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Força maior e fato do príncipe no direito do trabalho

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10/04/2020 às 11:00
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4 Questões processuais relevantes

Os parágrafos do art. 486 da CLT disciplinam questões processuais concernentes à aplicação da teoria do fato do príncipe. Eis a dicção legal:

Art. 486. Omissis

§ 1º - Sempre que o empregador invocar em sua defesa o preceito do presente artigo, o tribunal do trabalho competente notificará a pessoa de direito público apontada como responsável pela paralisação do trabalho, para que, no prazo de 30 (trinta) dias, alegue o que entender devido, passando a figurar no processo como chamada à autoria.

§ 2º - Sempre que a parte interessada, firmada em documento hábil, invocar defesa baseada na disposição deste artigo e indicar qual o juiz competente, será ouvida a parte contrária, para, dentro de 3 (três) dias, falar sobre essa alegação.

§ 3º - Verificada qual a autoridade responsável, a Junta de Conciliação ou Juiz dar-se-á por incompetente, remetendo os autos ao Juiz Privativo da Fazenda, perante o qual correrá o feito nos termos previstos no processo comum.

Sem dúvidas, no processo de elaboração da Lei n.º 13.467/17 (Reforma Trabalhista), desperdiçou o legislador uma excelente oportunidade para modificação (ou, mesmo, revogação) da regulamentação anacrônica, cuja persistência no texto legal apenas contribui para a criação de controvérsias.

São duas as questões a enfrentar: a definição da competência e a modalidade de intervenção de terceiro a ser adotada.

Em relação à primeira temática, sustentamos veementemente a competência da Justiça do Trabalho para apreciação da ocorrência ou não do fato do príncipe e da responsabilidade do Poder Público, com o devido respeito a posições em sentido distinto.

A partir do advento da Emenda Constitucional n.º 45/04, a competência para apreciação das lides em geral decorrentes das relações de trabalho é da Justiça Especializada (observadas, obviamente, as ressalvas estabelecidas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal), em consonância com o art. 114, incisos I e IX, da Constituição de 1988.

Vale recordar, a propósito, que, à época da edição do Decreto-Lei n.º 6.110/43, que introduziu no art. 486 da CLT o procedimento específico referente ao exame da configuração do fato do príncipe, a Justiça do Trabalho sequer integrava a estrutura do Poder Judiciário, o que somente veio a ocorrer com a Constituição de 1946, dado que tornava compreensível a atribuição da competência para análise da matéria ao Juiz Privativo da Fazenda (na atualidade, Vara Federal, no caso de responsabilidade da União, ou Vara da Fazenda Pública, na hipótese de responsabilidade do Estado, do Distrito Federal ou do Município).

O cenário normativo foi substancialmente alterado desde 1943, inexistindo, na atualidade, justificativa para a subtração de tal competência da Justiça do Trabalho. Atente-se, porém, que carecerá a Especializada de competência no caso de ajuizamento de ação por parte do empregador em desfavor do ente público com vistas à obtenção do ressarcimento pelo pagamento da indenização ao trabalhador, uma vez que tal lide não se insere no rol consagrado no art. 114 da Carta Constitucional.

Registramos, todavia, que o tema não é pacífico na doutrina, bem como que há decisões turmárias do Tribunal Superior do Trabalho tanto no sentido do reconhecimento da competência [52] da Justiça do Trabalho quanto no da incompetência [53].

A segunda questão, atinente à modalidade de intervenção de terceiro, está imbricada com outra matéria da mais alta relevância.

Ao analisar a figura do chamamento à autoria, prevista nos parágrafos do art. 486 da CLT, a doutrina divide-se, essencialmente, em duas grandes correntes. Para a primeira, o instituto corresponderia, em verdade, à denunciação da lide. Para a segunda vertente, estaríamos diante de uma intervenção de terceiro sui generis, particular do Processo do Trabalho.

Analisada detidamente a controvérsia, constata-se que suas implicações estendem-se além da definição do enquadramento em uma das categorias do Direito Processual, alcançando uma temática do Direito Material, relativa ao estabelecimento da responsabilidade pelo adimplemento do crédito.

Explicamos.

Acaso o legislador haja, no final de 1943, inserido no art. 486 consolidado uma figura aos moldes da denunciação da lide, terá reconhecido que as hipóteses de aplicação da teoria do fato do príncipe envolvem a existência de um direito de regresso do empregador em face do Poder Público.

Tal constatação não é singela.

A prevalência desta linha interpretativa significa que, se o empregador realizar, espontaneamente ou em razão de condenação em reclamação em que ele seja o único integrante do polo passivo, o pagamento da indenização ao trabalhador, poderá ajuizar posteriormente ação de regresso em face do ente público.

Ainda trilhando o mesmo caminho hermenêutico, temos que a ausência de chamamento à autoria (rectius, denunciação da lide) na reclamação trabalhista no momento oportuno redundará em preclusão para formulação desse requerimento, mas não significará um obstáculo intransponível para obtenção do ressarcimento, que poderá ser perseguido em ação autônoma, a qual não será da competência da Justiça do Trabalho.

