A judicialização como forma de garantir o direito à saúde no Brasil

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3 Dos princípios norteadores do direito à saúde

Além do princípio da dignidade humana, outros postulados constitucionais são relevantes. Nessa dimensão, principalmente com a introdução no ordenamento jurídico de um Sistema Único de Saúde, depreende-se a fundamental importância dos princípios regentes do direito à saúde nesse sistema, quais sejam, da prevenção, da universalidade e igualdade, da reserva do possível e da integralidade.


4 Princípio da prevenção

A prevenção assume um papel notório, eis que impedir que o mal aconteça deve ser o principal objetivo de uma política pública, seja pelo viés de impedir o próprio fato danoso 

ou, ainda, de impedir as consequências do mesmo.  O papel da prevenção, além de ser benéfica para a população, é de suma importância para o Poder Público, haja vista que, se eficaz, pode influenciar diretamente na redução de gastos públicos.

4.1 Princípio do acesso universal e igualitário

O princípio da universalidade da cobertura e do atendimento (art. 194, I, CF), é um dos que sustentam muitas pretensões judiciais na área de saúde. Os serviços de saúde devem atender o máximo de situações a fim de cobrir o maior número de beneficiários.

Conforme dispõe o artigo 5º, caput da Constituição de Federal de 1988, a prestação do serviço público de saúde deve estar disponível a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, independentemente da condição econômica, compartilham os mesmos serviços públicos de saúde.

A igualdade enquanto princípio demonstra a existência de desigualdades entre indivíduos dentro de uma mesma comunidade.Para Inocêncio Mártires Coelho (2010, p. 1549) relata que:

O direito a saúde há de ser informado pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doenças, cada um deve receber tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais. [1]

Observa-se que na realidade brasileira os usuários de menor poder aquisitivo do Sistema Único de Saúde, justamente os que mais necessitam, enfrentam inúmeras dificuldades de acesso ao Sistema, bem como ao Poder Judiciário, o que dificulta a fruição integral dos serviços prestados através do SUS, uma vez que, o acesso universal significa que todos, independentemente da condição financeira podem usufruir dos mesmos serviços públicos de saúde.

4.2 Princípio da reserva do possível

A reserva do princípio se originou durante o julgamento do caso conhecido como “Numerus Clausus” pelo Tribunal Federal da Alemanha, em 1972. [2] 

O princípio da reserva do possível decorre do princípio da eficiência positivado no caput do artigo 37 da Lei Maior, e que significa que a Administração Pública deve ser organizada de modo a alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público, sendo que os recursos públicos devem ser aplicados prioritariamente nos atendimentos das necessidades essenciais da população, em consonância com a realidade econômica do país. A efetivação dos direitos sociais está vinculada às possibilidades financeiras do Estado.

A reserva do possível deve sempre estar interligada com os preceitos constitucionais de dignidade da pessoa humana que não pode ser descumprindo, pois existe uma declaração de déficit orçamentário, existindo a possibilidade de violação de direitos, deixando pessoas à mercê de determinado serviço.[1]

4.3 Princípio da integridade

O princípio da integralidade significa precisamente assegurar ao usuário um tratamento completo e individualizado, segundo suas necessidades e exigências, a ser custeado pelo Poder Público. O serviço de saúde deve incluir ações de prevenção, recuperação e tratamento em qualquer nível de complexidade, levando em consideração que o ser humano é uma totalidade, um todo indivisível.

Para Roger Raupp, conforme citado por JANSSON (2014, P.40):

De acordo com o princípio da integralidade deve ocorrer uma racionalização do sistema de serviço de saúde que deve ocorrer de modo hierarquizado, buscando articular ações de baixa, média e alta complexidade, bem como humanizar os serviços e as ações do Sistema Único de Saúde.

Regulamentada em todo o território nacional, a Lei 8080/90, ações do SUS estabelecem as diretrizes para seu gerenciamento e descentralização e detalha as competências de cada esfera governamental, dispõe acerca das condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes.


5 Da judicialização da saúde

A Constituição Federal de 1988 ao afirmar que a “saúde é direito de todos e dever do Estado”, caracterizando esse direito como sendo direito público subjetivo, possibilitando que a saúde seja pretendida e efetivada pelo judiciário. A judicialização é a provocação e a atuação do Poder Judiciário em prol da efetivação da assistência médica e farmacêutica, sendo essas efetivações consideradas, entre outros exemplos, como a obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos, tratamentos, disponibilização de leitos hospitalares entre outros.

