I – O FATO
Não é de hoje que o deputado e candidato à presidência Jair Bolsonaro se posiciona contra a demarcação de terras indígenas. Sempre que tem chance, apresenta um mapa feito pelos militares, nos idos de 1970, que mostra os principais recursos naturais sob o solo brasileiro. “Dentro de Roraima vocês acham tudo o que existe na tabela periódica. De A a Z.”
Apesar de falar de ouro, bauxita e diamante, o maior interesse do deputado, que tem crescido nas pesquisa de intenção de votos para as próximas eleições presidenciais, parece ser mesmo o nióbio, produto retirado de minerais e que, se misturado ao ferro, cria uma espécie de superliga, mais leve e resistente que o aço comum. É utilizado em gasodutos, turbinas, chassis de carros e até em foguetes espaciais e reatores nucleares.
De acordo com o deputado, o país deveria ter maior controle sobre as reservas do produto, cujas jazidas gigantes, segundo ele, não podem ser exploradas por estarem sob terras demarcadas em Roraima.
Mas há limites para essas pretensões.
II – O INDIGENATO E A POSSE INDÍGENA
O indigenato é tradicional instituição jurídica que deita raízes nos velhos tempos da Colônia quando o Alvará de 1º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, às terras outorgadas a particulares seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.
Terras tradicionalmente ocupadas não revela uma relação temporal. Se formos ao Alvará de 1º de abril de 1680 que reconhecia aos índios as terras onde estão tal qual as terras que ocupavam no sertão, ver-se-á que a expressão ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial. Não se trata de posse ou de prescrição imemorial. Não quer dizer terras imemorialmente ocupadas, ou seja, terras que eles estariam ocupando desde épocas remotas que já se perderam na memória. Como bem alertou José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, 5º edição, pág. 716) o tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os ´índios ocuparem e utilizarem as terra e ao modo tradicional de produção, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra.
O indigenato não se confunde com a ocupação, portanto, com a posse civil. O indigenato é fonte primária e congênita da posse territorial; é um direito congênito, enquanto a ocupação é título adquirido. Essa a lição obtida de João Mendes Júnior é observada por José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, RT, 5ª edição, pág. 717). Esse desenvolvimento é feito sobre a tese de que as terras de índios, congenitamente apropriadas, não podem ser consideradas nem como res de ninguém, nem como res derelictae. Não é uma simples posse, mas um reconhecido direito originário e preliminarmente destinado ao indígena.
Sabe-se que o artigo 231 da Constituição Federal reconhece o direito ao usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras que tradicionalmente ocupam. Tal usufruto é intransferível como lembra Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda nº 1, de 1969, t.IV/456 e 457).
Tal a tradição do direito brasileiro, exposto na Lei nº 601/1850, no Decreto Regulamentar nº 1318, de 1854, que fez respeitar o direito originário dos índios às terras de ocupação tradicional.
Não está em jogo, no tema da posse indígena, como revelou o Ministro Victor Nunes Leal (voto proferido nos autos do recurso extraordinário nº 44.585 – MT, julgado a 28.6.61), um conceito de posse, nem de domínio, no sentido civilista dos vocábulos. Trata-se de um habitat de um povo. Assim, a Constituição Federal determina que num verdadeiro parque indígena, com todas as suas características naturais primitivas, possam permanecer os índios vivendo naquele território.
A posse indígena distingue-se da posse civil. Aquela é mais ampla, mais flexível como conceituado no artigo 23 da Lei nº 6001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio).
Nas terras indígenas, a propriedade é da União (Constituição Federal, artigo 20, inciso XI). Dos índios é o usufruto exclusivo abrangendo o aproveitamento das riquezas do solo, dos rios e lagos neles existentes. Tais terras são inalienáveis e indisponíveis e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
Mesmo que houver prova do fato do particular portar título de domínio, devidamente registrado em Cartório de Imóveis, prevalece o comando constitucional que declara nulo e sem nenhum efeito jurídico atos que tenham por objetivo o domínio, a posse ou a ocupação de terras habitadas por silvícolas.
A lição de Luciano Maia não pode ser esquecida. Nesse sentido, tem-se:
O art. 25 do Estatuto do Índio, por sua vez, dispõe que o reconhecimento do direito dos índios e grupos tribais à posse permanente das terras por eles habitadas, nos termos do artigo 198 (Constituição anterior) da Constituição Federal independerá de sua demarcação, e será assegurado pelo órgão federal de assistência aos silvícolas, atendendo à situação atual e ao consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação...
