaram em 1996 e seu relatório publicado no ano de 1998, tendo cinco volumes. Mesmo com muitas críticas, a comissão da África do Sul, conseguiu unir o país, marcado pela segregação racial (SALES, 2012). Desmond Tutu afirma que “Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe do lado do opressor”.

Voltando ao que vem a ser uma Comissão da Verdade, convém dizer que ela busca esclarecer os fatos, busca uma versão oficial para determinado fato (ou morte), não atribuindo culpa ou pena. As comissões da verdade não são cortes que julgam A ou B, também não estabelecem penas, não possuem tal poder. As Comissões da Verdade servem para investigar e/ou elucidar as causas de uma morte ou desaparecimentos, principalmente quando os agentes causadores estavam a serviço do Estado. Tal função serve para trazer paz às famílias dos envolvidos, e principalmente, deixar uma lição para o futuro, para que tais atos não voltem a acontecer (FOLHA, 2012.

1.1 Comissões na América Latina: Argentina e Chile

Como dito anteriormente, várias comissões foram se formando pelo mundo, lembrando que o Brasil foi um dos últimos a instaurar a sua. Na América Latina, na Argentina também tivemos um período ditatorial, entre os anos de 1976 e 1983, porém diferentemente do Brasil, que demorou anos para decidir apurar as graves violações aos direitos humanos, a comissão na Argentina foi instaurada imediatamente após o fim da ditadura (SALES, 2012).

Diferente do Brasil, na Argentina houve sim condenações a respeito dos crimes cometido na ditadura. Sales (2012) afirma que foram nove meses de trabalho, com uma comissão formada por 13 pessoas e 60 membros, conseguindo assim investigar 9 mil casos, revelando autores e gerando assim vários julgamentos.

No Chile, a Comissão da Verdade investigou crimes cometidos durante o regime de Pinochet, que durou de 1973 a 1990. Antes da Comissão da Verdade, criada em 1991, o Chile reconhecia tão somente 2.279 casos de assassinatos e/ou desaparecimentos cometidos por agentes do Estado. No ano de 2009, o parlamento chileno reabriu os trabalhos, chegando a marca de mais de 28 mil denúncias contra a violação de direitos humanos (SALES, 2012).             


2 A COMISSÃO DA VERDADE NO BRASIL - LEI 12.528/11

A lei a respeito da Comissão da Verdade foi publicada no ano de 2011 sob o número 12.528 e entrou em vigor na data de sua publicação, no dia 18 de novembro do mesmo ano. O objetivo da lei foi o de apurar graves violações de direitos humanos ocorridos entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Ressalta-se que a comissão concentrou seus esforços no exame dos esclarecimentos de fatos ocorridos no perídio da última ditadura militar (MEMÓRIAS DA DITADURA). Somente em maio de 2012, foi instituída, resultado de uma longa luta e reivindicações de parentes e vítimas, bem como de grupos de proteção aos direitos humanos. A comissão tinha por premissa investigar os atos cometidos por agentes do Estado contra cidadãos que lutavam contra a repressão.

Em seu artigo primeiro, a Lei 12.528 quer efetivar o “direito à memória e a verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

O relatório final foi entregue à ex-presidente Dilma, no dia 10 de dezembro de 2014, que, ao receber o documento, ficou emocionada, pois ela, assim como muitos outros cidadãos, sofreram o horror desse período, que jamais deve ser esquecido e que mancha para sempre a história do Brasil. Para a ex-presidente Dilma, documento estimula a reconciliação do país:

Nós que acreditamos na verdade, esperamos que esse relatório contribua para que fantasmas de um passado doloroso e triste, não possam mais se proteger nas sombras do silêncio e da omissão. Na cerimônia da instalação da Comissão Nacional da Verdade em maio de 2012, eu disse que a ignorância sobre a história não pacífica, pelo contrário, mantém latente mágoas e rancores. Disse que a desinformação não ajuda a apaziguar, apenas facilita o trânsito da intolerância. Afirmei ainda que o Brasil merecia a verdade, que as novas gerações mereciam a verdade, e sobretudo, mereciam a verdade aqueles que perderam familiares, parentes, amigos, companheiros e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre (informação verbal).

