3 O fato do príncipe no Direito do Trabalho
O tema do fato do príncipe (ou factum principis) tem sido desenvolvido no Direito Administrativo no contexto do estudo da responsabilidade civil do Poder Público, especialmente no âmbito das suas relações contratuais.
Nessa perspectiva, a clássica e sucinta definição de fato do príncipe proposta por José Cretella Júnior em opúsculo amplamente conhecido identifica-o como “toda e qualquer providência da iniciativa dos poderes públicos que torna mais onerosa a situação daquele que contrata com a Administração”[28].
Na lição de Hely Lopes Meirelles, o fato do príncipe é “toda determinação estatal, positiva ou negativa, geral, imprevista e imprevisível, que onera substancialmente a execução do contrato administrativo”[29].
A seu turno, assenta Celso Antônio Bandeira de Mello que o fato do príncipe consiste em medida que afeta o contrato administrativo, adotada pelo ente estatal no lícito exercício das competências que lhe são conferidas pelo ordenamento, não das faculdades decorrentes da qualidade de contratante: “O fato do príncipe não é um comportamento ilegítimo. Outrossim, não representa o uso de competências extraídas da qualidade jurídica do contratante, mas também não se constitui em inadimplência ou falta contratual. É o meneio de uma competência pública cuja utilização repercute diretamente sobre o contrato, onerando, destarte, o particular”[30].
No Direito do Trabalho, a figura do fato do príncipe encontra-se disciplinada no art. 486 da CLT. Aqui, evidentemente, não será objeto de interesse a existência de contrato mantido entre a Administração e um particular, mas os efeitos jurídicos do exercício lícito de uma competência assegurada ao ente público que venha a afetar de maneira excessivamente gravosa a manutenção do vínculo entre um trabalhador e seu empregador.
Eis a redação original do artigo:
Art. 486. No caso de paralisação do trabalho motivado originariamente por promulgação de leis ou medidas governamentais, que impossibilitem a continuação da respectiva atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, a qual, entretanto, ficará a cargo do Governo que tiver a iniciativa do ato que originou a cessação do trabalho.
Convém consignar que havia, à época da edição da Consolidação das Leis do Trabalho, grande interesse na regulamentação dos efeitos sobre o contrato de trabalho de atos do Poder Público que inviabilizavam a continuidade da atividade econômica. Recorde-se, a propósito, que a CLT foi publicada em 1943, no curso do Estado Novo, dois anos após a expedição do Decreto-Lei n.º 3.365/41, que regulamenta a desapropriação por utilidade pública.
Pouco mais de um mês após o início da vigência da Consolidação, foi editado o Decreto-Lei n.º 6.110/43.
O diploma promoveu pequena alteração ortográfica no dispositivo citado, retirando a vírgula existente após a palavra “governamentais”. A modificação relevante foi realizada por meio da inclusão de dois parágrafos, os quais regulamentaram uma espécie de intervenção de terceiros e afastaram a competência da Justiça do Trabalho (à época, é verdade, ainda não integrante da estrutura do Poder Judiciário, o que somente veio a ocorrer com a Constituição de 1946) na hipótese de plausibilidade da responsabilidade da União Federal — uma vez que, em caso de constatação prima facie da ausência de responsabilidade, a Justiça do Trabalho prosseguiria na apreciação da causa. A nova redação do artigo passou a ser a seguinte:
Art. 486. No caso de paralisação do trabalho motivado originariamente por promulgação de leis ou medidas governamentais que impossibilitem a continuação da respectiva atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, a qual, entretanto, ficará a cargo do Governo que tiver a iniciativa do ato que originou a cessação do trabalho.
§ 1º Sempre que o empregador invocar em sua defesa o, preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.
§ 2º Se for a União a indigitada responsável, o tribunal de trabalho, se entender passível de discussão a responsabilidade, a esta imputada, sobrestará na apreciação do feito, remetendo os interessados ao Juízo Privativo da Fazenda Nacional, onde será apreciada a quem cabe a responsabilidade mediante processo ordinário. Se, entender que a arguição não oferece, desde logo, fundamento legal, prosseguirá no feito.
