3 BEM DE FAMÍLIA, DIREITO À MORADIA E PRINCÍPIOS GARANTIDORES
3.1 TENTATIVA CONCE
O conceito de bem de família tem passado por constantes discussões entre os estudiosos e nos tribunais superiores. Embora a aparente clareza da norma, recentemente foram discutidos, no Superior Tribunal de Justiça, os requisitos de ordem objetiva que devem ser observados para que determinado bem imóvel seja enquadrado como tal, senão vejamos: a) que o imóvel seja de propriedade do casal ou da entidade familiar; e b) que seus proprietários nele residam.
Em relação ao primeiro dos requisitos, poder-se-ia presumir, numa interpretação restritiva do conceito de família, que pessoas solteiras, separadas ou viúvas, por exemplo, não poderiam se valer da proteção albergada pela referida lei, hipótese que, em sua mera suposição, revela-se ultrapassada e descabida.
Não bastasse isso, com o fito de resolver questionamentos uma vez suscitados por devedores solteiros, separados ou viúvos, fora editada, ao final do ano de 2008, a Súmula nº 364 do STJ, determinando que “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas ou viúvas.”. Isso porque um dos objetivos da impenhorabilidade é resguardar o direito à moradia, e não apenas conferir proteção à família.
Nesse sentido, vejamos louvável entendimento do Min. Sávio de Figueiredo Teixeira, quando da análise dos Embargos de Divergência em REsp nº 182.223 – SP, ao ampliar a interpretação do art. 1º da Lei nº 8.009/90:
RESP - CIVIL - IMÓVEL - IMPENHORABILIDADE.
A Lei n.º 8.009/90, do art. 1º precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto. Estabelece limitação à regra draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantido-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável, ou descendência. Não se olvidem ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda a família substitutiva. Nessa linha, conservada a teleologia da norma, o solteiro deve receber o mesmo tratamento. Também o celibatário é digno dessa proteção. E mais. Também o viúvo, ainda que seus descendentes hajam constituído outras famílias, e como, normalmente acontece, passam a residir em outras casas. "Data venia", a Lei nº 8.009/90 não está dirigida a número de pessoas. Ao contrário - à pessoa. Solteira, casada, viúva, desquitada, divorciada, pouco importa. O sentido social da norma busca garantir um teto para cada pessoa. Só essa finalidade, 'data venia', põe sobre a mesa a exata extensão da lei. Caso contrário, sacrificar-se-á a interpretação teleológica para prevalecer a insuficiente interpretação literal.' Esse dispositivo formou-se na linha de interpretação ampliativa que o Superior Tribunal de Justiça desenvolve sobre Art. 1º acima transcrito. Como registra o eminente Ministro Relator, nossa jurisprudência declara sob o abrigo da impenhorabilidade, a residência;
a) da viúva, sem filhos (REsp. 276.004/Menezes Direito);
b) de pessoa separada judicialmente (REsp 218.377/Barros Monteiro);
c) irmãos solteiros (REsp 57.606/Alencar).
Esses três exemplos, lembrados pelo Ministro Relator, indicam a percepção de que o legislador, ao utilizar a expressão 'entidade familiar' não se referiu à família coletiva, mas àqueles entes que a integram (irmãos solteiros) ou dela são remanescentes (viúva ou divorciado). De fato, não teria sentido livrar de penhora a residência do casal e submeter a essa constrição a casa, onde um dos integrantes do casal continua a morar, após o falecimento de seu cônjuge.
Ainda, no que tange ao segundo requisito, imaginemos uma situação na qual os devedores não residem no imóvel familiar e o locam a terceiros. Deveria a prerrogativa da impenhorabilidade ser ilidida nesse caso?
Apesar da polêmica já instalada, a jurisprudência do STJ é forte no sentido de que a impenhorabilidade estende-se a um único imóvel do devedor, ainda que locado a terceiros, desde que o valor auferido com a locação seja notadamente destinado à subsistência da entidade familiar. Valhamo-nos de importante posicionamento assentado na quarta turma da Corte Superior:
"O ÚNICO BEM DE FAMÍLIA NÃO PERDE OS BENEFÍCIOS DA IMPENHORABILIDADE - LEI Nº 8.009/90 - SE OS DEVEDORES NELE NÃO RESIDIREM E O LOCAREM A TERCEIROS, DESDE QUE A RENDA AUFERIDA SEJA DESTINADA A MORADIA E SUBSISTÊNCIA DO NÚCLEO FAMILIAR.
