Praticado um delito, nasce para o Estado o poder-dever de punir o agente responsável pela sua prática nos termos da lei penal. O exercício do “jus puniendi” estatal se dá por meio de persecução criminal que, por sua vez, na maioria esmagadora dos casos, ocorre por meio de uma investigação policial formalizada na fase investigativa ou pré-processual.
Regra geral, a fase investigativa se dá por meio da instauração de um inquérito policial, que visa confirmar a materialidade e fornecer os indícios de autoria para subsidiar a opinio delicti do órgão ministerial e orientar a decisão do magistrado no caso de concessão de medidas cautelares e pré-processuais, além de servir de norte para orientação de decisão judicial final e dosimetria da pena.
Estabelece o art. 144 da Constituição Federal, § 4º:
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (...)
IV - polícias civis;
§ “4º - às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvadas a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. (grifo nosso)
Diante desta atribuição constitucional estabelecida pela Constituição Federal, cabe ao Delegado de Polícia expedir atos necessários à investigação de infrações penais. Tais atos, é claro, não devem violar direitos e garantias fundamentais, que, em alguns casos exigem autorização judicial para que seja realizado o ato investigatório.
Por esta razão, o cargo de Delegado de Polícia é exercido por bacharéis em Direito, para que, tendo conhecimento das normas jurídicas, possam praticar os atos investigatórios e presidir a investigação policial, evitando abusos e vícios que possam prejudicar eventual futura ação penal ou mesmo evitar a instauração de um processo penal inútil.
O Código de Processo Penal, em seu art. 6° estabelece em rol exemplificativo, diligências a serem formalizadas pela Autoridade Policial (leia-se, Delegado de Polícia) quando da prática de uma infração penal.
A legislação estadual, Lei Complementar 453/09 prevê expressamente:
Art. 80. O Delegado Geral, o Delegado Geral Adjunto e os Delegados de Polícia são Órgãos Personalizados da Polícia Judiciária de carreira, com autonomia funcional e operacional no exercício exclusivo das suas atribuições constitucionais e legais, dotados das seguintes prerrogativas:
...
III. acesso a informações e banco de dados dos órgãos privados e públicos, da administração direta e indireta, dos três Poderes no interesse da investigação criminal mediante solicitação motivada à autoridade. imediata competente, respeitado o sigilo das informações e dados em virtude de lei ou decisão judicial:
...
V. requisitar informações ou diligências a qualquer órgão público ou privado. (grifo nosso)
Colocando fim a qualquer dúvida, foi publicada a Lei Federal 12.830/13 que "Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia", e estabelece:
Art. 2o As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
§ 1o Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
§ 2o Durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.
O Delegado de Polícia, tendo a atribuição constitucional de investigar crimes, e exigindo-se formação jurídica para o exercício do cargo, não se pode argumentar que suas ordens e decisões violam qualquer diploma legal, pois as qualidades e formação exigida para o cargo visa, justamente, impedir que, durante a investigação criminal, provas e elementos informativos sejam contaminados e considerados ilícitos na fase processual.
“A Lei 12.830/13 em seu art. 2º bem assevera que as funções de Polícia Judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo Delegado de Polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas do Estado. Assim, cabe ao Delegado de Polícia, na condução da investigação criminal, conferir os primeiros contornos jurídicos ao caso e determinar as diligências iniciais para o levantamento de provas. Para tanto, a referida autoridade pública deve pautar sua atuação de forma técnico-jurídica a fim de evitar a produção de provas ilícitas que, acaso fossem produzidas, contaminariam toda a ação penal futura em razão do princípio decorrente do art. 5º da Constituição da República c/c §1º do art. 57 do CPP” (PEREIRA. André Luiz Bermudez. Pág. 28.)
A prerrogativa conferida ao Delegado de Polícia para requisitar informações e documentos de particulares, agentes públicos e entes públicos visa conferir meios para que sua atividade fim, que é a investigação criminal, seja concluída, permitindo que sejam produzidos os elementos de informação e provas necessários para subsidiar as manifestações do Ministério Público e decisões do Poder Judiciário.