Noutro giro, se adotada a tese de que o instituto previsto no art. 486 celetista trata-se de modalidade sui generis de intervenção de terceiro, distinta da denunciação da lide, significará que a legislação não atribui direito de regresso algum do empregador em face do ente estatal, sendo que este teria responsabilidade direta e exclusiva pelo adimplemento da parcela. Assim, acaso o empregador viesse a pagar o valor da indenização espontaneamente ao trabalhador, estaríamos diante de uma hipótese de pagamento indevido, que até poderia ensejar futuro ajuizamento de ação de repetição de indébito em face do ex-empregado, mas não de ação de regresso em desfavor do Poder Público. Da mesma maneira, se a empresa for a única integrante do polo passivo de uma reclamação proposta pelo obreiro para percepção da indenização, a ausência de formulação do chamamento à autoria no momento processual apropriado inviabilizará qualquer tentativa de responsabilização do ente público.

Como se nota, a consagração ou não da denunciação da lide no art. 486 da CLT pelo legislador importa na atribuição ou não da incidência de todo o regime jurídico atrelado a tal espécie de intervenção de terceiro. Se a legislação estabeleceu, ali, uma hipótese de denunciação da lide, tornou indiscutível a possibilidade de o empregador adimplir a obrigação, com a possibilidade de obtenção do regresso por parte da Fazenda Pública. As repercussões, pois, são mais graves e sérias do que o simples (embora interessante) debate acadêmico acerca da categoria processual adequada.

Bem compreendida a relevância da controvérsia, podemos avançar ao seu exame propriamente dito.

Na visão da corrente majoritária, representada, por exemplo, por Carlos Henrique Bezerra Leite[54] e Mauro Schiavi [55], o instituto consagrado no art. 486 celetista corresponde à denunciação da lide. Esclarecem os autores que esposam esse entendimento que a referência a “chamar à autoria” na CLT decorre do fato de o diploma haver sido desenvolvido sob a égide do Código de Processo Civil de 1939, o qual arrolava como uma das espécies de intervenção de terceiro justamente o “chamamento à autoria” (arts. 95 a 98). Ocorre que, no CPC de 1973, tal figura foi substituída pela denunciação da lide (arts. 70 a 76), de modo que a interpretação adequada a ser realizada seria no sentido de visualizar no aludido dispositivo celetista uma referência à modalidade de intervenção que assumiu o lugar daquela prevista no Código anterior. Atualmente, as regras aplicáveis são aquelas previstas nos arts. 125 a 129 do CPC/15.

Por outro lado, para o posicionamento minoritário, perfilhado, v.g., por Manoel Antonio Teixeira Filho[56] e Gustavo Filipe Barbosa Garcia[57], é impossível identificar o chamamento à autoria previsto no art. 486 celetista com o instituto de mesma denominação consagrada no CPC/39, uma vez que o Diploma Adjetivo Civil reservava tal figura exclusivamente para os casos envolvendo os riscos da evicção, o que evidentemente não é objeto do referido dispositivo da CLT. Consequentemente, não haveria sentido em identificá-la à denunciação da lide, regulada no CPC de 1973. Ademais, ainda sintetizando os argumentos dessa segunda corrente, a denunciação da lide permitiria, como nova hipótese criada no inciso III do art. 70 do CPC/73, o exercício do direito de regresso, o que também não seria compatível com o chamamento à autoria previsto no art. 486 consolidado, já que este imporia a responsabilidade direta e exclusiva do Poder Público em relação ao pagamento da indenização, exonerando o empregador de tal obrigação. Estaríamos, então, diante de uma intervenção de terceiro sui generis.

Parece-nos tratar-se de uma daquelas raras situações em que duas correntes aparentemente antagônicas podem ser razoavelmente conciliadas.

A resposta exige breve digressão histórica.

O sistema jurídico brasileiro herdou o instituto do chamamento à autoria do ordenamento português. Ele estava previsto sucessivamente nas Ordenações Afonsinas (Livro IV, Título LIX), Manuelinas (Livro III, Título XXX) e Filipinas (Livro III, Título XLV), sempre associado à temática da evicção. Vale rememorar que as Ordenações Filipinas foram de grande importância para o direito brasileiro, tendo sido aplicadas mesmo após a Proclamação da Independência durante expressivo período [58].

A figura também foi consagrada naquela que seria uma primeira iniciativa brasileira de independência jurídico-legislativa no âmbito do Direito Processual não criminal, o Regulamento n.º 737/1850. Inicialmente dedicado ao processo na seara comercial, o diploma viria a ter sua abrangência ampliada pelo Decreto n.º 763/1890, passando a alcançar as causas cíveis em geral (excetuados apenas alguns procedimentos especiais, que permaneceram sob a regência das Ordenações Filipinas).

No Regulamento n.º 737/1850, coerentemente com a história do instituto do chamamento à autoria herdada do direito português, a modalidade de intervenção de terceiro em comento prosseguiu atrelada ao fenômeno da evicção (art. 111 [59]).

Consoante mencionado anteriormente, a mesma diretriz foi seguida pelo Código de Processo Civil de 1939, mantendo a associação entre chamamento à autoria e evicção (art. 95[60]).