1. Conforme precedente da Segunda Seção, 'em interpretação teleológica e valorativa, faz jus aos benefícios da Lei 8.009/90 o devedor que, mesmo não residindo no único imóvel que lhe pertence, utiliza o valor obtido com a locação desse bem como complemento da renda familiar, considerando que o objetivo da norma é o de garantir a moradia familiar ou a subsistência da família'. 2. Viola a Lei o acórdão que deixa de reconhecer os benefícios da impenhorabilidade do bem de família, em face de os devedores não residirem no imóvel. Dissídio configurado.
Recurso conhecido e provido" (STJ, REsp 243.285/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe 15/09/2008).
Dessa forma, resta desmistificada a problemática levantada quanto à relativização do requisito que, em tese, impõe a necessidade de que a unidade familiar resida no imóvel, tendo em vista que, ainda que, de fato, isso ocorra, o entendimento da Corte Superior é uníssono no sentido de que o referido imóvel não perde o seu caráter de bem de família quando, a despeito de não ser destinado à residência efetiva da entidade familiar, esteja sendo utilizado em seu proveito, como no caso de locação, com a destinação do produto dos alugueres à subsistência da unidade familiar ou manutenção de suas necessidades básicas.
Ainda, após a leitura do art. 5º da Lei nº 8.009/90, presume-se o reconhecimento de um terceiro requisito para a proteção do bem de família com o privilégio da impenhorabilidade: o fato de existir apenas um único imóvel de utilizado pelo casal ou pela entidade familiar como residência ou em razão de sua subsistência.
Vejamos o teor do dispositivo:
Art. 5º. Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.
Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil.
Numa primeira leitura, poder-se-ia aviltar que, para o gozo da impenhorabilidade, a lei exige que o casal ou a entidade familiar seja proprietária de um único imóvel, sob pena de ver afastada a proteção legal.
No entanto, na leitura completa dispositivo, não é necessário socorrer-se de outra interpretação senão a meramente literal, ao revelar que a intenção do legislador não foi criar um outro requisito para o reconhecimento do privilégio de impenhorável, mas, sim, restringir a proteção legal a apenas um imóvel da entidade familiar, no caso de o casal ser proprietário de dois ou mais. Prova é tanto que o parágrafo único prevê a possibilidade de coexistir a propriedade de vários imóveis utilizados como residência, mas assevera claramente que a proteção recairá exclusivamente sobre o de menor valor, ressalvando, evidentemente, a hipótese na qual já exista outro imóvel, com esse fim, averbado no Registro de Imóveis.
Dessa forma, ainda que o devedor seja proprietário de mais de um imóvel, aquele que primeiro for registrado junto ao Registro de Imóveis como bem de família ou o de menor valor, caso nenhum deles já tenha precedido ao registro, será assim considerado como tal e terá o manto protetivo da lei, não havendo óbice que a penhora recaia sobre os demais.
3.2 MÍNIMO VITAL
A principal intenção do legislador ao consagrar esse instituto é fortalecer os mecanismos de proteção do direito à moradia, básico para a manutenção de uma vida digna de qualquer cidadão, já que visa a garantir ao indivíduo, como postulado da dignidade da pessoa humana, a fruição do mínimo necessário à sua sobrevivência e de sua família, buscando assegurar aos devedores o mínimo exigível para se viver com dignidade, que é o direito à moradia,, de forma a inibir a pretensão de penhorabilidade do imóvel residencial no qual habita a entidade familiar.
3.3 IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA E EXCEÇÕES À PROTEÇÃO
Ainda introduzindo a lei, o seu art. 1º reveste com o instituto da impenhorabilidade, salvo raras exceções, o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, quando alvo de execução de dívidas de natureza civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de qualquer outra espécie, contraídas pelos cônjuges, pais ou filhos que sejam seus proprietários ou nele residam.