No ano de 1951, o art. 486 teve sua redação novamente alterada.
Parece-nos que reside aqui, no desenvolvimento do processo legislativo que resultou na Lei n.º 1.530/51, o gérmen das controvérsias e incompreensões que orbitam o referido artigo celetista até a atualidade.
O Projeto de Lei do Senado n.º 39/1949 objetivava alterar os arts. 11, 486, 742, 780 e 893 da CLT, não tendo sido apresentada, em sua justificativa, a motivação para a modificação do art. 486, objeto de interesse neste estudo.
Conforme consignado nos pareceres, nas emendas e nos substitutivos do Projeto ao longo da sua tramitação, as alterações inseridas no art. 486 diziam respeito, essencialmente, aos seguintes temas: a) aplicação da teoria do fato do príncipe também na paralisação temporária, não apenas na definitiva, como até então previsto na redação caput do dispositivo; b) alteração do § 1º, que passaria a prever que, nos casos de desapropriação por utilidade pública, caberia ao empregador perseguir, no processo de desapropriação, o ressarcimento das indenizações pagas aos empregados [31]; c) reformulação do § 2º e inclusão do § 3º, com a disciplina das questões processuais envolvendo o pagamento da indenização. Curiosamente, quanto a este último ponto, o Projeto previa de maneira expressa que, após a remessa dos autos pela Junta de Conciliação e Julgamento para o “Juízo Privativo de Feitos da Fazenda Pública”, a este caberia a apreciação do caso, ainda que afastada a responsabilidade do ente público.
Na Câmara dos Deputados, o Projeto assumiu o número n.º 842/50, tendo sofrido várias emendas, inclusive com o oferecimento de três substitutivos.
Após o retorno ao Senado Federal e mantidas as alterações realizadas pela Câmara, o projeto foi encaminhado para sanção presidencial. Àquela altura, no ocaso de 1951, Getúlio Vargas já havia retornado à Presidência da República, desta vez pela via do voto direto.
O projeto sofreu veto parcial da Presidência. No limite de pertinência à temática deste estudo, foi alvo de veto o § 1º, por considerar-se que a redação proposta conduziria à interpretação de que necessariamente a desapropriação por utilidade pública ensejaria a ruptura de contratos de emprego, o que, em verdade, nem sempre ocorreria. As razões do veto são adiante transcritas: “No tocante à redação dada ao paragrafo 1º do art. 486, da Consolidação das Leis do Trabalho, julgo-a contrária aos interesses nacionais porque vem estabelecer o falso principio de que a desapropriação por utilidade pública trará sempre ao empregador o direito de reclamar do Governo desapropriante o pagamento das indenizações devidas a empregados. E não se justifica esse dispositivo porque nem sempre a desapropriação importa necessariamente em despedimento dos empregados”.
Em 08/02/1952, foi realizada a sessão do Congresso Nacional destinada à apreciação dos vetos, que foram mantidos, conforme detalhadamente relatado na ata publicada no dia seguinte no Diário do Congresso.
É interessante verificar que apenas nesta oportunidade houve manifestação de perplexidade dos parlamentares em relação à nova redação do caput do art. 486, precisamente o dispositivo que ampliava os casos de responsabilização do Poder Público. O Deputado Federal mineiro Hilbedrando Bisaglia [32], naquela sessão, expressou preocupação com a possibilidade de o texto ser compreendido como o estabelecimento de um dever geral do Poder Público de arcar com verbas trabalhistas mesmo no caso de paralisações temporárias, interpretação que, conquanto minoritária, ainda é esposada por alguns juslaboralista até os dias atuais. Como veremos adiante, o dispositivo não alcança tal amplitude, mas sua redação não oferece, de fato, auxílio ao intérprete.