Vale ressaltar que o poder de requisitar dados e documentos sempre esteve dentro das prerrogativas conferidas ao Delegado de Polícia, vez que a Constituição Federal, ao estabelecer a atribuição de apurar infrações penais, implicitamente, também confere os meios para que essa atribuição seja efetivamente cumprida, conforme apregoa a teoria dos poderes implícitos. Não por outro motivo, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“Todos os sistemas e órgãos de controle e fiscalização de recursos públicos devem, em uma República, ser valorizados e dotados de poderes implícitos idôneos para que sejam atingidos os fins constitucionais.” (STJ, AgRg no REsp: 1119799 DF 2009/0015296-3, Relator: Ministro Humberto Martins, 2009) (grifo nosso)
Ainda, não deixando dúvidas acerca da prerrogativa de exercício do poder requisitório do Delegado de Polícia, o Supremo Tribunal Federal proferiu a seguinte decisão:
“I – A própria Constituição Federal assegura, em seu art. 144, § 4º, às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. II – O art. 6º do Código de Processo Penal, por sua vez, estabelece as providências que devem ser tomadas pela autoridade policial quando tiver conhecimento da ocorrência de um delito, todas dispostas nos incisos II a VI. III – Legitimidade dos agentes policiais, sob o comando da autoridade policial competente (art. 4º do CPP), para tomar todas as providências necessárias à elucidação de um delito, incluindo-se aí a condução de pessoas para prestar esclarecimentos, resguardadas as garantias legais e constitucionais dos conduzidos. IV – Desnecessidade de invocação da chamada teoria ou doutrina dos poderes implícitos, construída pela Suprema Corte norte-americana e incorporada ao nosso ordenamento jurídico, uma vez que há previsão expressa, na Constituição e no Código de Processo Penal, que dá poderes à polícia civil para investigar a prática de eventuais infrações penais, bem como para exercer as funções de polícia judiciária“ (STF, HC: 107644 SP, Relator: Min. Ricardo Lewandowski, 2011)
Por fim, colocando um ponto final em qualquer discussão, foi publicada a Lei 12.830/13 que, ao prever expressamente o poder de requisição do Delegado de Polícia, apenas positivou de forma expressa, uma prerrogativa que já existia e é inerente a função daquele que investiga uma infração penal.
O verbo descrito na lei "requisitar" segundo o dicionário Michaelis significa "Exigir em nome da lei e para serviço de interesse público"[1].
O Delegado de Polícia, ou mesmo o membro do Ministério Público, que também possui poderes de investigação, ao requisitar um documento, não o faz por vontade ou interesse pessoal. Quando um documento é requisitado, significa que este é importante ao esclarecimento de um fato, sendo obrigação, imposta por lei, ao Delegado de Polícia, sua apuração.
Nesse sentido, negar o documento ou informações requisitadas implica em crime de desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal, ou até mesmo crime de prevaricação, caso a motivação para o não atendimento da requisição seja a satisfação de um interesse pessoal.
Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público:
Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.
Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
Portanto, o Delegado de Polícia tem o poder-dever de requisitar informações e documentos que interessem à investigação criminal, tendo como limitação o respeito aos direitos e garantias fundamentais do cidadão.
A Constituição Federal prevê expressamente quando o acesso a algum dado ou informação exige autorização judicial, como exemplo, podemos citar restrição de liberdade, entrada em residência, que exigem mandado de prisão ou busca e apreensão, interceptação telefônica, que exige autorização judicial.
Quando no caso de dados que digam respeito à intimidade e a vida privada, prevê o artigo 5°, inciso X da Constituição Federal “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Nota-se que nesse caso, não há qualquer exigência de autorização judicial para acesso a esses dados. Eventual lesão a esses direitos deve ser resolvida na esfera cível, por meio de indenização.
O Delegado de Polícia e Professor Doutor Henrique Hoffmann Monteiro de Castro ao tratar do tema ensina:
“Facultar à autoridade de polícia judiciária o poder de requisitar informações que não estejam sob o manto da cláusula de reserva de jurisdição, para que possa desvendar um caso, não significa dar conhecimento amplo e irrestrito daqueles dados a quem quer que seja. Em outras palavras, o conhecimento do Estado-Investigação não configura a publicização dos elementos, que continuarão longe dos olhos de curiosos. A obtenção da informação não configura mero capricho estatal, mas do cumprimento do dever de garantia do direito à segurança pública, sem olvidar dos direitos fundamentais.”
A eventual recusa do hospital em fornecer o prontuário médico, quando feita, busca fundamento em normas e regras infraconstitucionais, principalmente resoluções do Conselho Federal de Medicina, criando um regramento que inverte a pirâmide normativa de Kelsen, dando a resolução de uma autarquia um patamar normativo superior à própria Constituição Federal.
O Código de Ética Médica (Res. 1.931/09)[2] estabelece que é vedado ao médico:
"Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.
Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal." (grifo nosso)
Primeiramente cabe ressaltar que a negativa está fundada na Res. 1.605/2000 e menciona artigos do Código de Ética Médica que, aparentemente não está mais em vigor. O sítio eletrônico do Conselho Federal de Medicina apresenta a Res. 1931/09 que não apresenta os mesmos dispositivos geralmente mencionados na negativa de acesso ao prontuário.
Independente disso, o dispositivo, de duvidosa legalidade, não pode superar uma lei aprovada pelo Congresso Nacional e promulgada pelo Presidente da República.
O segredo médico visa garantir o direito a privacidade de intimidade do paciente, possui proteção legal, previsto no artigo 154 do Código Penal, e proteção administrativa, artigo 73 e seguintes do Código de Ética Médica, no entanto, esses direitos não prevalecem quando há um interesse público e coletivo maior, qual seja, a solução de um possível crime, que decorre de um dever imposto ao Estado de garantir a segurança do cidadão e da sociedade.
Sobre o tema, também ensina o Ilustre doutrinador, e hoje, Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes:
“Os direitos humanos fundamentais, dentre eles os direitos e garantias individuais e coletivos consagrados no art. 5º da Constituição Federal, não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito.
Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna (Princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas).
Desta forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com sua finalidade precípua” (MORAIS, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. pág. 58/59) (grifo nosso)
A própria lei já relativiza o direito ao sigilo médico ao prever a contravenção penal do artigo 66, inciso II do Dec.-Lei 3.688/41, o qual pune a omissão na comunicação de crime cujo médico teve conhecimento no exercício da medicina:
Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente:
I – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício de função pública, desde que a ação penal não dependa de representação;
II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal:
Pena – multa, de trezentos mil réis a três contos de réis.
O próprio Código Penal prevê o crime de “omissão de notificação de doença”, norma penal em branco que obriga o médico a quebrar o sigilo caso a doença esteja prevista em outro diploma normativo.
Art. 269 - Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
Assim, percebe-se que o sigilo médico já é relativizado pela própria legislação em determinados casos. O legislador não tem condições de prever todos os casos em que este sigilo pode, e deve ser quebrado. É aí que entra o poder requisitório do Delegado de Polícia, pois tendo a atribuição de investigar crimes, terá a prerrogativa de determinar outros casos em que este sigilo deverá ser relativizado, sempre tendo como norte a Constituição Federal e a legislação pátria. Não por outra razão, exige-se, para o exercício do cargo de Delegado de Polícia, formação jurídica.
O próprio ao Conselho Regional de Medicina do Estado de Santa Catarina – CREMESC, ao responder a consulta nº 002367/2015, colocando ponto final a discussão, elaborou o seguinte entendimento:
“Quando a entrega do prontuário for inevitável por imposição do Delegado de Polícia, o CRM-SC ACONSELHA que essa entrega em casos extremos, seja feita em cópia lacrada com realce de “MANTER EM SEGREDO DE JUSTIÇA” e elabore-se documento onde expressamente conste que cabe ao requerente policial receber e manter em sigilo os dados contidos naquele prontuário.”
A jurisprudência a tempos, já vêm consagrando a relatividade do direito á privacidade e intimidade quando se trata de sigilo médico tanto em procedimentos cíveis como criminais.