A impenhorabilidade guarnece tanto o imóvel sobre o qual se assentam as construções como as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.
Em que pese haver ampla proteção ao bem de família, o art. 3º desse diploma legal estabelece algumas situações nas quais é afastada a impenhorabilidade do imóvel residencial próprio da entidade familiar, tornando possível a execução da penhora pretendida.
Dentre as exceções, mais nos interessa a que se encontra no inciso IV do referido artigo, senão vejamos:
Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
[...]
IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;
(Grifo nosso)
Ao nos debruçarmos sobre o dispositivo mencionado, percebemos que os débitos oriundos de cobranças de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições que guardam relação direta com o imóvel não protegem o referido bem do registro da penhora, ou seja, nos casos de débitos decorrentes do próprio imóvel dado como bem de família, o bem imóvel perde a qualidade de impenhorável e torna-se, legitimamente, alvo de penhora.
3.4 FLEXIBILIZAÇÃO DA EXCEÇÃO TRAZIDA NO ART. 3º, IV, DA LEI 8.009/90
Para melhor visualizarmos como se concretiza na prática o referido dispositivo, tomemos como base o seguinte exemplo fictício: João, proprietário de único imóvel no qual reside com sua esposa e filhas, no município do Jaboatão dos Guararapes, é réu em Ação de Execução Fiscal promovida pela Procuradoria competente, objetivando a satisfação de débito de IPTU originado em decorrência do não pagamento do referido imposto do imóvel em questão, no qual o devedor reside com sua família. O débito não foi adimplido por João, tampouco este utilizou-se das hipóteses de suspensão ou extinção do crédito fiscal, nem foram oferecidos à Fazenda Pública bens em garantia da dívida, fato que resultou na de decretação da penhora on-line, via BACEN-JUD, pelo juízo competente, a qual restou-se frustrada, tendo em vista a não localização de quantia em dinheiro nas contas bancárias do executado. Assim, determinou o juiz a penhora de bens do devedor, por Oficial de Justiça, que localizou, junto ao Registro de Imóveis local, um imóvel de propriedade do devedor. Ao se dirigir ao endereço, foi constatado pelo Oficial de Justiça que o imóvel a ser penhorado servia como moradia para João e sua família. Amparado pela Lei, procedeu o serventuário de justiça ao registro da penhora e lavrou o competente Auto de penhora e avaliação, que avaliou o imóvel em R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) frente a um débito inscrito em Dívida Ativa no valor atualizado de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), somados juros e multa.
Ocorre, no presente caso, o cumprimento integral da lei, conforme exceção prevista no inciso IV do art. 3º da Lei 8.009/90, não havendo ilegalidade alguma por parte do Oficial. Porém, em que pese a atuação do magistrado esteja em conformidade com a lei – que autoriza a penhora de bem de família por dívidas decorrentes do próprio imóvel –, entendemos que tal dispositivo, da forma como é aplicado, frustra direitos e garantias mínimas exigíveis para a subsistência do indivíduo na sociedade, em especial o direito à moradia – reconhecido como direito social (art. 6º, CF) –, e, consequentemente, contrapõe-se à proteção conferida à família no art. 226 da Constituição Federal.
Ora, não se pode conceber que um débito de quatro mil reais tenha o condão de ver leiloado um imóvel cujo valor representa 10 (dez) vezes o valor débito que se busca liquidar.