Pela relevância da contextualização histórica, convém transcrever excerto do pronunciamento de Bisaglia:
Aliás, o Sr. Presidente da República deveria não apenas vetar o § 1º, mas também o próprio art. 486. (...) O art. 486 da Lei vigente declara que apenas quando houver paralisação do trabalho que resulte em rescisão obrigatória do contrato de trabalho, exclusivamente nesta hipótese, ficará o Governo obrigado a indenizar. O projeto, entretanto, no art. 486, que vigorará porque não o alcançou o veto, declara que nas paralisações do trabalho, temporária ou definitiva, ficará o Governo federal, estadual ou municipal, obrigado a indenizar ao trabalhador. A inovação sensível que afeta diretamente o interesse público está na paralisação temporária do serviço, porque esta paralisação não determina a rescisão contratual: limita-se a interromper o contrato de trabalho, o que não pode, evidentemente, determinar a sua rescisão[33].
Sancionada a Lei n.º 1.530/51 e mantidos pelo Congresso Nacional os vetos parciais, eis a redação atribuída ao art. 486 da CLT, mantida até os dias correntes:
Art. 486 - No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável. (Redação dada pela Lei nº 1.530, de 26.12.1951)
§ 1º - Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria. (Incluído pelo Decreto-lei nº 6.110, de 16.12.1943)
§ 2º - Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação. (Redação dada pela Lei nº 1.530, de 26.12.1951)
§ 3º - Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum. (Incluído pela Lei nº 1.530, de 26.12.1951)
Lege habemus, resta-nos empreender o esforço hermenêutico necessário à sua adequada compreensão.
De plano, percebe-se que o legislador manteve no caput a oração “que impossibilite a continuação da atividade”, a mesma utilizada quando prevista, no texto anterior, apenas a paralisação definitiva e sugestiva da ocorrência do encerramento do empreendimento. Todavia, como visto, a inclusão da hipótese de paralisação temporária, opção legislativa deliberada, evidencia que a teoria do fato do príncipe, no Direito do Trabalho brasileiro, é aplicável quando atos governamentais redundem na necessidade de extinção de contratos de trabalho, seja por determinação de cessação absoluta e definitiva da atividade, seja em razão da duração ou das repercussões de uma paralisação temporária, ainda que posteriormente a atividade volte a ser realizada.
O aspecto fundamental para sua incidência é que o ato governamental consista no elemento decisivo para a ruptura do vínculo empregatício.
Em relação à cessação definitiva da atividade, não é necessário desenvolver qualquer digressão, sendo óbvia a consequente cessação dos contratos de trabalho.
Quanto à paralisação temporária, é possível que sua duração provoque, a partir de certo momento, a impossibilidade de manutenção dos vínculos empregatícios, até mesmo em razão da ausência de fluxo de caixa por período prolongado. É possível, ainda, que a medida governamental que impõe a paralisação alcance determinada empresa que realize atividades sazonais justamente na alta temporada, vindo a ser revogada poucos meses ou semanas depois.
O segundo ponto a observar é que o texto não menciona a possibilidade de o ato haver sido praticado por autoridade distrital.
Não há razão, entretanto, aqui, para censura ao legislador. A demarcação das divisas definitivas do Distrito Federal e da regulamentação da instalação de Brasília, a nova capital, apenas veio a ser realizada pela Lei n.º 2.874/56 (não obstante a determinação de instalação da capital federal no Planalto Central esteja consagrada em nosso ordenamento desde a Constituição de 1891, como se sabe).
Trata-se de uma hipótese de necessidade de recurso à interpretação extensiva, aquela que se desenvolve “em torno de uma norma para nela compreender casos que não estão expressos em sua letra, mas que nela se encontram, virtualmente, incluídos”[34]. Deve-se, portanto, compreender que o fato do príncipe em âmbito trabalhista aplica-se também a atos praticados por autoridades distritais.
Uma terceira questão merecedora de atenção é a constatação de que a teoria do fato do príncipe, nos termos do art. 486 celetista, alcança atos de natureza administrativa e legislativa. Inviável, entretanto, sua invocação relativamente a atos jurisdicionais — o que não impede, evidentemente, eventual futura discussão acerca da responsabilidade civil do Estado por ato do Poder Judiciário, mas, neste caso, não mais estaremos na arena da aplicação do aludido dispositivo legal.