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Daí a irresignação de parcela da doutrina com identificação do instituto com a denunciação da lide, criada no CPC/73 (art. 70[61]) para substituir o chamamento à autoria e passando a ser cabível não apenas nos casos de evicção, mas também para exercício do direito de regresso (art. 70, III).

Ocorre que, entre a edição do Regulamento n.º 737/1850 e o CPC/39, houve um acontecimento de elevada relevância em Portugal, que contribui para dissipar a perplexidade existente até a atualidade em torno do chamamento à autoria previsto no art. 486 da CLT: em 1876, foi editado o primeiro Código do Processo Civil português.

Em seus arts. 326 [62] e 327 [63], o CPC português de 1876 desviou-se da orientação sempre presente nas Ordenações em relação ao chamamento à autoria, vindo a admitir seu uso não apenas para casos de evicção, mas também para garantir o direito de regresso.

Esse é o dado que, a nosso ver, justifica a introdução na Consolidação das Leis do Trabalho de previsão específica do chamamento à autoria para finalidade então desconhecida no sistema processual pátrio, mas amplamente difundida em Portugal há quase 70 anos. Não se deve olvidar, sublinhe-se, da enorme influência, à época, da doutrina e da legislação portuguesa de Direito Processual sobre os juristas brasileiros, cenário que foi sendo progressivamente alterado com o tempo, em razão do estudo da literatura processual alemã, francesa e italiana.

Parece-nos, assim, que o legislador brasileiro de 1943 inspirou-se no regramento português e inseriu na CLT uma hipótese de cabimento de uma espécie de intervenção de terceiro que somente viria a ser consagrada no Processo Civil três décadas depois, quando o CPC/73 estabeleceu a admissão da denunciação da lide (sucessora do chamamento à autoria) também para o caso do manejo do direito de regresso.

Vale destacar que não são tão raros os casos nos quais avanços jurídicos são visualizados no Processo do Trabalho e apenas depois são acolhidos pelo Processo Civil. São exemplos eloquentes a hipótese de antecipação dos efeitos da tutela prevista no art. 659, inciso IX, da CLT (criada em meados da década de 1970) em relação à disciplina prevista na Lei n.º 8.952/94, que promoveu sensíveis alterações no CPC/73; a valorização da oralidade no processo, característica notável na Lei n.º 9.099/95; a ampla adoção do sincretismo processual no âmbito do Processo Civil apenas com a edição da Lei n.º 11.232/05; a ênfase à autocomposição, agora tão destacada no Código de Processo Civil de 2015; o próprio modelo de precedentes vinculantes, uma vez que a Lei n.º 13.015/14 consagrou tal concepção antes do advento da Lei n.º 13.150/15.

Acompanhamos, pelos motivos expostos, a doutrina majoritária. O chamamento à autoria previsto no art. 486 celetista nada mais é do que o instituto atualmente identificado como denunciação da lide.

A partir dos elementos até aqui expostos é possível estabelecer algumas conclusões importantes:

a) o art. 486 da CLT não estabelece a responsabilidade direta e exclusiva do Poder Público pelo pagamento da indenização por extinção do contrato decorrente de fato do príncipe, mas assegura ao empregador direito de regresso em face do ente estatal;

b) tratando-se de hipótese de denunciação da lide, a formulação do requerimento de intervenção de terceiro é facultativa (CPC/15, art. 125, caput), de modo que, acaso não promovida pelo ex-empregador reclamado, este não perderá o direito de regresso[64];

c) promovida a denunciação da lide, caberá à Justiça do Trabalho a competência para apreciar a ocorrência ou não de fato do príncipe e a responsabilidade do ente estatal;

d) se o empregador pagar ao obreiro o valor da indenização, espontaneamente ou em razão de condenação em reclamação trabalhista na qual a empresa não promoveu a denunciação da lide, poderá ajuizar ação autônoma em face do ente público, exercendo seu direito de regresso, carecendo a Justiça do Trabalho de competência para seu julgamento.

Por fim, cumpre-nos tecer breve consideração acerca do procedimento a ser adotado caso o empregador decida “chamar à autoria” o Poder Público.

Em nossa perspectiva, o ideal seria a utilização das regras estabelecidas nos arts. 125 a 129 do CPC/15.

Entretanto, parece-nos que o art. 769 da CLT erige obstáculo intransponível a tal proposta, uma vez que não há omissão na legislação processual trabalhista.

Assim, o procedimento a ser observado é aquele fixado nos parágrafos do art. 486 consolidado, exceto em relação à declaração de incompetência, pelas razões já explicitadas.

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Sobre o autor
Leandro Fernandez Teixeira

Juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região. Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Professor. Diretor de Prerrogativas da Amatra VI (gestão 2018/2020). Membro da Comissão Nacional de Prerrogativas da Anamatra (gestão 2019/2021). Coordenador Adjunto da Revista de Direito Civil e Processual. Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Leandro Fernandez. Força maior e fato do príncipe no direito do trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6127, 10 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80979. Acesso em: 22 dez. 2024.

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