Esse é o entendimento da 4ª Câmara de Direito Público do TJPE, sob relatoria do saudoso Des. Rafael Machado da Cunha Cavalcanti[18], para o qual:
"Entrementes, embora a execução tenha como finalidade assegurar que o exequente receba o seu crédito, deve sempre se desenvolver sob a forma menos gravosa possível ao executado (artigo 620 do CPC) e em observância aos princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade. - Por fim, no que atine à alegação do ora agravante de que não dispõe do CPF do executado para efeito de formulação de penhora online, entendo que a incumbência quanto à indicação de bens ou contas bancárias para o prosseguimento do executivo fiscal cabe ao exequente, não merecendo acolhida a mera afirmação, para efeito de desonerar-se de tal ônus, de que tal informação não foi fornecida pelo contribuinte quando da regularização do cadastro imobiliário perante a prefeitura municipal. Com isso em mente, não vislumbro malferimento à fundamentação trazida na r. decisão ao indeferir a penhora do imóvel por considerá-la excessivamente onerosa, intimando a Fazenda para que proceda a substituição da penhora por outros bens passíveis de constrição, não tendo se esgotado ainda a possibilidade de localização de outros bens penhoráveis ou até mesmo a tentativa de penhora online, consoante o disposto no art. 185-A do CTN.-Acresço ainda, quanto à alegação de que o valor da dívida é em muito excedente ao valor do bem imóvel de pretensa penhora, que os autos não comprovam tal alegação. À latere, se tomarmos que os autos trazem por valor da dívida excutida o noticiado à fl. 17 (R$ 4.392,25), bem como indicam, através de alegação do próprio recorrente, como valor do imóvel de pretensa penhora o valor de R$ 21.194,41, de fato existiria a onerosidade excessiva da penhora se esta recaísse sobre o bem imóvel." (Grifei)
Porém esse não é o posicionamento dominante nos tribunais, que consideram legítima a penhora, ainda que o valor cobrado seja infinitamente menor que o do imóvel alvo de penhora, sob o argumento de que o valor excedente ao realmente devido será devolvido ao devedor. Exemplificando: consideremos o mesmo exemplo dado anteriormente, em que há um imóvel no valor de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) alvo de um débito executado de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), o que representa 10% do valor do bem. Caso o bem seja penhorado e levado a leilão, seria retido o valor devido, mas o saldo remanescente (R$ 36.000,00 – trinta e seis mil reais) seria devolvido ao executado. Esse é o entendimento da 2ª Câmara de Direito Público do TJPE[19], para o qual é
"Pacífica a possibilidade de penhorar o próprio imóvel para o pagamento do IPTU, mesmo que o valor cobrado seja infinitamente menor que o do imóvel, ante o fato de que não há excesso da penhora que abrange fração correspondente a valor superior ao do débito, pois o que sobejar será devolvido aos devedores."
Nesse sentido, merece valorosa atenção o pensamento segundo o qual a aplicação do art. 3º, IV, da referida lei deve ser, senão revista, ao menos flexibilizada, para que se adeque à Constituição Federal de 1988 e à realidade econômica e social do povo brasileiro, quando confere proteção máxima ao direito à moradia, estendendo-o à noção de mínimo vital para o indivíduo, garantia esta que visa a preservar as bases de dignidade do devedor para que possa restabelecer sua situação subsistencial e econômico-contributiva, mantendo íntegra a sua personalidade.
Corroborando tal entendimento, valhamo-nos das lições de ZILVETI (2006, p. 256), para a qual:
O princípio da dignidade humana leva o Estado a garantir o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. A tendência é encontrar instrumentos hábeis que preservem o devedor e que, ao mesmo tempo, não frustrem a garantia do credor. Nesse sentido, o Brasil lidera verdadeira revolução silenciosa, impulsionada pelos tribunais, que vêm realizando o direito em sua concretude e atribuindo à lei o seu sentido social, deixando ele lado a visão extremamente positivista e literal a que está acostumada a tradição jurídica brasileira.[20]
Dessa forma, defendemos a tese de que, embora a execução tenha como finalidade assegurar que o exequente receba o seu crédito, essa busca deve sempre se desenvolver sob a forma menos gravosa possível ao executado e em constante observância aos princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade.
Para tanto, nos casos em que o valor da dívida seja inferior ao valor do bem imóvel de pretensa penhora, deve-se haver a correspondência de no mínimo 50% (cinquenta por cento) entre o valor da execução e o do bem a ser penhorado.
Entendemos que este é um patamar razoável para que, só assim, frustre-se o direito de moradia e intervenha o Estado na propriedade privada do devedor, sob pena de macular onerosidade excessiva da penhora se esta recair sobre o referido imóvel.