A quarta temática relevante diz respeito à reflexão acerca da necessidade ou não da natureza discricionária do ato para caracterização do fato do príncipe.
Convém, aqui, rememorar o escólio de Celso Antônio Bandeira de Mello, de acordo com o qual a discricionariedade é
a margem de liberdade que remanesça ao administrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um, dentre pelo menos dois comportamentos cabíveis, perante cada caso concreto, a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação da finalidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente, uma solução unívoca para a situação vertente[35].
Com o devido respeito àqueles que esposam a tese da exigência da natureza discricionária do ato para o reconhecimento do fato do príncipe, não nos parece a mais apropriada solução, por três singelas razões:
a) O art. 486, caput, não atrela, em qualquer momento, a configuração do fato do príncipe ao caráter discricionário ou vinculado do ato, satisfazendo-se com a imposição de paralisação temporária ou definitiva da atividade em decorrência direta de medida do Poder Público;
b) A doutrina do Direito Administrativo, fonte de elevada importância em relação à dogmática do fato do príncipe, não arrola como requisito para sua caracterização o exercício de competência discricionária;
c) Não apenas atos administrativos podem atrair a incidência da teoria do fato do príncipe, como também atos legislativos, em relação aos quais é simplesmente impertinente a classificação como ato vinculado ou discricionário. Não se olvida, naturalmente, da interessante discussão em torno da existência de um dever de legislar, especialmente diante de comandos constitucionais inequívocos. Mas, mesmo aqui, talvez os fatos concretos sejam um testemunho muito mais eloquente da inviabilidade de cogitar-se de uma natureza vinculada, em sentido próprio ou forte, do exercício da competência legislativa, invocando-se como exemplo a mora legislativa em relação ao art. 7º, incisos I e XXI (esta suprida apenas em 2011), da Constituição Federal, somente para permanecer em dois casos amplamente conhecidos na área juslaboralista. Em outras palavras: não é possível validamente formular a assertiva de que a configuração da teoria do fato do príncipe no Direito do Trabalho requer que o ato haja sido praticado pelo ente estatal no exercício de competência discricionária, uma vez que ela não é aplicável em todos os casos em que o fato do príncipe consistir em uma medida legislativa.
Há, ainda, uma ponderação pragmática que milita em desfavor da exigência da natureza discricionária do ato do Poder Público.
Nem sempre será possível afirmar, ictu oculi, possuir determinado ato a natureza vinculada ou discricionária.
Interlocutores razoáveis e de boa-fé podem, em diversas hipóteses, divergir a respeito da adequada caracterização de certo ato.
O próprio cenário jurídico decorrente da pandemia da covid-19 é ilustrativo dessa ponderação. Muitos asseveram, de forma plausível e fundamentada, que os atos de suspensão de atividades econômicas adotados em Municípios e Estados são dotados de natureza discricionária, já que outros entes federados não necessariamente adotaram as mesmas medidas, de modo que haveria uma margem de decisão do gestor público. Outros, de maneira igualmente plausível e fundamentada, afiançam tratar-se de um imperativo de saúde pública, em estrita observância das diretrizes da Organização Mundial da Saúde, de modo que o administrador estaria, em verdade, inevitavelmente condicionado a adotar tais medidas, em exercício, pois, de competência vinculada.
Para além disso, mesmo a definição do momento em que o ato passaria a ter natureza vinculada erige-se como questão altamente problemática: seria a partir do momento da declaração da existência de pandemia global, ainda que ausente qualquer caso no País, Estado ou Município? Seria no momento de decretação do estado de calamidade pública pela União Federal? Seria no momento em que as autoridades públicas tomam conhecimento do primeiro caso de contaminação na localidade?
Tais reflexões e indagações, de ordem jurídica e pragmática, conduzem-nos a reputar, com a devida vênia, ociosa a discussão a respeito da natureza vinculada ou discricionário do ato. Essa caracterização é irrelevante para fins de configuração da teoria do fato do príncipe, que apenas exige que o ato administrativo ou legislativo provoque paralisação temporária ou definitiva da atividade, redundando, pela gravidade dos seus efeitos inevitáveis ou imprevisíveis, na ruptura de contratos de emprego.