É preciso relembrar o horror do período ditatorial, principalmente na atualidade, onde políticos inescrupulosos saúdam ou querem enaltecer esse período tão horrendo que viveu o Brasil e no qual milhares de seres humanos tiveram suas vidas destruídas e seus direitos fundamentais aviltados. Na mesma linha, é preciso lembrar que ao votar pelo impeachment da então presidenta Dilma Roussef, em 2016, o deputado Jair Messias Bolsonaro, em sua fala, exaltou o ex-chefe do DOI-CODI, Carlos Alberto Brilhante Ustra, que fora acusado de cometer torturas no período da ditadura militar.

Situações como a anteriormente citada mostra o quão necessário foi e é revisitar o passado, e, principalmente, trazer a verdade para o presente, lançando uma reflexão sobre ações cometidas por agentes do Estado, Estado este que é o guardião dos direitos humanos. Como afirma o professor Pedro Dallari, “o Estado não pode praticar atos de barbárie”.     

    A comissão não teve o papel de punir nem indiciar criminalmente, mas sim de apontar “recomendações” ao Estado Brasileiro. A comissão, desde seu início, teve o poder de convocar pessoas para depor e prestar esclarecimentos de casos.

Foi a primeira vez que o Estado de fato assumiu oficialmente a existência de crimes cometidos nesse período. A partir desse relatório, deve-se refletir para que crimes dessa natureza nunca mais voltem a se repetir.  O relatório completo possui mais de quatro mil páginas, dividido em três volumes. Ao longo de sua existência, os membros da CNV colheram 1121 depoimentos, 132 deles de agentes públicos.

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2.1 As comissões da verdade pelo Brasil

A CNV realizou 80 audiências públicas pelo país, percorrendo o Brasil de Norte e a Sul, visitando 20 unidades da federação. Calcula-se que mais de 300 comissões foram formadas. Essas comissões, cada qual no seu âmbito e escopo, investigaram temas e assuntos específicos e colaboram também no sentido de trazer à tona verdades escondidas.

As audiências, diligências, eventos e tomadas públicas de depoimentos realizados pela CNV ou em parceria com outras comissões ou com a sociedade civil estão disponíveis no portal da própria CNV (Memórias Reveladas).

2.2 Caso Félix Escobar

Muitos casos foram elucidados pela CNV. Um deles, como o de Félix Escobar, cuja pesquisa foi desenvolvida pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) nos arquivos do Instituto Médico-Legal (IML) e do Instituto de Identificação Félix Pacheco (IIFP), com a cooperação da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Esse trabalho levou ao esclarecimento das circunstâncias do desaparecimento e à identificação de Félix Escobar, militante da organização MR-8 detido em Nova Iguaçu (RJ) entre o final de setembro e início de outubro de 1971.                                                                                     


3     COMPOSIÇÃO DA COMISSÃO

A comissão foi composta por sete membros nomeados pela presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, sendo auxiliados por assessores, consultores e pesquisadores. A cerimônia de instalação da comissão contou com todos os ex-presidentes da República desde o restabelecimento da democracia após a ditadura militar (Wikipedia).           


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O CNV fez com que o Brasil reconhecesse oficialmente o horror praticado pelos agentes do Estado no período da Ditadura. O relatório da CNV serve como alerta para que esse período nunca mais volte. Outrossim, é fundamental que se reflita a respeito desse período que em momento algum deve ser motivo de orgulho para o país. Seres humanos foram perseguidos, violentados, torturados e mortos, e cabe ressaltar que, ainda hoje, existem muitos desaparecidos, pois, mesmo com a instalação da CNV, os militares não revelaram o paradeiro de muitos corpos. É inaceitável que pessoas exaltem esse período ou as ações cometidas contra seres humanos nesse período, ações essas que violam gravemente a dignidade da pessoa humana. Por isso, faz-se necessário um resgate histórico e, acima de tudo, um olhar mais crítico a respeito da capacidade do homem de produzir e praticar o mal com o aval do Estado. Por fim, acredito que, como humanos, temos a obrigação inalienável de nos posicionarmos contra toda e qualquer forma de opressão e limitação da liberdade humana e, em todas as vezes em que a dignidade da pessoa humana for aviltada, temos que escolher de que lado estaremos, por isso, menciono uma frase de Hannah Arendt: “A triste verdade é que os maiores males são praticados por pessoas que nunca decidiram pelo bem ou pelo mal.”.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei Federal nº 12.528/11 de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República.  Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12528.htm>. Acesso em: 06 mai. 2018.