Luiz Roberto Barroso (2009, p.383) afirma que “após a Constituição de 1988 aumentou de maneira significativa a demanda por justiça na sociedade brasileira através da cidadania e conscientização das pessoas em relação ao seu direito”. Portanto, sempre que houver violação do direito, o Poder Judiciário, no exercício da jurisdição, será chamado a intervir e aplicar o direito ao caso concreto. Em sua obra mais recente Luiz Roberto Barroso (2018, p. 443) ressalta que a “judicialização é uma questão relevante, pois do ponto de vista social, político ou moral em caráter final estão sendo decididas pelo Poder Judiciário”.

A Constituição Federal em seu inciso XXV do artigo 5° prevê: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, tal dispositivo ao estabelece que seja dever do Estado prestar a jurisdição, Assim, havendo violação do direito à saúde, seja de forma direta, seja em decorrência de omissão legislativa, o Judiciário tem o poder-dever de aplicar o Direito, extraindo das normas constitucionais, até a exaustão, toda a sua potencialidade.

Dentre os direitos sociais, a saúde é o mais pleiteado, pois pode ser protegido por ações individuais ou coletivas. O Ministério Público pode ajuizar uma ação individual indisponível para proteção de uma pessoa ou de uma coletividade. O juiz não julga apenas com base no bom senso, mas com base na Constituição, nas leis e súmulas que assegura a todos o direito à saúde. [1]

A judicialização do acesso à saúde passa a existir com a possibilidade do Poder Judiciário editar determinações à Administração Pública para que forneça ações e serviços de saúde a uma determinada pessoa. As demandas judiciais mais correntes em relação à prestação da saúde referem-se à distribuição de medicamentos, embora cirurgias, exames, 

tratamentos especializados entre outros também são solicitados pelos cidadãos como forma de obter esse direito. [1]

Para Martins Travassos conforme citado por VENTURA (2010, p.2):

Os pedidos judiciais se respaldam numa prescrição médica e na suposta urgência de obter aquele insumo, ou de realizar um exame diagnóstico ou procedimento, considerados capazes de solucionar determinada "necessidade" ou "problema de saúde". A escolha da via judicial para o pedido pode ser dar pela pressão para a incorporação do medicamento/procedimento no SUS ou pela ausência ou deficiência da prestação estatal na rede de serviços públicos. Nesta última situação, pode-se dizer que a judicialização da saúde expressa problemas de acesso à saúde em seu sentido mais genérico, isto é, como uma dimensão do desempenho dos sistemas de saúde associada à oferta , e que o fenômeno pode ser considerado como um recurso legítimo para a redução do distanciamento entre direito vigente e o direito vivido.[2]

De fato a demanda judicial evidencia uma tensão interna no sistema de assistência à saúde, entre a autonomia do médico em sua prescrição à pessoa, as resposta judiciais tem-se limitado a determinar o cumprimento pelos gestores de saúde da prestação requerida pelos reivindicantes, respaldados por uma prescrição médica individual.

De mais a mais os magistrados precisam observar a previsão legal, analisando se o insumo ou procedimento requerido é concordante com Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) estabelecidos pelas instâncias do SUS, ou está incluído nas listas de medicamentos financiados pelo sistema público, ou seja, se consta na lista do Ministério da Saúde e  se possui registro na Agência de Vigilância Sanitária – ANVISA.[3]

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É incontestável que o Judiciário não deve ignorar o fato de que indivíduos correm sérios riscos de vida, visto não terem acesso a novas tecnologias farmacêuticas ou condições financeiras para a aquisição dos medicamentos, entretanto é preciso que os interesses individuais sejam contextualizados dentro das políticas públicas estabelecidas, a fim de garantir um tratamento mais igualitário.

O Estado democrático de direito pressupõe o exercício do direito de ação via Poder Judiciário, ao entender que para o cidadão houve de violação a algum direito.

Pelo Sistema Único de Saúde, a gratuidade é pressuposto do acesso, entretanto no sistema justiça, a gratuidade será concedida se houver comprovação da necessidade econômica do autor. Isto implica que o autor, para se beneficiar da gratuidade, deve comprovar sua impossibilidade de arcar com as despesas processuais da ação judicial, ou seja, 

sua hipossuficiência econômica, mas não necessariamente lhe é exigido demonstrar a impossibilidade de arcar com os custos do insumo e/ou do procedimento de saúde requeridos.

A Constituição Federal e a Lei n.º 8.080/90 estabelecem o acesso gratuito, universal e igualitário ao sistema público de saúde, aumentando a efetividade às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde, assegurando, portanto, a sua proteção nas órbitas genérica e individual.