Outro tema (o quinto em nossa ordem de análise) que tem suscitado dúvidas, à luz dos delicados impactos da pandemia da covid-19, é o de saber se a circunstância de o ato do Poder Público ser realizado em benefício de toda a coletividade, como medida de proteção da saúde, da integridade física e da vida dos membros em geral da sociedade, deveria afastar a incidência da teoria do fato do príncipe, sob a justificativa de uma injustiça na imposição à Administração da responsabilidade prevista no art. 486 celetista.
Em verdade, a questão está intimamente conectada à anterior. Essencialmente, o argumento lastreia-se na ideia de que a inevitabilidade da adoção de medidas de restrição econômica deveria isentar de responsabilidade do ente público ou, em outros termos, se o (suposto) caráter vinculado do ato de intervenção afastaria a aplicação do art. 486 da CLT, já que a Administração estaria agindo em prol do bem geral da comunidade.
Sublinhamos novamente: o caráter vinculado ou discricionário do ato estatal é irrelevante para fins de caracterização da teoria do fato do príncipe. Igualmente indiferente, para os mesmo fins, é a verificação se aquele ato gravoso beneficiará muito mais a coletividade de certa localidade específica ou a sociedade como um todo. Este aspecto, ressalte-se, não é objeto de cogitação do art. 486 consolidado, que acertadamente parte da premissa de que os atos praticados pelo Estado são presumidamente direcionados à satisfação do interesse público.
E mais: se a circunstância de beneficiar toda a sociedade relevante fosse para a configuração do fato do príncipe, com maior razão haveria justiça na assunção pelo ente estatal dos graves impactos financeiros, por representar, em última análise, por meio da ficção que é a pessoa jurídica de direito público, a divisão das consequências econômicas entre todos os membros da sociedade. Injusto, parece-nos, seria a imputação da integral responsabilidade ao empregador, particular que não concorreu em qualquer medida para a situação gravosa.
O sexto aspecto atinente à configuração da teoria do fato do príncipe merecedor de atenção é que o ato estatal deve, por sua gravidade, ser determinante para a extinção do contrato de emprego, seja pela cessação definitiva das atividades empresariais, seja por uma paralisação temporária cuja duração inviabilize a manutenção dos vínculos empregatícios. Por outro lado, o simples fato de o ato estatal tornar apenas mais difícil, mais onerosa a atividade empresarial não caracteriza o fato do príncipe.
O sétimo dado a realçar é que não configurará fato do príncipe o ato do Poder Público que determina o encerramento da atividade da empresa em razão de condutas ilícitas, irregulares por ela praticadas [36]. A alegação da teoria, em tais circunstâncias, significaria dispensar ao infrator benefícios oriundos da sua própria torpeza. Imagine-se, a título de exemplo, a ocorrência de expropriação de propriedade urbana ou rural em razão da constatação da exploração de trabalho em condições análogas à de escravo ou do cultivo ilegal de plantas psicotrópicas, nos termos do art. 243[37] da Constituição Federal, que implique a cessação dos vínculos empregatícios ali mantidos.
Sobreleva, a esta altura, destacar que, assim como nem sempre desastres naturais autorizarão a invocação da teoria do fato do príncipe, como visto anteriormente, da mesma maneira a ocorrência de desapropriação ou de expropriação não franqueará automaticamente a apropriada alegação de incidência da teoria sob exame.
O oitavo e último ponto a destacar é que, tratando-se o fato do príncipe de hipótese específica de força maior, o instituto poderá ser invocado no caso de paralisação (temporária ou definitiva) de toda a empresa ou de apenas um dado estabelecimento (obviamente, em relação às extinções contratuais nele ocorridas em decorrência direta do ato do Poder Público), na trilha do disposto no art. 502 celetista.