A demarcação de terras indígenas é a efetivação do preceito constitucional inserto no art. 231 da Constituição da República. A Constituição vem no sentido de reconhecer as situações fáticas, fixando critérios capazes de possibilitar o reconhecimento jurídicos das terras indígenas. Constitui-se em imposição constitucional dirigida ao Poder Executivo e cujo cumprimento é de obrigatoriedade inafastável.
O trabalho multidisciplinar que embasa o procedimento demarcatório prima pela identificação de uma posse ainda palpitante, que permite enquadramento na compreensão da existência de uma área indígena, num consenso da tradicionalidade histórica com a tradicionalidade de continuidade viva, e que, assim, vem se por sob tutela da norma inscrita no art. 231 da Constituição de 1988
Esse consenso histórico sobre a antigüidade da ocupação (posse imemorial) é o que resulta dos estudos técnicos-científicos que emprestam fundamento à Portaria Ministerial em referência.
No § 6º do art. 231 da Lei Fundamental fulmina-se de nulidade, inclusive para o caso de título registrado antes da Constituição de 1934, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Nessa proteção possessória indígena não pode passar despercebido que a posse indígena, em face de suas características peculiares, se faz diferente da concepção da posse civil.
O seu sentido é de posse normativa, na concepção assim definida por Ana Valéria Araújo (A destruição como desforra). No tocante às terras indígenas, a Constituição estabeleceu verdadeira posse normativa, isto é, posse por imposição jurídica, pouco importando a efetiva detenção, ou o corpus, na qualificação romana.
Explica melhor José Afonso da Silva, a respeito das terras indígenas:
Quando a Constituição declara que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios se destinam à sua posse permanente, isso não significa um pressuposto do passado para uma ocupação efetiva, mas, especialmente, uma garantia para o futuro, no sentido de que essas terras inalienáveis e indisponíveis são destinadas, para sempre, ao seu habitat. Se assim se destinam (destinar significa apontar para o futuro) à posse permanente é porque um direito sobre elas preexiste à posse mesma, e é o direito originário já mencionado” (Curso de direito constitucional positivo, 5º edição).
É com esse sentido, preso a esse direito congênito (e assim voltada para atos de violação da posse indígena ocorridos no passado), que deve ser compreendido o § 6º do art. 231 da Constituição, ao fulminar de nulidade os atos que tenham por ocupação a posse de terras indígenas.
A linha que não pode ser esquecida, a bem da história do Brasil, que tem toda uma dívida para com a causa indígena é a sua proteção de suas terras e do direito do índio à posse de suas terras, direito inalienável e irrenunciável, de modo que não cabe falar em proteção possessória de particular em terra reconhecida como de ocupação indígena.
III – O PASSADO CONDENA
No passado, a população indígena também foi alvo de operações ligadas ao Serviço Nacional de Informação (SNI) durante a ditadura militar. Uma pesquisa encomendada pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) estima que ao menos 8.350 índios foram mortos entre 1946 e 1988. Além da violência direta do Estado, os povos indígenas sofreram com a omissão do governo.
O documento, elaborado em 2014, fez uma série de recomendações específicas ao massacre indígena. Entre as quais, que o Executivo brasileiro fizesse “um pedido público de desculpas aos povos indígenas pelo esbulho das terras desses povos e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando a instauração de um marco de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo”.
Durante a ditadura, a construção de estradas como a BR-230, e a BR-174, e também construções das hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí, foram prerrogativas para a expulsão de diversos indígenas de suas aldeias, e muitas mortes de índios consequências das expulsões.
Na década de 70, o PIN (Plano de Integração Nacional), instituído pelo na época presidente, Emílio Garrastazu Médici, previa cerca de 100 quilômetros em cada lado das estradas construídas seriam destinadas à colonização. A BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, a Transamazônica, a BR-164, que liga Cuiabá a Santarém. Estas são algumas das estradas contruidas pelo PIN, e que deveriam assentar cerca de 500 mil pessoas em agrovilas. O modelo inicial foi logo preterido por outro, muito mais rentável e com muito mais sentido para o desenvolvimento capitalista. As terras no entorno das estradas foi cedido à grandes empresas de capital nacional, mas sobretudo à empresas de capital internacional.
Documentos obtidos pela Comissão Nacional da Verdade mostram diversos casos de mortes de indígenas em conflitos e em remoções forçadas, crises de abastecimento, epidemias geradas propositalmente. Os ataques promovidos pelos militares aos indígenas em luta eram de enorme brutalidade.