O Estado tem o dever de assegurar efetivamente o direito à saúde a todos os cidadãos, como corolário da própria garantia do direito à vida. A divisão de tarefas entre os entes governamentais e a organização do Sistema Único de Saúde não podem obstaculizar o direito do indivíduo à percepção de medicamentos e/ou tratamentos indispensáveis.

É louvável a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema:

MANDADO DE SEGURANÇA. FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTO A PESSOA PORTADORA DE DOENÇA GRAVE E CARENTE DE RECURSOS ECONÔMICOS. VIA ELEITA ADEQUADA. PRESCRIÇÃO FORMALIZADA POR MÉDICO ESPECIALISTA. DESNECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. IRRELEVÂNCIA DE O 53 FÁRMACO NÃO SE ENCONTRAR INSERIDO NOS PROTOCOLOS CLÍNICOS E DIRETRIZES TERAPÊUTICAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. DESCUMPRIMENTO DE DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA OU À SAÚDE (CF, ARTS. 6.º E 196) QUE PERMITE A CHAMADA "JUDICIABILIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS". ORDEM CONCEDIDA. (1) "Eventual ausência do cumprimento de formalidade burocrática não pode obstaculizar o fornecimento de medicação indispensável à cura e/ou a minorar o sofrimento de portadores de moléstia grave que, além disso, não dispõem dos meios necessários ao custeio do tratamento" (STJ, 2.ª Turma, RMS n.º 11.129/PR, Rel. Min.Francisco Peçanha Martins, j. em 02.10.2001).(2) A medicina é ciência que não trabalha com soluções únicas ou absolutas. Os Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas, como fundamento para indeferir o fornecimento de medicamentos, são genéricos e podem não representar a melhor alternativa, sendo digno de maior confiança o diagnóstico e a prescrição realizados pelo médico que atende o paciente, de modo que "Comprovado por atestado médico que o impetrante deve fazer uso do medicamento solicitado, certo é que tem ele direito líquido e certo a que este lhe seja fornecido pelo Estado"[1]

Conforme se extrai do julgado a cima, o simples fato de um medicamento e/ou tratamento ser caro ou não estar incluído nas listas e protocolos do SUS não é justificativa para a sua não concessão. Entretanto de uma sobreposição do Judiciário em relação ao Executivo, tornar-se verdadeiramente eficaz os fundamentos e princípios da própria Constituição Federal, pois se restringindo a prestação da saúde, se restringe também os direitos à saúde e à vida, violando-se o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Ainda que a valorização do direito fundamental individual seja essencial, nota-se a necessidade de uma análise jurídica embasada na teoria da ponderação dos princípios e na análise sistemática da Constituição, ponderando diante as circunstâncias peculiares de cada caso concreto.[1]

Consta-se que a classe jurídica começa a demonstrar preocupações no que concerne ao fenômeno da judicialização da saúde, tentando alinhar entendimentos e criar ações no sentido de minimizar seus efeitos nocivos. Tais esforços devem ser intensificados e tratados em conjunto com os Poderes Executivo e Legislativo, além de demandar a participação de setores sociais, no intuito de que haja um grande debate sobre o tema e de que se promova a real mitigação dos efeitos prejudiciais da judicialização da saúde.

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Sobre os autores
Geraldo Guilherme Ribeiro de Carvalho

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Varginha, Estado de Minas Gerais, em 11 de fevereiro de 1995. Estagiário do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Bacharel em Filosofia pela FAJE - FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA, de Belo Horizonte, MG, em Dezembro de 2008, Bacharel em Licenciatura Plena pela FAJE - FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA, de Belo Horizonte, MG, em Dezembro de 2009 e Mestre em Filosofia, na área de concentração em Ética pela FAJE - FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA, de Belo Horizontes, Estado de Minas Gerais. Atualmente, Professor de Filosofia Geral e Jurídica e Direito Constitucional, na Faculdade Presidente Antônio Carlos de Teófilo Otoni, Estado de Minas Gerais (UNIPAC).

Irene Pereira da Costa

Formanda do 10º período do curso de Direito, da Faculdade Presidente Antônio Carlos, de Teófilo Otoni, MG.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Texto oriundo de trabalho de conclusão de curso - TCC - orientado e revisado pelo Professor: Me. Geraldo Guilherme Ribeiro de Carvalho. A orientanda e formanda é do 10º Período, turma II, do Curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos, da Cidade de Teófilo Otoni, Estado de Minas Gerais.

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