Assim como ocorre com a força maior (gênero), raros são os casos de reconhecimento da configuração do fato do príncipe (espécie) pela Justiça do Trabalho.
Luciano Martinez exemplifica como hipóteses de incidência da teoria do fato do príncipe aquelas referentes: “a) a medidas de racionamento de energia elétrica em grande parte do País, a partir de junho de 2001; b) à desapropriação de áreas que foram submersas nos processos de construção de barragens e de hidrelétricas; e c) à desapropriação promovida pelo INCRA para efeito de reforma agrária”[38].
Por sua vez, Homero Batista Mateus da Silva elenca como exemplos as situações de “expropriação de empresas privadas ou de encampação, seguindo-se seu fechamento ou a dispensa dos empregados”[39].
Muito mais extenso é o rol dos casos reputados pela doutrina como insuscetíveis de ensejar a aplicação da teoria do fato do príncipe: “desapropriação do fundo de comércio, as dificuldades econômicas e/ou financeiras impostas por política governamental, a cessação de contrato de obra pública, a intervenção governamental por comportamento ilícito do empresário ou com a finalidade de resguardar o interesse público (v.g. hospitais, escolas etc), supressão de licença de funcionamento com base em irregularidades, o atraso no pagamento de créditos da empresa pelo poder público”[40]; “maxidesvalorizações cambiais, implementação de planos econômicos oficiais, mudanças governamentais nas regras relativas a preços, tarifas, mercado”, o “fechamento do estabelecimento por ato da autoridade sanitária, no exercício da sua atribuição fiscalizadora”[41]; a “revogação de concessão de serviços públicos” [42].
Na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho podem ser identificadas como hipóteses de não aplicação da teoria em tela, exemplificativamente, as seguintes: interdição de estabelecimento de saúde por violação à lei[43] ou por má administração que resulte em violação de direitos de terceiros[44], inadimplência contratual por parte do Poder Público[45], além do conhecido caso da proibição de funcionamento das casas de bingo pela MP 168/04, tendo em vista o caráter precário da exploração da atividade[46].
É interessante observar que há, inclusive, um exemplo na própria legislação de determinação de afastamento da incidência da teoria do fato do príncipe. O Decreto-Lei n.º 9.215/46 restaurou a vigência do art. 50 da denominada Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei n.º 3.688/41), reintroduzindo no ordenamento pátrio a contravenção penal de exploração de jogos de azar e, como consequência, inviabilizando a continuidade dos empreendimentos iniciados sob a égide da legislação anterior. A fim de evitar quaisquer controvérsias acerca da provável alegação de fato do príncipe pelas empresas que viessem a despedir seus empregados, foi editado o Decreto-Lei n.º 9.251/46, que estabeleceu, em seu art. 1º, o seguinte:
Art. 1º. Não se aplica aos empregados dos estabelecimentos a que se refere o Decreto-lei nº 9.215, de 30 de Abril de 1946, os quais, em virtude da cessação do jogo, hajam sido dispensados, o disposto no art. 486 da Consolidação das Leis do Trabalho, assistindo-lhes, porém, haver dos respectivos empregadores uma indenização nos termos dos arts. 478 e 497 dessa Consolidação.
Nos consideranda do Decreto-Lei n.º 9.251/46, explicitou-se que a impossibilidade de invocação da teoria do fato do príncipe decorreria do prévio conhecimento de empregadores e trabalhadores quanto ao caráter precário da autorização concedida para desenvolvimento das atividades cuja vedação novamente era determinada:
Considerando que a permissão dos jogos de azar em estabelecimentos de diversões foi concedida a título precário;
Considerando que não se tratava de atividade de natureza social útil e de atividade de natureza social útil e de exercício normalmente admitido mas apenas de atividade tolerada;
Considerando que, os que a, ela se dedicavam como empresários ou seus empregados, pelo fato mesmo desse exercício, se sujeitaram aos riscos dessa precariedade;
Considerando que a indenização de vida a empregados pelo fato da paralisação do trabalho motivada por ato governamental, e que incumbe ao Governo responsável, não deve, no caso pesar sobre cofres públicos, dadas a circunstâncias acima indicadas;
Considerando, contudo, que é de equidade sejam amparados os empregados dos referidos estabelecimento que ficarão provisoriamente sem ocupação, até que s possam readaptar a outros misteres;
Considerando finalmente que os proventos proporcionados às empresas que usufruíram das concessões referidas autorizam a que lhes seja atribuído o encargo desse amparo, desde que não devem pesar apenas sobre os empregados as consequências do fechamento.