“MANDADO DE SEGURANÇA - INQUÉRITO POLICIAL - MORTE DE PACIENTE - REQUISIÇÃO DE PRONTUÁRIO MÉDICO - RECUSA DESCABIDA DO DIRETOR DO HOSPITAL - SEGURANÇA DENEGADA. O sigilo profissional não é absoluto, contém exceções, conforme se depreende da leitura dos respectivos dispositivos do Código de Ética. Daí porque se revela descabida a recusa em atender a requisição do prontuário médico e documentos feita pelo juízo, em atendimento à cota ministerial, visando apurar possível prática de crime contra a vida diante da morte da paciente que fora submetida a cirurgia de lipoaspiração”. (TJPR Processo: 488137-6, Relator: Rogério Coelho, Data Publicação: 12/01/2009)
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INTOXICAÇÃO DECORRENTE DE APLICAÇÃO DE MEDICAÇÃO EM DOSAGEM EXCESSIVA NA AUTORA, MENOR DE IDADE. ENCAMINHAMENTO AO HOSPITAL PARA OBSERVAÇÃO. REQUISIÇÃO DO PRONTUÁRIO MÉDICO AO NOSOCÔMIO. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AOS AUTORES. INDEFERIMENTO DA PRODUÇÃO DE PERÍCIA TÉCNICA NO PRONTUÁRIO DA PACIENTE. AVALIAÇÃO SE A DOSE DO MEDICAMENTO MINISTRADA ERRONEAMENTE PODERIA INTOXICAR A CRIANÇA. QUESTÃO CONTROVERTIDA. PROVA, ADEMAIS, NECESSÁRIA PARA O EXAME DA EXTENSÃO DO DANO EM CASO DE CONDENAÇÃO. DECISÃO REFORMADA. RECURSO PROVIDO. A produção de prova pericial, em prontuário médico, mostra-se necessária ao deslinde de ação indenizatória, quando a controvérsia incide na dosagem do medicamento aplicado de forma excessiva, em menor de idade, para mensurar a capacidade geradora de sua intoxicação, como o risco de vida da infante. Além disso, na hipótese de acolhimento do pleito indenizatório, a prova técnica torna viável o exame da extensão do dano, ao arbitramento do respectivo quantum. (TJSC Processo: 2013.061598-0, Relator: João Batista Góes Ulysséa, Julgado em: 06/02/2014)
Tratando especificamente deste tema, o Ilustre Doutor Henrique Hoffmann Monteiro de Castro ensina:
“O que o sigilo médico protege é a revelação leviana, maldosa das informações médicas do paciente, e não aquela que visa a atingir o direito fundamental à segurança pública, tão importante quanto a intimidade do paciente e o regular exercício profissional do médico.”
Além disso, o acesso do Delegado de Polícia ao prontuário médico é decorrência lógica dos poderes investigatórios que lhe foi atribuído.
A fim de uniformizar a atuação da polícia judiciária em todo o Brasil, foi editado o enunciado 13 do II Encontro Nacional de Delegados de Polícia sobre Aperfeiçoamento da Democracia e Direitos Humanos:
"O poder requisitório do delegado de polícia abarca o prontuário médico que interesse à investigação policial, não estando albergado por cláusula de reserva de jurisdição, sendo dever do médico ou gestor de saúde atender à ordem no prazo fixado, sob pena de responsabilização criminal"
A legislação confere status de perícia ao prontuário médico em diversos casos, por exemplo, Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) e Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95):
Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
...
§ 3o Serão admitidos como meios de prova os laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde. (grifo nosso)
Art. 77. Na ação penal de iniciativa pública, quando não houver aplicação de pena, pela ausência do autor do fato, ou pela não ocorrência da hipótese prevista no art. 76 desta Lei, o Ministério Público oferecerá ao Juiz, de imediato, denúncia oral, se não houver necessidade de diligências imprescindíveis.
§ 1º Para o oferecimento da denúncia, que será elaborada com base no termo de ocorrência referido no art. 69 desta Lei, com dispensa do inquérito policial, prescindir-se-á do exame do corpo de delito quando a materialidade do crime estiver aferida por boletim médico ou prova equivalente. (grifo nosso)
Com efeito, se o Delegado de Polícia pode requisitar um exame pericial sem necessidade de ordem judicial, seria ilógico, conferir uma interpretação jurídica que sustente essa a exigência quanto ao prontuário médico que faria às vezes de documento pericial.
A requisição do prontuário médico pode ser motivada por duas ocasiões distintas: para apurar um crime no qual o paciente foi vítima de um delito ou, apurar um crime no qual o paciente é suspeito da prática de ato ilícito.
Em qualquer caso, incabível e inadmissível qualquer recusa.
No primeiro caso, que inclusive, corresponde a maioria das requisições de prontuários médicos (pacientes vítimas), a requisição visa, precipuamente, a comprovação da materialidade do crime. Ou seja, descobrir quem praticou o atentado contra a integridade física da vítima.
O assunto já está, há tempos, pacificado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVA. MANDADO DE SEGURANÇA. "QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL". EXIBIÇÃO JUDICIAL DE "FICHA CLINICA" A PEDIDO DA PROPRIA PACIENTE. POSSIBILIDADE, UMA VEZ QUE O "ART. 102 DO CODIGO DE ETICA MEDICA", EM SUA PARTE FINAL, RESSALVA A AUTORIZAÇÃO. O SIGILO E MAIS PARA PROTEGER O PACIENTE DO QUE O PROPRIO MEDICO. RECURSO ORDINARIO NÃO CONHECIDO. (STJ, RMS 5.821, Rel. Min, Adhemar Maciel, DJ 07/10/1996)
Não há razão para que o sigilo, que serve para proteger o paciente, seja utilizado para prejudica-lo, impedindo que a polícia possa identificar o autor dos fatos.