CAMPANHA, Diógenes. Houve acordo para apurar esquerda, diz ex-ministro. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/43219-houve-acordo-para-apurar-esquerda-diz-ex-ministro.shtml>. Acesso em 06 mai. 2018.

Comissão nacional da verdade – um diálogo com a psicanálise e o direito, com Maria Rita Kehl e Pedro Dallari. Instituto CPFL. Vimeo. 25 mar. de 2015. 48min36s. Disponível em: <https://vimeo.com/123190356>. Acesso em 07 mai. 2018.

DALLARI, Pedro. Todos serão obrigados a reparar o mal. Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/pedro_dallari_ao_valor_economico.pdf>. Acesso em: 06 mai. 2018.

DILMA CHORA AO RECEBER RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO DA VERDADE. REVEJA AQUI. YOUTUBE. 01MIN28S. DISPONÍVEL EM: <HTTPS://WWW.YOUTUBE.COM/WATCH?V=WLFBRWCA4BI>. ACESSO EM: 08 MAI. 2018.

MEMÓRIAS DA DITADURA. A Comissão Nacional da Verdade. Disponível em: <http://memoriasdaditadura.org.br/comissao-nacional-da-verdade/index.html>. Acesso em: 06 mai. 2018

MEMÓRIAS REVELADRES. Relatório.  Disponível em: <http://www.memoriasreveladas.gov.br/administrator/components/com_simplefilemanager/uploads/CNV/relat%C3%B3rio%20cnv%20volume_1_digital.pdf>. Acesso em: 06 mai. 2018.

Para entender o que é a comissão da verdade. Disponível em: <http://direito.folha.uol.com.br/blog/para-entender-o-que-a-comisso-da-verdade>. Acesso em 06 mai. 2018.

PEDRO DALLARI. Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/institucional-acesso-informacao/membros/329-pedro-dallari.html>. Acesso em 06 mai. 2018.

VOTO DO JAIR BOLSONARO A FAVOR DO IMPEACHMENT. GUTO BRR. YOUTUBE. 56S. DISPONÍVEL EM: < HTTPS://WWW.YOUTUBE.COM/WATCH?V=54KUDU-U1P0>. ACESSO EM: 09 MAI. 2018.

SALES,  Silvia. Comissões da Verdade no mundo. Disponível em: <https://desarquivandobr.wordpress.com/2012/03/24/comissoes-da-verdade-no-mundo/>. Acesso em 06 mai. 2018

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Sobre os autores
Claudinei Flávio Ferreira

Atua há 15 anos na área de Recursos Humanos, tendo atuado também como docente nas disciplinas de Relações Humanas e Gestão de Pessoas. Formado em Administração de Empresas com Habilitação em Recursos Humanos e MBA em Gestão Estratégica de Negócios (Uniasselvi e Anhanguera). Atualmente, cursando Direito, na Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE, acredita que somente a EDUCAÇÃO foi, é, e sempre será o mais importante instrumento de transformação social.

Ricardo Moreira

Ricardo é acadêmico do curso de Direito da Universidade da Região de Joinville.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Revisitar o passado é olhar para ele com olhar crítico, principalmente para que não cometamos os mesmos erros que um dia cometemos. A liberdade é uma construção diária e é preciso estarmos vigilantes, pois como no passado, ainda hoje querem aprisioná-la.

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