Podemos, agora, avançar ao exame das consequências pecuniárias da cessação do contrato de emprego decorrente de fato do príncipe.
De acordo com o art. 486, caput, da CLT, nessa circunstância “prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”.
Em relação aos contratos por tempo indeterminado, a indenização mencionada pelo art. 486 é aquela que, na redação original do diploma legal, era disciplinada em seus arts. 477 e 478, engendrados no âmbito do regime da estabilidade decenal. Todos, aliás, situados no Capítulo V do Título IV da CLT.
Conforme anteriormente explicitado, com a substituição do sistema de estabilidade decenal pelo do FGTS, o art. 486 passou a exigir uma atualização interpretativa, compatibilizando-o ao novo cenário jurídico. Assim, a interpretação a ser adotada é no sentido de que o Poder Público será responsável pelo pagamento da indenização de 40% .
No caso dos contratos por tempo determinado, a indenização a ser suportada pelo ente público é aquela prevista no art. 479 celetista.
Sublinhe-se que não há cogitar-se de redução à metade de tais indenizações, medida cabível somente no caso previsto no art. 502 da CLT. O Poder Público, responsável pela paralisação da atividade (temporária ou definitiva) que tornou inevitável a ruptura dos vínculos empregatícios, arcará com a integralidade da indenização (nos contratos por tempo indeterminado, de 40% dos depósitos do FGTS; nos eventuais casos de trabalhadores beneficiados pela estabilidade decenal, a prevista nos arts. 497 e 498 consolidados; nos contratos por tempo determinado, a prevista no art. 479 da CLT, desde que não celebrados com cláusula assecuratória do direito recíproco de rescisão).
Na cessação contratual provocada pelo fato do príncipe, o aviso prévio não é devido pelo empregador, pelas razões anteriormente expostas: a) a ruptura do vínculo não decorre da vontade do empregador, tornando-se inevitável em razão do ato do Poder Público, não estando preenchido o pressuposto contido no caput do art. 487 da CLT; b) a Súmula n.º 44 do TST, se examinada em conjunto com seus precedentes, esclarece a incompatibilidade do aviso prévio com extinções contratuais fundadas em motivo de força maior (de que é espécie o fato do príncipe).
São devidos, então, pela empresa o saldo de salário, o décimo terceiro proporcional e as férias vencidas (se for o caso) e proporcionais, ambas acrescidas do terço constitucional.
Ressaltamos, todavia, por lealdade intelectual, que há posicionamentos variados acerca do tema.
Assim, por exemplo, consideram devido o aviso prévio pelo empregador, além das demais parcelas rescisórias acima referidas, Maurício Godinho Delgado[47], Luciano Martinez [48] e Gustavo Filipe Barbosa Garcia[49]. Na visão de José Cairo Júnior, caberá ao ente público arcar com a indenização de 40% do FGTS e com o aviso prévio [50]. Para Amauri Mascaro Nascimento e Sônia Mascaro Nascimento, o Poder Público será responsável pelo pagamento da totalidade das verbas rescisórias[51].
Relativamente ao seguro-desemprego, as razões declinadas quando da análise do término contratual são aqui aplicáveis.
Deveras, não obstante inexista alusão à concessão do benefício no art. 3º da Lei n.º 7.998/90 e no art. 3º da Resolução n.º 467/2005 do CODEFAT, a Constituição de 1988 garante ao trabalhador tal direito sempre que diante de uma hipótese de desemprego involuntário, como se dá na extinção contratual decorrente de fato do príncipe.
Resta-nos, agora, analisar a possibilidade de incidência do art. 486 da CLT no contexto da pandemia da covid-19.