No segundo caso, também não é possível a recusa, vez que o completo esclarecimento de um delito e a responsabilização de seu autor, decorre do interesse público e de uma obrigação estatal em garantir o direito fundamental à segurança pública. Permitir que o autor de um crime utilize o direito fundamental como escudo protetor para práticas de atos ilegais e criminosos é uma absurda e inadmissível inversão dos pilares do contrato social estabelecido entre o cidadão e o Estado.
Não há direito fundamental absoluto. Sobre o tema ensina André Ramos Tavares:
“Não existe nenhum direito humano consagrado pelas Constituições que se possa considerar absoluto, no sentido de sempre valer como máxima a ser aplicada nos casos concretos, independentemente da consideração de outras circunstâncias ou valores constitucionais. Nesse sentido, é correto afirmar que os direitos fundamentais não são absolutos. Existe uma ampla gama de hipóteses que acabam por restringir o alcance absoluto dos direitos fundamentais. Assim, tem-se de considerar que os direitos humanos consagrados e assegurados: 1º) não podem servir de escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas; 2º) não servem para respaldar irresponsabilidade civil; 3º) não podem anular os demais direitos igualmente consagrados pela Constituição; 4º) não podem anular igual direito das demais pessoas, devendo ser aplicados harmonicamente no âmbito material. Aplica-se, aqui, a máxima da cedência recíproca ou da relatividade, também chamada ‘princípio da convivência das liberdades’, quando aplicada a máxima ao campo dos direitos fundamentais.” (TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, p. 528)
O Supremo Tribunal Federal já analisou e pacificou entendimento de que não há direito fundamental absoluto, ainda que previstos como cláusulas pétreas, e o sigilo médico-profissional, não pode ser exceção.
“OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.” (STF, MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 16/09/99; STJ, RMS 11.453, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 17/06/2003) (grifo nosso)
Vale ressaltar que: “A obtenção da informação pela polícia judiciária não significa a sua publicização. Muito pelo contrário. Uma característica inerente ao inquérito policial é o seu sigilo. Dessa maneira, terceiros não comprometidos com o segredo profissional não terão acesso ao prontuário médico, que persistirá longe dos olhos de enxeridos. A obtenção da informação não decorre de mera curiosidade do Estado-investigação, senão do cumprimento de dever de efetivação do direito à segurança pública.” (CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Médico deve fornecer prontuário requisitado pela polícia judiciária)
Nesse sentido, não há dúvidas de que o sigilo médico, embora de fundamental importância para o exercício do profissional da medicina, não é oponível à requisição do Delegado de Polícia quanto ao prontuário do paciente, vez que sua atuação no exercício das funções de Polícia Judiciária é de interesse público e representam o Poder do Estado-Investigativo na garantia de direitos fundamentais da vítima e da coletividade.
Portanto, é legítima a requisição de prontuário médico a ser formalizada pelo Delegado de Polícia, devendo o órgão público ou entidade privada fornecê-lo no prazo assinalado, sob pena de responsabilização penal, cível e na esfera da improbidade administrativa.
Bibliografia
1. CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Requisição de dados é imprescindível na busca do delegado pela verdade. Revista Consultor Jurídico, fev. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-fev-02/academia-policia-poder-requisitorio-delegado-essencial-busca-verdade>. Acesso em: 23.out.2018.
2. CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Médico deve fornecer prontuário requisitado pela polícia judiciária. Revista Consultor Jurídico, março. 2016. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2016-mar-15/academia-policia-medico-fornecer-prontuario-requisitado-policia-judiciaria>. Acesso em: 23.out.2018.
3. SILVA, Raphael Zanon. Prontuário médico: requisição da autoridade policial X sigilo médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, nº. 3838, 3 jan. 2014. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/26304>. Acesso em: 23.out.2018.
4. COSTA, Adriano Sousa; SILVA, Laudelina Inácio da. Prática policial sistematizada. Rio de Janeiro: Impetus, 2014, p. 204.
5. MORAIS, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2016.
6. PEREIRA, André Luiz Bermudez. A investigação Criminal Orientada pela Teoria dos Jogos. Florianópolis: EMais 2018.
7. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 2010.
8. Todos os enunciados do II Encontro Nacional de Delegados de Polícia sobre Aperfeiçoamento da Democracia e Direitos Humanos estão disponíveis no site da Federação Nacional dos Delegados de Polícia Civil: www.fendepol.com.
Notas
[1] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/requisitar/
[2] http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20664:capitulo-ix-sigilo-profissional&catid=9:codigo-de-etica-medica-atual&Itemid=122