O tema é desafiador e exigirá, nos casos concretos, cautela e serenidade em sua apreciação.
Inexiste ato da União Federal que determine a suspensão de atividades econômicas, mas apenas recomendações a respeito da importância da adoção de medidas de isolamento social, em consonância com as orientações da Organização Mundial de Saúde e com as medidas praticadas em inúmeros países.
Por outro lado, diversos Estados e Municípios têm editado atos normativos ordenando a paralisação de atividades. Mesmo nesses casos, todavia, não é possível oferecer uma solução geral para a indagação proposta.
Será necessário analisar:
a) a existência ou não de ato estadual, municipal ou distrital que determine a suspensão de atividades;
b) se a atividade desenvolvida por aquela empresa está incluída no rol daquelas cujo funcionamento presencial foi obstaculizado. Nessa ordem de ideias, é inviável a invocação da teoria do fato do príncipe, por exemplo, por um supermercado ou uma farmácia que prosseguiu em regular funcionamento;
c) se a adoção de alguma estratégia de gestão de recursos humanos viabilizou a continuidade das atividades, a exemplo da utilização do teletrabalho, do banco de horas (com redução da jornada para posterior compensação) ou da redução proporcional de jornada de trabalho e de salários, em conformidade com a normatização editada durante o período de calamidade pública;
d) se, inviabilizada a continuidade das atividades, o recurso a outras medidas, nos termos da disciplina normativa estabelecida durante o estado de calamidade pública, d.1) de natureza trabalhista, como a concessão de férias individuais ou coletivas, o direcionamento do trabalhador para qualificação, o uso do banco de horas com a concessão de folgas subsequentes para posterior compensação, a suspensão do contrato de trabalho, ou d.2) de natureza econômica, a exemplo de diferimento do pagamento de tributos e outros débitos e utilização de linhas especiais de crédito para financiamento do pagamento de salários, permitiram a futura retomada da atividade ou minoraram sensivelmente os efeitos da suspensão das atividades.
Será este, certamente, o aspecto a ser examinado que demandará maior ônus argumentativo das partes e maior sensibilidade do órgão julgador, em razão das nuances de cada situação concreta. Com efeito, a positivação das providências anteriormente mencionadas não é suficiente, por si só, para o afastamento automático de qualquer alegação da teoria do fato do príncipe, sendo necessário analisar as circunstâncias dos casos particulares. A título de exemplo, pode-se imaginar a dificuldade para a subsistência de um pequeno salão de beleza durante uma paralisação de atividades prolongada por muitos meses.
É possível, todavia, tentar extrair uma espécie de parâmetro inicial para apreciação da questão em comento. Quanto mais precocemente (nos primeiros dias de suspensão de funcionamento, por exemplo) ocorrer a extinção contratual, o acolhimento da alegação fundada na teoria do fato do príncipe tenderá a ser mais difícil. Por outro lado, quanto mais tardia a cessação contratual, mais plausível tende a ser a tese de que, a despeito de todo o empenho na manutenção dos empregos, tornou-se impossível sua continuidade.
Em qualquer caso, a apresentação dos balanços contábeis e da movimentação financeira da empresa no período poderá constituir-se numa relevante prova para formação do convencimento do órgão julgador.
e) por fim, conectado ao critério anterior, se o ato da autoridade pública foi determinante para o término contratual decorrente dos impactos da paralisação temporária ou definitiva.
Acaso não caracterizado o fato do príncipe, estará, então, o empregador impedido de invocar qualquer benefício em seu favor? De forma alguma. Demonstrado que o motivo de força maior foi grave a ponto de determinar o encerramento da empresa ou do estabelecimento e a extinção de contratos de emprego, poderá o empregador invocar a tese de ocorrência de força maior (CLT, arts. 502), caso em que serão aplicadas as regras estudadas no tópico anterior.
Por fim, é relevante tecer algumas considerações acerca dos reflexos processuais da incidência da teoria do fato do príncipe, o que será objeto de análise a seguir.